Publicado originalmente na newsletter da Agência Pública
As revelações do site The Intercept Brasil, que colocam o ex-juiz Sergio Moro como coordenador da força-tarefa da Lava-Jato, prática proibida pela Constituição, minaram a credibilidade do judiciário e, por tabela, escancararam a parcialidade e a proposital omissão da imprensa brasileira desde o início da fase ostensiva da operação, em março de 2014.
Um dos maiores erros do jornalismo, sem entrar no mérito dos interesses políticos, está na origem da cobertura: a adesão incondicional, abdicando de sua função investigativa, crítica, questionadora e reflexiva sobre a precária narrativa que a força-tarefa passou a ditar a partir da delação do então diretor de abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa.
A imprensa não só aceitou gostosamente as versões oficiais como também deixou de contextualizar: a corrupção na Petrobras já havia sido o pivô da investigação que resultou na queda de Fernando Collor e, mais tarde, vicejou também no governo Fernando Henrique. A estatal acumulava um histórico de negociatas que, segundo o principal controlador da maior empreiteira envolvida no escândalo, Emílio Odebrecht, tinha mais de trinta anos.
Os jornalistas que passaram a integrar o “pool” com acesso privilegiado aos bastidores da operação sempre souberam que Moro era seu chefe de fato. Na medida em que a operação foi ganhando os aplausos da população, regras elementares do jornalismo foram sendo deixadas de lado.
Coube ao empresário e corruptor Emílio Odebrecht dar o puxão de orelhas que doeu e constrangeu as redações: “Tudo o que está acontecendo é um negócio institucionalizado. A imprensa toda sabia que efetivamente o que acontecia era isso. Por que agora estão fazendo isso? Por que não fizeram há dez, vinte anos atrás? Essa imprensa sabia disso tudo e fica agora com essa demagogia”.
Do repórter ao diretor de jornalismo, todos sempre souberam que os desvios eram antigos e que a força-tarefa estava atropelando propositalmente os protocolos de investigação.
O método Moro consistia em expandir os limites da lei, utilizar-se da imprensa, vazando intensamente documentos para atrair a simpatia da opinião pública, prender os alvos para pressioná-los e acelerar condenações, indeferindo de cambulhada os recursos da defesa.
Era esse o objetivo dos mandados de condução coercitiva, emitidos em bloco, sem que os alvos tivessem sido intimados uma única vez, como determina a lei. As prisões preventivas alongadas foram usadas sem limite, ao ponto de funcionarem como uma antecipação da pena sem sentença definitiva. As polêmicas delações, obtidas na pressão, foram divulgadas sem qualquer contraponto jurídico, como se constituíssem provas concretas sobre a roubalheira.
Enquanto o Ministério Público Federal e a Polícia Federal se utilizavam de táticas proibidas – como grampos ilegais, pressão psicológica, cerceamento da defesa – e centravam sua atuação basicamente nas delações, a imprensa incensava Moro, dando a ele o papel central da Lava Jato. Não foi só a pauta enviesada. A imprensa não amarrou a operação a episódios como as manifestações contra a corrupção, a campanha do MPF iniciada em 2013 para tornar-se protagonista das investigações, as tentativas de interferir no resultado da eleição presidencial de 2014, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e, finalmente, na ascensão da extrema-direita ao governo, em 2018.
Indissociável da crise política que atingiu a economia, agravou o desemprego e provocou a quebradeira generalizada no setor de engenharia civil, a Lava Jato afetou de forma inadequada a política e o processo democrático. A ânsia de prender e gerar espetáculos impôs um ritmo policialesco, sem associar o combate à corrupção à preservação de conglomerados empresariais que, havia décadas, tinham peso no PIB e na economia.
O jornalismo embarcou sem questionamentos. A máquina judicial se sentiu à vontade para pisotear direitos individuais, como na célebre imagem de Sérgio Cabral algemado e acorrentado pelos tornozelos, “flagrado” por fotógrafos e cinegrafistas de plantão à espera de seu desembarque do “chiqueirinho” de uma viatura.
Nem a “lavanderia” de dinheiro da Lava Jato era novidade. Dois doleiros que fizeram delação, Claudio Fernando Barboza de Souza e Vinicius Claret Vieira Barreto, contaram, em fevereiro do ano passado, que quem dava conselhos e orientava as operações para lavar propinas era Najun Turner, o homem por trás da famosa Operação Uruguai, posta em curso em 1992 para tentar livrar Collor do impeachment.
O mais grave da delação dos doleiros nem mereceu destaque e, por isso, também caiu no esquecimento: Vinicius Claret disse, em depoimento, que cada um dos doleiros que gravitavam em torno de Dario Messer dava um mensalinho de 50 mil dólares ao escritório do advogado mais antigo nos acordos de delação, Antonio Figueiredo Basto, “a fim de possuir proteção da Polícia Federal e do Ministério Público”.
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Vasconcelo Quadros é repórter com vasta experiência em coberturas policiais e judiciais.