Publicado originalmente por objETHOS
A primeira resposta ao profundo abalo que as reportagens iniciais do The Intercept Brasil causaram, no domingo, ao expor a conspiração entre o então juiz e os procuradores da Lava Jato, foi dar publicidade ao “outro lado” e acusar o crime que teria sido cometido com a alegada invasão dos celulares da força-tarefa e a captura das mensagens trocadas pelo aplicativo Telegram.
Os desdobramentos da cobertura deixam agora mais clara a tática diversionista dos veículos do grupo Globo: centrar fogo na história do ataque hacker para desviar a atenção dos fatos gravíssimos que os diálogos revelam, tentando inverter o jogo e alardear um ataque às instituições, quando quem as atacou foram seus próprios integrantes ao desprezar os limites que a função de cada um deveria respeitar. Mais que isso: tentar esvaziar o trabalho do Intercept e associá-lo à disseminação de fake news.
É o que se depreende da edição do Jornal Nacional de quarta-feira, 12 de junho, repetida no Bom Dia, Brasil na manhã seguinte. “As investigações iniciais mostraram que o ataque de hackers a autoridades ligadas à operação foi muito mais amplo do que se supunha”, disse a âncora do JN. A matéria começa com a denúncia de que o grupo do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) no Telegram teria sido invadido na terça, dia 11 – ou seja, os hackers continuariam agindo. Momentos depois, destaca nota da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, numa sequência que afirma a possibilidade de um hacker fabricar diálogos, o que tornaria impossível atestar a veracidade do que vem sendo divulgado e abriria espaço para a disseminação de fake news.
Por isso a insistência em sublinhar que se trata de conversas “atribuídas” a Moro e Dallagnol: porque pretende-se sustentar a hipótese de que tenham sido forjadas pelo tal hacker.
Curioso é que a reação imediata dos envolvidos não levantou qualquer dúvida sobre a autenticidade do material publicado pelo Intercept. O MPF da força-tarefa de Curitiba emitiu extensa nota em que acusava “interesses inconfessáveis” nesse ataque à Lava Jato e dizia que “os dados eventualmente obtidos” não sugeriam o cometimento de qualquer irregularidade. Já Moro foi mudando de argumento conforme o tempo passava: primeiro lamentou o sigilo em torno da fonte e afirmou que não havia nada de anormal no conteúdo das mensagens — ou seja, em momento algum contestou-as, embora argumentasse que estariam descontextualizadas. Depois, disse que não se lembrava de ter tido aquelas conversas. Mas isso o JN não fez questão de recordar.
A reportagem também informou que os celulares de dois parlamentares haviam sido hackeados.
É uma conhecida tática diversionista, precisamente a que foi utilizada décadas atrás na inútil tentativa de desqualificar o trabalho do jornalista Janio de Freitas, que em 1987 utilizou um artifício tão engenhoso quanto simples para mostrar a fraude na concorrência para a licitação das obras da ferrovia Norte-Sul: publicou um anúncio com mensagem cifrada no caderno de classificados da Folha de S.Paulo que indicava o nome das empreiteiras vencedoras. Pouco depois, começaram a proliferar anúncios do mesmo teor, para tentar espalhar a ideia de que a publicação original não tinha o peso que lhe fora atribuído.
Mais curioso, no caso da suposta invasão do grupo do CNMP, é que o hacker se apresenta alegremente (“sou o hacker”) e, depois de explicar que pretende apenas alertar os demais, escreve: “outrossim, vale ressaltar que não acessei o dispositivo de ninguém”. Mais bandeiroso, impossível, e é claro que isso não passou despercebido daqueles que, nas redes sociais, vêm se divertindo com a evolução dos acontecimentos.
No Globo, que traz na capa a mesma matéria “investigativa” que orientou o noticiário televisivo, a especulação avança para a hipótese de um complô internacional – releve-se a repetição da palavra “ataques”, é dessas coisas que acontecem quando se corre contra o relógio: “Em meio à crise deflagrada pelos ataques, procuradores discutem entre si as mais variadas teses sobre as origens dos ataques. Alguns levantam suspeitas até sobre invasões de origem russa, o que não está comprovado”.
Os russos, sempre eles — e não se trata do “russo”, apelido de Moro nas conversas com os procuradores, mas dos russos à vera, aquelas figuras maquiavélicas que vêm do frio para destruir os melhores valores da sociedade cristã. Afinal, o Telegram — que desde o início negou qualquer possibilidade de hackeamento — é russo, então… Nada como mexer com o imaginário povoado de estereótipos, sobretudo quando se trata da velha pátria do comunismo ateu e sanguinário, ainda que a União Soviética já não exista: uma vez comunista, sempre comunista, ou “globalista”, como gostam de dizer os terraplanistas da atualidade, crentes de que o nazismo é de esquerda.
Num dos últimos artigos que publicou sobre o caso, Luís Nassif apontou os vários aspectos da guerra que a Globo declarou ao Intercept, destacando essa insinuação de “ataque russo”. Mas sublinhou também o ataque pessoal da empresa a Glenn Greenwald, dizendo que havia sido procurada por ele para estabelecer uma parceria na divulgação do material obtido pelo Intercept e manifestando indignação com a entrevista do jornalista à Agência Pública, na qual, ao se referir ao teor dos documentos, ele diz que a Globo foi “aliada, amiga, parceira, sócia” da Lava Jato, e vice-versa. A nota que Greenwald divulgou em resposta parece incongruente: ele confirma ter procurado a empresa na expectativa de uma parceria como a que estabelecera quando noticiou o caso Snowden (que lhe valeu o Pulitzer) sob a justificativa da necessidade de ampliar a repercussão das informações de agora, considerando a audiência da Globo. Mas como poderia imaginar que a proposta fosse aceita, se o material obtido a implica nessa conspiração?
Essa não é uma questão menor, porque envolve uma importante discussão sobre ética. Mas certamente não é a mais importante no momento. Como Greenwald afirma, “entrar em disputas com a Globo agora seria dar gás àqueles que pretendem desviar a atenção do que vai ficar (sic) o assunto principal”.
O desenrolar dessa cobertura explicita o que são manobras diversionistas verdadeiras. Nada a ver com damarices, bolsonarices e outras tosquices — que, aliás, não eram diversionismo, mas parte da guerra ideológica do governo eleito na esteira do golpe. Cortina de fumaça a sério é o que estamos vendo agora. E é mais uma demonstração de como a Globo é aliada, amiga, parceira, sócia, conivente com todo esse aparato que se montou para derrubar um governo legítimo e estabelecer uma nova ordem que despreza as garantias elementares do direito democrático.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é professora aposentada de jornalismo da UFF, pós-doutoranda na Universidade do Minho e pesquisadora do ObjETHOS.