A primeira coisa que me chamou a atenção no livro Opinião Pública, do jornalista americano Walter Lippmann, foi a distorção que fazem de uma de suas assertivas – ‘A função das notícias é sinalizar eventos’ –, repetida para justificar erros e equívocos, como se o jornalismo não tivesse compromisso com a verdade.
Muitos blogs que preferem atirar primeiro e perguntar depois vêm criando uma estranha categoria: a notícia como ‘processo’. Desse modo, publica-se, por exemplo, um boato e, no ‘processo’, vai se chegando à ‘verdade’.
Ainda que o fato final desminta a proposição inicial, o ‘processo’ é considerado bom, pois ‘sinalizou-se um evento’. A rigor, esse pensamento tortuoso quer dizer o seguinte: o importante é publicar primeiro, a qualquer custo.
Ocorre que Lippmann, em seu livro publicado em 1922 [traduzido no Brasil somente em 2008], mostra-se muito mais sofisticado do que alguns ‘jornalistas’ contemporâneos.
Para começar, se a frase for lida por completo verifica-se que o conceito que ela quer transmitir não é tão simplista:
‘A função das notícias é sinalizar eventos, a função da verdade é trazer à luz fatos escondidos, pô-los em relação um com outro e fazer uma imagem da realidade com base na qual os homens possam atuar. Somente naqueles pontos, onde as condições sociais tomam uma forma reconhecível e mensurável, o corpo da verdade e o noticioso coincidem’.
Em outro trecho:
‘Há um corpo pequeno de reconhecimento exato, que [não] requer nenhuma habilitação excepcional ou treinamento. O resto está à disposição do jornalista’.
Citação truncada
Lippmann dá um exemplo: John Smith vai à falência, conforme está registrado na junta específica. Relatado esse fato, que coincide com a realidade, ou seja, com a verdade, ‘todos os padrões estabelecidos desaparecem’. Mas observe que em nenhum momento Lippmann autoriza a desconsiderar a verdade factual.
Pelo contrário, ele condena com veemência essa prática. Comentando a frequência com que os jornais americanos da época anunciavam a morte de Lênin, líder da Revolução Russa de 1917, ele escreve:
‘Não há defesa, nem atenuação, nem desculpas quaisquer, para declarar seis vezes que Lênin morreu, quando somente a informação que o jornal possui é um relato de que ele morreu, de uma fonte repetida e comprovadamente inconfiável’.
O que Lippmann diz é que o fato real e comprovável precisa ser relatado com fidelidade, ‘o resto está à discrição do jornalista’. Retomando John Smith. Ele faliu, fato ‘reconhecível e mensurável’ [verdade factual]. ‘Por que ele fracassou, suas fragilidades humanas, a análise das condições econômicas nas quais tinha naufragado, tudo isso pode ser contado de uma centena de diferentes formas’ [a verdade de cada um].
Portanto, o que está sob juízo do jornalista são as conclusões que ele vai chegar a partir do fato – e o modo como ele vai relatá-lo aos leitores. Isso está condicionado pelos conceitos que ele formou ao longo de sua vida – na família, no meio em que viveu, pela cultura – que se traduzirão na sua verdade pessoal. Lippmann não vê método capaz de suspender esses pré-conceitos. ‘A forma como vemos as coisas é uma combinação do que está lá e do que esperamos encontrar.’
Pode-se concordar ou discordar, mas é muito diferente de citar de forma interrompida a sua frase como se fora uma autorização para esbofetear a verdade factual.
Crítica ligeira
Outra questão interessante abordada por Lippmann – e que volta com toda a força atualmente – é a rejeição das pessoas em pagar pela notícia, o que ele vê de modo crítico:
‘A informação precisa vir naturalmente, ou seja, grátis […] O cidadão pagará por seu telefone, suas viagens por trem. Por seu carro. Sua diversão. Mas ele não paga facilmente por suas notícias. […] Seria considerado como uma ofensa ter que pagar abertamente o preço de um bom sorvete por todas as notícias do mundo’.
Esse trecho poderia ter sido escrito hoje, que se aplicaria perfeitamente ao dilema em que estão envolvidos os grandes meios de comunicação sobre cobrar ou não pelo conteúdo publicado na internet. Lippmann, àquela época, já via o perigo de faltar fontes de financiamento para a produção de notícias.
Deixo de abordar alguns aspectos da obra de Lippman, como a sua visão de democracia, a sua descrença na capacidade de discernimento do homem comum, e sua proposta de um governo de ‘especialistas’. Temas que já foram por demais comentados.
No mais, pode-se dizer que – ao contrário do que faz supor uma crítica ligeira – o livro de Lippmann não faz um ataque, mas a defesa da imprensa, que ele compara a um holofote ‘que se move sem descanso’ para trazer à luz episódios que estão nas sombras.
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Jornalista