Muita gente deve achar que o chamado ‘Caso Waldomiro’ é coisa nossa, bem Brasil, ou no máximo um episódio típico de republiquetas do Terceiro Mundo. Afinal, o escândalo basicamente envolve um alto funcionário do governo federal e um ‘empresário’ do ramo de jogos de azar, belo eufemismo para o brasileiríssimo ‘bicheiro’. As aparências, contudo, enganam. E quem tiver a curiosidade ou interesse de saber mais detalhes sobre o assunto deveria correr para a livraria mais próxima e comprar o livro A melhor democracia que o dinheiro pode comprar, do jornalista norte-americano Greg Palast, recém-publicado pela W11 Editores.
Mas o que Greg Palast tem a ver com Carlinhos Cachoeira e Waldomiro Diniz? É simples: no cerne do episódio que derrubou a popularidade do governo Lula está uma empresa multinacional chamada Gtech, que opera o sistema de loterias da Caixa Econômica Federal, um business de 260 milhões de dólares que renderia a Cachoeira módicos 30 milhões de dólares em 5 anos. A renovação do contrato desta empresa – firmado originalmente durante o governo Fernando Henrique – teria sido motivo de discórdia entre Cachoeira e Diniz, impelindo o primeiro a ‘socializar’ a sua ‘videoteca’, que acabou custando o emprego do segundo.
O livro de Palast, por sua vez, revela a real dimensão da atuação da Gtech mundo afora. Em 1997, conta o jornalista, quando George W. Bush ainda era governador do Texas, a empresa foi beneficiada por um ato da administração estadual que cancelou uma licitação e deu à Gtech o monopólio das loterias locais. Segundo Palast, o ‘favor’ do então governador Bush Jr. custou 23 milhões de dólares à empresa em serviços de um ‘lobista’ que poderia comprovar um grave ato ilícito do atual presidente americano na juventude – o esquema que permitiu a sua dispensa de lutar na guerra do Vietnã, fato explorado por adversários na eleição para o governo do Estado, em 1994, e que poderia atrapalhar seus planos futuros, em 2000. Resumo da ópera: Bush deu a concessão das loterias do Texas, negócio também da casa de centenas de milhões de dólares, à Gtech, que por sua vez pagou uma bagatela ao ‘lobista’ Ben Barnes, que por sua vez fechou o bico e nunca mais abriu…
Repórter-perdigueiro
Alguém pode alegar que George W. Bush e o Texas não são paradigmas de ‘coisa de Primeiro Mundo’, mas sim um acidente de percurso na gloriosa trajetória da América. Discutível, mas vamos por ora aceitar o desafio. Pois Greg Palast revela que são longos os braços da Gtech e analisa os negócios da empresa na fleumática Grã-Bretanha governada pelo paladino da Terceira Via, o trabalhista Tony Blair. De fato, é preciso ressaltar que os britânicos são um pouco mais exigentes. A má-fama da Gtech gerou algum constrangimento, mas não impediu que o bom hábito de fechar negócios ocorresse também no coração da ilha, mais precisamente, no coração de Londres. Como a empresa estava sendo investigada por um suposto suborno contra um concorrente inglês do ramo de loterias, o jeito foi premiar – a pedido do então já eleito presidente Bush – a empresa americana com uma ‘boquinha’ bem rentável: a venda eletrônica de ingressos para o Domo do Milênio, menina dos olhos de Tony Blair. Isto, claro, com intermediação de lobistas certamente ávidos por algo mais do que o ‘um por cento’ do ex-assessor do ministro José Dirceu.
Waldomiro Diniz e ‘Charlie Waterfall’ – como traduzem os jornais da língua de Shakespeare –, portanto, estão na ótima companhia de Bush e Blair. Coisa fina.
O livro de Greg Palast, porém, não se resume a Gtech. Trata também da Monsanto, da Enron e outros gigantes. No fundo, seu objeto de investigação é a chamada ‘globalização’, descrita em termos bem rasteiros, com foco no método de fazer negócios, envolvendo via de regra uma ‘saudável’ parceria público-privada, para usar termos em voga também aqui o Brasil. A melhor democracia… recebeu primorosa edição brasileira e é obrigatória para quem deseja entender na prática como opera o neoliberalismo. Aliás, há um capítulo especial sobre o Brasil – ‘Sua excelência Robert Rubin, presidente do Brasil’, sobre a reeleição em 1998 do ‘presidente nominal do Brasil’, Fernando Henrique Cardoso. É um dos pontos altos do livro, ao lado do capítulo sobre a desregulamentação do setor energético na Inglaterra e EUA.
Greg Palast foi obrigado a deixar os Estados Unidos depois de revelar com detalhes a forma engendrada por Bush Jr. para fraudar a eleição de 2000. Escreve no britânico The Observer e faz matérias para a BBC. Tem fontes acadêmicas do quilate de Joseph Stiglitz, mas prefere fazer o que os bons repórteres-perdigueiros fazem: ir atrás de documentos para comprovar a teoria com fatos do mundo real.