Publicado originalmente no site objETHOS
Três erros de edição foram o suficiente para uma série de críticas desmedidas à oitava parte da Vaza Jato publicada pelo The Intercept Brasil. Em referência a uma informação errada e a uma troca de data e nome, a hashtag #JornalismoDeTaubaté foi parar nos trending topics do Twitter no último sábado, 29.
Discutirei a seguir dois pontos revelados pelo debate aberto sobre procedimentos jornalísticos neste episódio. Primeiro, um uso estratégico do discurso sobre ética no jornalismo por parte de atores organizados: insistir nos erros do Intercept (rapidamente corrigidos pela redação, diga-se) é uma forma de evitar discutir o próprio conteúdo das matérias, com a intenção de minar a credibilidade do jornal.
Em segundo lugar, leitores que embarcaram nesse argumento demonstram desconhecimento da prática jornalística e seus métodos de apuração e checagem. A meu ver, esta é uma ótima oportunidade para esclarecer a população sobre técnicas que são básicas para quem é do meio, mas não soam tão óbvias aos não-jornalistas. Nem todos estarão dispostos a ouvir, é claro, e aqui tomo emprestada a analogia do professor Idelber Avelar sobre os terraplanistas jornalísticos, sujeitos blindados por crenças e malabarismos retóricos que ainda questionam a existência das mensagens vazadas pelo Intercept. A despeito desse grupo, me parece que discutir publicamente sobre os métodos de apuração no jornalismo é um pontapé significativo para a abertura da famigerada caixa preta das redações.
Ética jornalística, um objeto em disputa
Nas mensagens privadas publicadas pelo Intercept, são reveladas as desconfianças de procuradores do Ministério Público Federal com a nomeação de Sergio Moro para ministro da Justiça. Monique Cheker, uma das protagonistas das conversas, questiona a postura ética do ex-juiz ao aceitar o cargo, algo que colocaria em risco a legitimidade da Operação Lava Jato. Além de Cheker, participam das mensagens nomes como Laura Tessler, Antônio Carlos Welter e ngelo Augusto Costa, entre outros.
Foi deste último que partiu um dos erros de edição no Intercept. Antes de subir a matéria no site, Glenn Greenwald soltou um teaser no Twitter com trechos das conversas. Na arte, constava o nome de outro ngelo: o de sobrenome Goulart Villela, procurador preso em 2017 acusado de receber propina de Joesley Batista. Após apagar o tweet (disponível aqui, no site de direita Agência Caneta), Greenwald respondeu a um leitor que se tratou de um “erro de edição apanhado pela checagem de fatos antes da publicação”. Em interação com outra conta, o editor-chefe do Intercept Brasil complementou: “sim, todos os jornalistas cometem erros: os honestos os corrigem, e os divulgadores do fake news, não. Nós cometemos um erro ao colocar os bate-papos no formato online porque havia dois ngelos. Nós o corrigimos antes de ser publicado quando detectado por nossa checagem de fatos”. A versão que foi ao ar no site, portanto, já estava com o nome correto de ngelo Augusto Costa.
Foram feitas outras duas correções na matéria após sua publicação: a data na arte de uma das conversas do grupo BD, cuja primeira versão indicava “1º de novembro de 2019” (posteriormente modificada para 2018), e o local de atuação da procuradora Monique Cheker (atribuído erroneamente ao Ministério Público Federal em Barueri e Osasco, São Paulo, e depois corrigido para Petrópolis, Rio de Janeiro). As duas erratas constam no final da matéria do Intercept, indicando também o horário de atualização – ainda pela manhã, sendo que a matéria saiu de madrugada.
Ora, os três erros não deixam de ser aquilo que são: erros. Mas são pontuais, não comprometem o cerne da matéria e muito menos deslegitimam a apuração da Vaza Jato. Mais importante do que isso: suas correções aconteceram tão logo foram apontados por leitores e outros veículos.
É justamente a reação alheia que tornou o caso como algo curioso, na medida em que a ética jornalística passa a ser utilizada estrategicamente pelos sujeitos envolvidos no caso. Não que outra reação fosse esperada: quando o desespero bate à porta, a troca de um “2019” por um “2018” já seria prova suficiente para acabar com qualquer operação jornalística. Daí a resposta de Moro, no Twitter, reiterando que “houve trocas de nomes e datas pelo próprio site que as publicou, como demonstrado por O Antagonista”, o que “só reforça que as msgs não são autênticas e que são passíveis de adulteração”.
O Antagonista, de fato, foi um dos veículos mais atuantes na cruzada contra o jornalismo supostamente antiético do Intercept Brasil. Tão logo a reportagem da Vaza Jato foi ao ar, pipocaram “matérias” que apontam os erros e criam uma relação simplista de causa e efeito para desmerecer a veracidade dos diálogos entre os promotores. Aqui, coloco matérias entre aspas propositalmente – são posts que raramente ultrapassam três parágrafos (veja aqui, aqui e aqui). Ou, quando o fazem, editorializam seu conteúdo ao extremo – uma crítica, aliás, frequentemente direcionada por eles ao próprio Intercept.
A lógica do “edito, logo manipulo”
No Twitter, jornalistas também debateram os procedimentos de apuração da Vaza Jato. Ainda sobre O Antagonista, um de seus fundadores e ex-redator-chefe da revista Veja, Mario Sabino, cravou: “com 35 anos de jornalismo, boa parte deles no comando de uma grande redação, posso garantir que quando jornalistas precisam dar muitas explicações sobre uma reportagem cheia de ‘equívocos’ é porque a reportagem é uma porcaria, uma lambança e até mesmo uma fraude”.
Outro que o acompanhou na crítica foi Fabio Pannunzio, apresentador do Jornal da Noite, na Band: “prometeram uma bomba, soltaram um truque – e cheio de incorreções. O The Intercept pisou na bola. Não há argumento que justifique os erros grosseiros de edição, trocas de nomes e datas etc. Nada do que ali está publicado autoriza a versão de que Moro comandava a investigação”. Até mesmo Renato Rovai, editor da revista Fórum, sugeriu que “o salto alto pode ter sido maior do que o zelo com a reportagem”, aconselhando os colegas a praticarem “mais jornalismo” e “menos estrelismo”. Ainda assim, o jornalista enfatiza que o erro simples não descredibiliza a apuração da matéria.
Glenn justificou a troca nos nomes dos Ângelos como um “erro de edição apanhado pela checagem de fatos antes da publicação”. Bastou essa frase para que O Antagonista afirmasse: “jornalistas de verdade não ‘editam’ reproduções de provas. Checagem existe apenas nos textos das reportagens. A justificativa de Greenwald é, na verdade, uma confissão de que o Intercept pode adulterar o conteúdo do que exibe como documentos”.
Este é um problema básico e elementar do jornalismo, talvez confuso para não-jornalistas, mas óbvio para quem é da área. Todas as conversas postadas no Intercept são artes gráficas, e não capturas de tela do aplicativo Telegram. Portanto, também são transcrições passíveis de erros humanos, que nada têm a ver com modificação de conteúdo. Em tempo: “edição” é uma das etapas do processo de produção no jornalismo e não é sinônimo de manipular informações. Trata-se de adequar linguagens e hierarquizar informações para melhor compreensão do leitor. Trata-se, ainda, de ter cuidados éticos. Leandro Demori, editor do Intercept, declarou recentemente que o veículo não pretende tornar pública a base de dados das conversas vazadas justamente porque há informações de foro íntimo, o que pode prejudicar figuras que não são públicas e não estão envolvidas diretamente nos escândalos políticos.
O que podemos depreender até aqui? É muito comum que jornalistas se protejam sob o discurso da ética jornalística como um fim em si mesma, quase como respaldo moral para suas ações neutras e livres de interesses. As “regras do jogo” são aceitas pelos profissionais na medida em que a ética serve de estratégia para adentrar o campo jornalístico e garantir-lhes lucro simbólico.
Como pensar esses pressupostos no caso de O Antagonista? Aqui, concordo com uma pesquisa recente feita por Tine Figenschou e Karoline Ihlebaek sobre mídias alternativas conservadoras, também comentada na edição #57 da newsletter do objETHOS. As autoras olharam como veículos de extrema-direita da Noruega criticam coberturas da mídia hegemônica. O que concluíram? Há uma linha entre construir textos efetivamente críticos, com embasamento racional, e outros que não passariam de uma atitude meramente cínica desses sites, na busca por deslegitimar o jornalismo. Este me parece ser o caso de O Antagonista, que se vende como jornalístico, mas atua como relações públicas da Operação Lava Jato.
Estamos discutindo ética jornalística publicamente – e isso é bom
Até então, tratamos de dúvidas levianas sobre procedimentos jornalísticos que tocavam em pontos inócuos, mas logo corrigidos pela redação do Intercept. É Monique Cheker quem, em nota ao Antagonista, diz não se reconhecer nas mensagens expostas e assegura existir nas matérias “dados errados e alteração de conteúdo”. Ao desconfiar que seu nome referia-se a outra pessoa, coloca em xeque todo o conteúdo das conversas.
O Intercept não precisava, mas resolveu apresentar “provas” de sua apuração para contestar a procuradora. Em uma extensa thread publicada no Twitter, são detalhados todos os procedimentos que levaram repórteres a concluírem que sim, a Monique dos diálogos vazados é, de fato, Monique Cheker. Jornalistas do Intercept recorreram a outras conversas no arquivo da Vaza Jato e à base de dados do portal de transparência da Procuradoria Geral da República, cruzando informações que evidenciaram a identidade da procuradora. Nos quinze tweets que compõem a thread, uma aula pública de jornalismo para profissionais e não-jornalistas.
É claro que, após essa resposta, não se viu nenhum comentário no site do Antagonista. Tampouco faz diferença se o Intercept agora trabalha em parceria com outros jornais, que veículos não qualifiquem mais os diálogos como “supostos” ou, ainda, que apurem por conta própria e confirmem os vazamentos do site de Greenwald. Parece ainda não importar que Moro e Dallagnol poderiam entregar seus celulares e acabar de vez com as dúvidas que giram em torno da veracidade das mensagens.
Apesar dos terraplanistas, que inventam qualquer malabarismo retórico para não confrontar o real, mesmo com tantas evidências, acredito que tornar mais transparentes os procedimentos jornalísticos é uma saída válida. Defendi algo semelhante neste texto para o objETHOS ao abordar o ensino de ética jornalística para não-jornalistas.
Concordo com Nick Couldry quando o pesquisador afirma que a “ética da mídia” deveria ser uma preocupação de todos nós, profissionais do ramo ou não. Mas entendo que debates nesta direção ainda estejam em fase de amadurecimento. Mal temos consciência de que o acesso à informação é um direito humano. É por isso que considero importantes discussões como a thread promovida pelo Intercept, mesmo que sejam iniciativas tímidas, com repercussão limitada. Apesar de tentar utilizar a ética jornalística como cortina de fumaça para se desvencilhar das evidências, O Antagonista tocou em um ponto fundamental, mesmo que às avessas: debater jornalismo deveria ser algo cada vez mais corriqueiro entre todos nós.
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Dairan Paul é doutorando em jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS.