Publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas
Não houve registro oficial. Mas dava para sentir, pelo enrijecimento dos rostos e pela cautela com que falavam os cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia alguma coisa diferente no ar, na terça-feira, ao julgarem os dois habeas corpus que pediam a liberdade do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP). Essa “alguma coisa” é como se fosse uma pedra atirada no meio de um lago, que espalha uma série de ondas até as margens. A imagem se ajusta ao efeito que estão causando as publicações do site The Intercept Brasil. A conta-gotas, nos últimos vinte dias, o site vem publicando diálogos ocorridos no aplicativo Telegram entre o então juiz federal Sergio Moro e os procuradores da República da Operação Lava Jato, um símbolo do combate à corrupção nacional. Nos diálogos, Deltan Dallagnol, coordenador da operação, além de outros procuradores, foram orientados sobre como proceder em seu trabalho pelo juiz.
A decisão sobre os habeas pedidos pelos advogados de Lula ficou para agosto. Até lá, o ex-presidente continuará preso em uma cela improvisada, na Polícia Federal (PF) de Curitiba (PR), sede da Lava Jato. Em 2017, Moro o condenou por lavagem de dinheiro e corrupção a uma pena de nove anos e meio. No ano seguinte, 2018, a pena foi confirmada e aumentada para doze anos pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), com sede em Porto Alegre (RS). Por ser uma condenação em segunda instância, Lula foi preso e não pôde concorrer à eleição para a presidência da República, em que era líder das pesquisas. Ganhou seu adversário, o atual presidente Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Em 2019, Moro abandonou uma carreira de 22 anos como juiz para ser ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro.
Com uma ou duas diferenças de estilo, nas últimas publicações tenho repetido este parágrafo com o objetivo de alertar os jovens repórteres a prestar atenção na sequência dos acontecimentos. Conhecemos só o lado oficial dessa sequência. O que acontecia entre as quatro paredes da Lava Jato, desconhecemos. É justamente essa história que as publicações do site estão contando. E o que foi publicado até agora mostra a interferência indevida de Moro no trabalho dos procuradores. O ex-juiz e seus colegas do governo federal alegam que ele foi vítima de hackers e que, portanto, os conteúdos publicados pelo site foram “manipulados”. The Intercept diz ter recebido o material de uma fonte não revelada, invocando o seu direito constitucional. Mas a publicação tem o carimbo do jornalista americano Glenn Greenwald – dono de um vasto e respeitado currículo, disponível na internet.
Parte de tudo o que escrevi está no conteúdo dos habeas dos advogados de Lula que estão para ser julgados pelos ministros. Se a decisão for favorável ao ex-presidente, Moro vai ter grandes dificuldades em manter sua versão do que aconteceu entre as quatro paredes da Lava Jato. Há mais um fator: o site vem publicando os conteúdos a conta-gotas, devido ao volume de material que tem. Sabe lá Deus o que vem por aí, como diz o dito popular. O que irá acontecer no julgamento dos habeas será resultado da primeira onda provocada pelas divulgações da história secreta da Lava Jato. A segunda onda já pode ser avistada: é a aprovação, pelo Senado, de um projeto que estabelece um pacote de medidas anticorrupção e que inclui punição para juízes e promotores que se envolverem em abuso de autoridade. O projeto foi enviado para a Câmara de Deputados. No projeto, a segunda onda é a inclusão de punição para juízes e promotores.
Qual o total de ondas que vêm do Intercept? Ninguém sabe. O que podemos afirmar é que esses conteúdos fazem bem para a jovem democracia brasileira, que tem pouco mais de trinta anos. O debate sobre o que é publicado pelo site é um belo exercício para a musculatura da nossa democracia. A luta contra a corrupção é resultado desse processo de amadurecimento das nossas instituições. É isso que temos que explicar aos nossos leitores. É simples assim.
***
Carlos Wagner é jornalista.