Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Wikileaks ensina

Um site que publica documentos mantidos em segredo parece ser uma ideia explosiva, e é. Ainda mais quando esses documentos são autênticos, guardados por setores governamentais, em grande quantidade e com variados interesses em jogo. Pois é esta a receita do Wikileaks, o endereço que mais vem chamando a atenção na internet. Milhares de memorandos, relatórios, correspondências sobre ofensivas militares norte-americanas, sobre ações diplomáticas e intervencionistas, entre outros, estão ali, livres para serem acessados por qualquer um. Como eu disse, é uma dessas ideias explosivas, revolucionárias para alguns, subversivas para outros.


Nos Estados Unidos e na Europa, a repercussão é grande, conforme se pode acompanhar pela mídia convencional e pela galáxia dos meios alternativos. Os impactos são variados tanto na política quanto nos meios de comunicação. Entre os políticos, há queixas sobre o vazamento de documentos nem sempre confiáveis, temendo alarme social e o descrédito de certos governantes. Entre os jornalistas, as reclamações se dão na esfera corporativa, receando ver esvaziar seu poder de denúncia, sua capacidade de fiscalização dos poderes. Quer dizer, nos gabinetes e nas redações, o Wikileaks atua como um fantasma, pesadelo sem fim.


Evidentemente, não se pode generalizar, mas o fato é que a novidade que o Wikileaks traz colide sim contra alguns pilares de sustentação de certas relações de poder. Relações constituídas na exclusividade, no controle da informação, na definição do que pode vir a público e o que não pode. Durante séculos, os poderes centralizados usaram e abusaram dessa estratégia: dominar, usando seu poder de veto. E, convenhamos, durante décadas, o jornalismo convencional se apoiou na primazia de informar, na delegação pública de atualizar o noticiário.


Organização e coragem


O surgimento de um site, mantido por uma organização sem fins lucrativos, transnacional, e meio que clandestina, coloca a nu – mais uma vez – essas relações de poder que hoje se revelam bastante arcaicas e fissuradas. É o fim da política? A ruína do jornalismo? Nem uma coisa nem outra, claro. O episódio pode ser muito mais interessante e positivo. Na minha opinião, o Wikileaks traz lições que podem ser bem usadas por políticos, jornalistas e cidadãos em geral. A coragem, a ousadia, a sagacidade e o senso (quase anárquico) de transparência ensinam e nos trazem ao menos quatro bons lembretes:


1. políticos devem orientar suas ações pelo interesse da coletividade, e tudo aquilo que contraria isso, deveria ser descartado de seu cardápio de serviços;


2. empresas e governos não podem enganar ou esconder algo por muito tempo, ainda mais numa sociedade cada vez mais observada e ansiosa por ver tudo;


3. cidadãos comuns podem se organizar muito rapidamente no meio virtual de maneira a buscar informações e direitos. A internet não reinventa a política, mas a atualiza;


4. o jornalismo, com Wikileaks ou sem ele, deve continuar a perseguir informações que sejam de interesse público e que estejam mantidas em sigilo. O desvelamento de segredos e a fiscalização dos poderes continuam a ser importantes funções públicas dessa atividade.


Como se pode ver, o Wikileaks pode ser visto com terror ou com uma ponta de esperança. O site não vai trazer à tona todos os segredos do mundo, não está reinventando as relações de poder entre pessoas e organizações, talvez nem dure tanto tempo. Boa parte do valor dessa iniciativa está no seu surgimento, no fato de ter se mostrado viável e audível por todos. É uma ponta do iceberg, uma parcela diminuta do que se pode fazer quando há organização, propósito e coragem.

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Professor do Departamento de Jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS