No espaço de treze dias, entre meados de junho e início de julho, o ministro da Justiça, Sergio Moro, rebateu acusações e degustou elogios durante mais de dezesseis horas em duas sessões sucessivas e tumultuadas perante senadores e deputados do Congresso Nacional. Esperto, adotou uma dupla linha de defesa que visava os dois lados opostos de inquisidores.
Aos que o endeusam, Moro blindou-se diante dos parlamentares, em palestras e em entrevistas posteriores como o defensor da histórica Lava Jato, a ação que investiga desde 2014 a maior denúncia de corrupção da história do país, o indesmentível assalto multipartidário aos cofres da Petrobras, a maior empresa brasileira.
Aos que o criticam, Moro tentou defender-se de maneira frágil contra as consistentes denúncias do site de notícias The Intercept Brasil, revelando conversas nada éticas mantidas entre o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato. Desde 9 de junho, dez dias antes do depoimento de Moro ao Senado, o Intercept vem divulgando diálogos a cada dia mais constrangedores do juiz e de procuradores vazados do aplicativo russo Telegram – hoje baseado em Dubai, nos Emirados Árabes, e com 200 milhões de usuários (um deles, o papa Francisco).
Confrontado com o teor embaraçoso – para dizer o mínimo – de suas combinações privadas com os procuradores, Moro esquivou-se com uma tática dupla e contraditória: disse que não lembrava de nada e, ainda assim, garantia que nada daquilo aconteceu – se aconteceu, o material foi roubado por um hacker e criminosamente adulterado por jornalistas “sensacionalistas”. Agreste, o ministro se embrenhou em um terreno inóspito e desconhecido, tentando contrapor o que acha “mau” jornalismo do Intercept ao “bom” jornalismo do The New York Times e do The Washington Post em duas coberturas emblemáticas da imprensa: o caso Watergate e os “papéis do Pentágono”.
Na audiência com os senadores, Moro teve a pretensão de citar, erradamente, os dois casos mais notáveis do jornalismo americano, tentando ensinar ao repórter do Intercept como deveria agir. “Por que esse sensacionalismo, essa repercussão indevida? Que o Glenn Greenwald apresente o material às autoridades e ao Supremo Tribunal Federal para averiguar qualquer irregularidade. Vamos ver o que tem ali. Não esse sensacionalismo de divulgar, ao longo de um ano, todo dia um novo capítulo… Isso desmoraliza o veículo jornalístico”, reclamou Moro, propondo a entrega das conversas do Telegram à Polícia Federal (que ele, ministro da Justiça, comanda) ou ao STF (onde, em mensagem de abril de 2016, confessava privadamente sua confiança bilíngue no ministro Luiz Fux: “Excelente, In Fux we trust!”).
O pouco lembrado por Moro sobre Watergate, investigado pelo The Washington Post: “Se eles tinham a informação total desde o início, imagino que eles divulgavam desde o início. E não levavam um ano divulgando aquilo lá. O que eles fizeram: foram elaborando as matérias, segundo as informações que eles colhiam, e aí imediatamente divulgavam tudo”.
O pouco lembrado por Moro sobre os “papéis do Pentágono”, publicados pelo The New York Times: “[Os papéis] foram sendo divulgados à medida que eles tinham, eventualmente alguma coisa paulatina. Ninguém chegou lá e falou: ‘Ah, vamos levar um ano [para divulgar tudo], a conta-gotas, e sem apresentar a mais ninguém aquele material’. Inclusive, naquele caso, o material foi compartilhado com outros veículos de imprensa. Me parece um comportamento completamente diferente”.
A desastrada rota de fuga tentada sem sucesso pelo ministro mostra que, além da memória fraca e da falta de equilíbrio e isenção que cabe a um magistrado, Sergio Moro desconhece todos os fundamentos do bom jornalismo, que ganha relevância histórica sempre que atende à liberdade de expressão e ao direito do cidadão de saber a verdade sobre o poder e as autoridades que o pervertem. Por ignorância, mais do que por má-fé, talvez, Moro imagina que Glenn Greenwald é um mau jornalista em comparação a seus conterrâneos Neil Sheehan, Carl Bernstein e Bob Woodward.
Para combater a desinformação do ministro, vamos lembrar alguns detalhes importantes que sucessivamente levaram o Times de Sheehan (em 1971) e o Post de Bernstein e Woodward (em 1972-74) a escavar os bastidores secretos da Guerra do Vietnã e a denunciar o envolvimento da Casa Branca de Nixon na invasão do edifício Watergate. Para aumentar a irritação do ministro, vale recordar também o vazamento que revelou ao mundo (em 2013) o secreto sistema de vigilância eletrônica planetária da americana Agência de Segurança Nacional (NSA), denúncia publicada pelo jornal inglês The Guardian. Os arquivos da NSA foram, segundo o governo americano, roubados pelo ex-analista de sistemas da CIA Edward Snowden e repassados a um repórter americano que ele conhecia apenas pela internet e que morava no Rio de Janeiro: Glenn Greenwald – ele mesmo, o “mau” repórter que hoje atazana a vida de Moro com suas inconfidências ao celular.
Em momentos distintos da história americana, esse poderoso quarteto de repórteres – Sheehan, Bernstein, Woodward e Greenwald -, por méritos justificados e relevância jornalística, foi agraciado com o mais importante troféu da imprensa dos Estados Unidos: o Prêmio Pulitzer, conferido desde 1917 pela prestigiosa Universidade de Columbia, em Nova York. No Brasil, também sobrevoado pela espionagem da NSA, Greenwald ainda conquistou, com o jornal O Globo, em 2014, a versão local do Pulitzer, o Prêmio Esso de Reportagem. No mesmo ano, o documentário sobre seus encontros secretos com Snowden em Hong Kong, Citizenfour, dirigido por Laura Poitras, o levou ao palco principal de Hollywood para receber o Oscar de Melhor Documentário.
A opção antagonista pelo crime
É surpreendente que Sergio Moro, incapaz de observar a necessária compostura de juiz isento, ainda tenha a ousadia de definir um repórter com o pedigree de Greenwald como um profissional “sensacionalista”. Mas o que mais espanta, de fato, é o número no Brasil de sites, blogs e articulistas amestrados que, esquecidos dos fundamentos que o ministro não conhece nem respeita, sucumbiram como rústicos antagonistas dos princípios essenciais do bom jornalismo. Gastam o espaço de suas colunas e a lábia de seus vídeos repetindo com ar beatífico a cantilena de que o vasto material vazado do Telegram é a “invasão de um hacker sobre conversas privadas, produto de um roubo, material de autenticidade duvidosa, um crime cibernético, sujeito a manipulações etc.” Os antagonistas do bom e relevante jornalismo acusam – sem provas – o mensageiro de crime, ignorando a gravidade incontestável das mensagens, que apontam para o criminoso desequilíbrio da justiça e a parcialidade bandoleira de quem tinha o compromisso de preservar o direito e a lei.
O Intercept agora e, no passado, o Times, o Post e o Guardian, ao publicar suas denúncias de impacto, levaram em conta o interesse maior do cidadão e das sociedades constitucionalmente livres – o direito absoluto que, nas democracias, tem o povo de saber a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade transparente sobre o que fazem seus governantes. A lei não existe para proteger o segredo de malfeitos, nem para proteger a privacidade de malfeitores investidos de autoridade.
O direito moral à verdade é maior do que as travas legais que protegem a mentira – como aconteceu antes com a cobertura jornalística de Watergate, os documentos do Pentágono, os arquivos de espionagem da NSA e como acontece agora com as conversas reveladas do Telegram.
Vazar uma conversa amoral ou um papel secreto que autoridades e governos querem esconder de seus cidadãos é um direito, um dever e um benefício que presta a imprensa responsável, independente e livre, que nunca antagoniza a verdade e nunca abandona o bom jornalismo. No Brasil, os vazamentos constrangedores do Intercept excitaram tanto alguns parlamentares governistas e certos blogueiros bolsonaristas que, em coro, uns e outros chegaram a pedir a deportação e até a prisão do jornalista Glenn Greenwald pelo “crime” de cumprir exemplarmente sua missão de informar.
Esse exagero não houve nem em episódios mais extremos do jornalismo, como aconteceu nos Estados Unidos nos casos do Watergate e dos documentos do Pentágono. Lá, os repórteres diretamente envolvidos foram respeitados, protegidos, exaltados, premiados e, por força de seu trabalho de transcendência, provocaram decisões que melhoraram o país e mudaram a História.
Com a corajosa publicação dos “papéis do Pentágono”, em 1971, o Times foi levado pela Casa Branca de Richard Nixon às barras da Suprema Corte, que, em decisão histórica, rejeitou a censura do governo e assegurou os princípios de imunidade dos direitos fundamentais da Primeira Emenda da Constituição, reafirmando para sempre a liberdade de imprensa nos Estados Unidos.
Com a persistente investigação sobre o assalto ao QG eleitoral do Partido Democrata no edifício de Watergate e seus graves desdobramentos, o Post acabou revelando a conexão entre os assaltantes e seu chefe maior, o republicano Nixon, que, em julho de 1974, foi obrigado pela Suprema Corte a divulgar as fitas secretas de gravações no Salão Oval. Em 9 de agosto, dezesseis dias após a decisão da justiça, e para evitar o impeachment iminente, Nixon tornou-se o primeiro presidente americano a renunciar.
Com a denúncia da espionagem eletrônica da NSA em amplitude planetária, realizada com o vazamento de arquivos secretos repassados por Edward Snowden a Glenn Greenwald, em 2013, o jornal The Guardian deu ao mundo a terrível consciência do Big Brother orwelliano que paira virtualmente sobre toda a humanidade. Especificamente sobre o Brasil, também espionado nos celulares da presidente Dilma Rousseff e na central telefônica da Petrobras, a ameaça foi detalhada pelo próprio Snowden em carta aberta ao povo brasileiro, publicada em meados de dezembro de 2013 pela Folha de S.Paulo. Diz ele:
“Na NSA, testemunhei com preocupação crescente a vigilância de populações inteiras sem que houvesse qualquer suspeita de ato criminoso, e essa vigilância ameaça tornar-se o maior desafio aos direitos humanos de nossos tempos.
A NSA e outras agências de espionagem nos dizem que, pelo bem de nossa própria ‘segurança’ – em nome da ‘segurança’ de Dilma, em nome da ‘segurança’ da Petrobras -, revogaram nosso direito de privacidade e invadiram nossas vidas. E o fizeram sem pedir a permissão da população de qualquer país, nem mesmo do delas.
Hoje, se você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode rastrear onde você se encontra, e o faz: ela faz isso 5 bilhões de vezes por dia com pessoas no mundo inteiro. Quando uma pessoa em Florianópolis visita um site na internet, a NSA mantém um registro de quando isso aconteceu e do que você fez naquele site. Se uma mãe em Porto Alegre telefona a seu filho para lhe desejar sorte no vestibular, a NSA pode guardar o registro da ligação por cinco anos ou mais tempo.
A agência chega a guardar registros de quem tem um caso extraconjugal ou visita sites de pornografia, para o caso de precisar sujar a reputação de seus alvos. Senadores dos EUA nos dizem que o Brasil não deveria se preocupar, porque isso não é ‘vigilância’, é ‘coleta de dados’. Dizem que isso é feito para manter as pessoas em segurança. Estão enganados.
Existe uma diferença enorme entre programas legais, espionagem legítima, atuação policial legítima – em que indivíduos são vigiados com base em suspeitas razoáveis, individualizadas – e esses programas de vigilância em massa para a formação de uma rede de informações, que colocam populações inteiras sob vigilância onipresente e salvam arquivos de tudo para sempre.
Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Pela busca de poder.”
Controlar o governo, não o contrário
Nada disso se saberia, muito menos no Brasil, se os arquivos secretos da NSA não tivessem sido roubados por Snowden, autor assumido do maior crime cibernético da história. O interesse público de milhões, até bilhões de pessoas no mundo, foi atendido pelo vazamento do The Guardian, contra os propósitos ocultos e criminosos de algumas dezenas de altos dirigentes dos serviços de espionagem, contrariados em seu paranoico secretismo. O valor maior e mais elevado da sociedade se sobrepôs aos privilégios ocultos e ilegais de uma fração da burocracia que cuidava apenas de perpetuar ações lesivas aos direitos fundamentais do cidadão. Isso é o que pensa todo jornalista honesto, consciente de seu papel de servir ao povo, não ao poder. Ou, como definiu o Times, ao ganhar na Suprema Corte o direito de publicar sua demolidora série de 49 páginas em nove edições diárias com os papeis secretos do Pentágono: “O fato é que, a partir da publicação desse material, os cidadãos americanos emergem como ganhadores. Eles ganharam em conhecimento do passado, o que deve servi-los bem no futuro. Eles ganharam na compreensão de seus direitos sob a Constituição. E eles ganharam no esforço perene do homem livre para controlar seu governo, e não o contrário.”
Um antagonista do bom e honesto jornalismo, submisso apenas ao seu perene esforço de bajular o poder e seu capitão de plantão, não hesitaria jamais: ficaria ao lado da NSA e de sua tropa de arapongas, todos indignados com a inconfidência do ex-funcionário que decidiu trocar o errado pelo certo, revelando a espionagem planetária que assedia a todos.
Embora se desconheça o tamanho exato do megavazamento de Snowden, as agências de inteligência estimam que foram acessados 15 mil arquivos na Austrália, 58 mil no Reino Unido e cerca de 1,7 milhão de registros sigilosos nos Estados Unidos, descobrindo acordos secretos de serviços de espionagem de vários países, além da dócil cumplicidade de gigantes da internet como Microsoft, Google, Facebook, Yahoo e Apple, que fazem parte de nosso dia a dia.
Em dezembro de 2013, Alan Rusbridger, o editor do The Guardian que coordenou o trabalho de Greenwald, deu a dimensão do estrago para a espionagem americana: ”Até agora, nós publicamos só 26 dos 58 mil documentos secretos que recebemos aqui”. Aquilo representava menos de 1% dos documentos vazados por Snowden e relativos à Grã-Bretanha.
Editor do Guardian por duas décadas, Rusbridger era o digno sucessor de uma figura lendária da imprensa britânica. Charles Prestwich Scott (1846-1932), ou apenas C.P. Scott, foi editor do jornal por 57 anos. Jornalista e membro do Partido Liberal, ele deu conteúdo a um jornal mais progressista e, por isso, com natural destaque na conservadora sociedade inglesa na transição do século XIX para o final da I Guerra Mundial (1914-1918). O jornal ganhou o respeito da esquerda ao apoiar os republicanos contra Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e, hoje, tem a imagem de um diário de centro-esquerda.
No livro Homage to Catalonia, um relato sobre sua experiência de combatente antifascista na Espanha, o jornalista e escritor George Orwell (1903-1950) escreveu: “Dos nossos grandes jornais, o Guardian é o único que me dá um respeito crescente por sua honestidade”. Essa imagem era fruto da férrea liderança de Scott, que ensinava: “A primeira obrigação de um jornal é ser preciso ao dar as notícias. O comentário é livre, mas os fatos são sagrados. Até mesmo um editorial tem suas responsabilidades: é bom ser franco e é ainda melhor ser justo”.
Rusbridger decidiu ser franco e justo ao ser convocado pelo Comitê Especial de Assuntos Domésticos do Parlamento para falar sobre o vazamento dos arquivos da NSA. Ele mostrou-se “ligeiramente surpreso” ao ouvir a pergunta de azedo perfume bolsonarista formulada pelo presidente do comitê, Keith Vaz: “O senhor ama este país?”
O editor respondeu no fígado: “Nós somos patriotas e uma das coisas pelas quais somos patrióticos é a natureza da democracia, a natureza de uma imprensa livre, e o fato de que se pode, neste país, discutir e relatar essas coisas. Existem países – e não são geralmente democracias – onde a imprensa não está livre para escrever sobre isso e onde os serviços de segurança dizem aos jornalistas sobre o que escrever. Esse não é o país em que vivemos, na Grã-Bretanha, e essa é uma das coisas que amamos neste país”.
Apesar da amorosa declaração sobre a pátria, Rusbridger teve o cuidado de publicar o sensível material do NSA não pela sede londrina do jornal, mas pelo seu braço americano, o The Guardian US, a edição online com base em Nova York, o maior website jornalístico do mundo em língua inglesa depois do Times nova-iorquino. Em Londres, o jornal estaria sujeito às duras leis antiespionagem que restringem duramente a imprensa em solo britânico, impregnado de uma forte tradição repressiva nos casos que envolvem segredos de Estado. Já nos Estados Unidos, a edição do The Guardian vive sob o manto protetor da Primeira Emenda que, desde 1791, proíbe qualquer limite à liberdade de expressão e de imprensa.
A distinção máxima do Pulitzer
É oportuno registrar que Grã-Bretanha e Estados Unidos nutrem um ódio mortal por Snowden, que vazou o material para Greenwald. Snowden certamente seria preso e condenado, talvez à morte, se americanos e ingleses botassem a mão nele. O sentimento recalcado de vingança contaminava até os antagonistas da imprensa americana. Na liberal rede CNN, seu usualmente ponderado especialista em assuntos legais, Jeffrey Toobin, esbravejou: “Snowden é um notável narcisista, que merecia estar na cadeia”. Depois do encontro decisivo com Greenwald em Hong Kong, Snowden tratou de fugir para a Rússia, onde encontrou proteção e asilo permanente. Mas os benefícios globais da revelação para a privacidade dos cidadãos, no mundo inteiro, só ficaram evidentes pelo impacto regenerador do vazamento da NSA.
Em dezembro de 2013, seis meses após as primeiras denúncias do The Guardian, a imprensa publicou o relatório do Grupo Presidencial para Revisão em Inteligência e Tecnologia de Comunicações, uma equipe criada por Barack Obama logo após as denúncias com o objetivo de rever a intrusiva atividade de vigilância do governo. Embora integrado por membros diretamente ligados à Casa Branca e com abrangência limitada, o grupo concluiu que a vigilância da NSA “não é essencial para a prevenção de ataques terroristas”. Com o título de “Liberdade e segurança em um mundo em mudança”, o relatório constatou que as informações sobre terrorismo “poderiam ser facilmente obtidas em tempo hábil, usando meios convencionais”.
Para desencanto dos antagonistas de sempre, que acham que os segredos dos poderosos devem ser preservados a ferro e fogo, até o grupo de Obama entendeu, por meios transversos, que o vazamento da NSA prestou um relevante serviço público ao escancarar a obsessão de vigilância que contamina o governo americano. O The Washington Post publicou, em 12 de janeiro de 2014, um relatório acachapante contra a paranóia da espionagem. A New America Foundation, instituto especializado em políticas públicas, investigou 225 indivíduos recrutados pela Al-Qaeda ou ligados a grupos jihadistas desde o ataque de 11 de setembro às Torres Gêmeas e constatou que a contribuição da vigilância da NSA para identificar suas conexões foi mínima – apenas 1,8% dos casos. A coleta de dados telefônicos pela NSA, conclui o relatório, “não teve qualquer impacto discernível sobre a prevenção de atos de terrorismo”.
É relevante lembrar que o The Guardian, como nos casos anteriores do The New York Times e do The Washington Post, recebeu a distinção máxima das 21 categorias em que se divide o Pulitzer: o Prêmio de Serviço Público, o único que recebe uma medalha de ouro. Ou seja, é o máximo reconhecimento do valor jornalístico e do supremo interesse público embutidos até mesmo em reportagem nascida a partir da invasão de um hacker sobre arquivos secretos ou privados, produto de um roubo evidente, ou um crime cibernético – coisas que tanto horrorizam os antagonistas do bom jornalismo, que procuram antes agradar aos amigos do poder em vez de atender às conveniências maiores da sociedade, onde os valores morais prevalecem sobre os legais -, como atestam, aliás, o Pulitzer e a Universidade de Columbia há mais de um século. É exatamente o que faz o Intercept, agora, com as conversas indecorosas de Moro e sua força-tarefa vazadas pelo Telegram.
O frenesi com que os antagonistas tentam criminalizar o desempenho profissional de Greenwald e do Intercept torna-se um ridículo atroz quando se lembra que Moro agora condena, como pecado, o que era apenas virtude quando praticado por ele: o vazamento, julgado pelo conteúdo, não pela forma.
Moro escorrega no ponto
Em 9 de abril passado, no programa Conversa com Bial, na Rede Globo, quando viralizou sua folclórica dificuldade para lembrar qualquer coisa (“A última biografia que eu li? Puxa vida… eu tenho uma péssima memória!…”), Moro explicou porque não se arrepende de ter vazado a conversa da presidente Dilma Rousseff com seu antecessor, Lula, na véspera de sua fracassada nomeação para a Casa Civil. No minuto 35’38’’ da gravação, disponível no YouTube, Moro conta ao entrevistador Pedro Bial: “O problema ali não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo…. O problema era o diálogo em si, o conteúdo do diálogo. Ali era uma ação visando burlar a Justiça. Esse era o ponto.”
Data vênia, é um raciocínio perfeito, que Greenwald poderia devolver com as mesmas palavras na testa de Moro, o feiticeiro que agora reclama do mesmo feitiço: “O problema ali no Telegram não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, ministro… O problema era o diálogo em si, o conteúdo do diálogo. Ali era uma ação [do juiz com os procuradores] visando burlar a Justiça. Esse era o ponto, ministro.” Contagiados pela mesma amnésia, sempre cômoda e providencial, que socorre Moro nos momentos de apuro, os antagonistas do bom jornalismo também esqueceram completamente desse juízo inspirador do juiz sem memória.
O pelotão de fuzilamento dos que estão com o dedo no gatilho para executar Greenwald e o Intercept tem arrepios quando escuta a palavra “vazamento”. Mas, ingrato, ele não lembra que existe o vazamento oportuno e favorável, aquele que Moro e sua força de tarefas pouco éticas aceitam, praticam e estimulam. Em fornada mais recente do Telegram, referente a agosto de 2017, Moro e os procuradores do MP discutem privadamente o agravamento político da Venezuela de Maduro com autoridade e pretensão que não existem nem no Conselho de Segurança da ONU. É o momento em que estão sendo vasculhadas as contas da Odebrecht na Suíça para pagar suborno a autoridades em Caracas. Moro, em 5 de agosto, sugere a Dallagnol: “Talvez seja o caso de tornar pública a delação da Odebrecht sobre propinas na Venezuela…”
Moro, com certeza, não deve lembrar dessa grave insinuação. Mas até o antagonista mais cabeçudo deve concordar que uma tradução perfeita para “tornar pública” é “vazar”. Ou seja, vazamento na terra dos outros é refresco – vale pelo conteúdo, não importa a captação, nem sua divulgação…. Com dose de cinismo compatível com a situação, Dallagnol lembrou que uma cláusula de sigilo com o STF impedia qualquer publicidade, mas sempre existia a fórmula salvadora do vazamento – saborosa quando é favorável, ardida quando é revelada pela inconfidência do Telegram. Dallagnol, com o recato de evitar a palavra maldita, respondeu a Moro: “Não dá para tornar público simplesmente porque violaria acordo [com o STF], mas dá para enviar informação espontânea [para a Venezuela] e isso torna provável que em algum lugar no caminho alguém possa tornar público”.
Não é preciso ser um exegeta do Direito para entender que a dissimulada “informação espontânea” ou a oblíqua observação de que “alguém, em algum lugar, no meio do caminho” possa “tornar público” os termos da delação nada mais são do que uma camuflagem para o bom e velho vazamento. Só um antagonista do bom senso poderia pensar o contrário. Os procuradores têm plena consciência dos riscos que assumem com a premeditação do crime. O procurador Paulo Galvão, o PG, adverte no Telegram: “Vejam que uma guerra civil lá é possível e qq [qualquer] ação nossa pode levar a mais convulsão social e mais morte”. Senhor da força-tarefa, da vida e da morte, Dallagnol responde, com a sabedoria dos deuses: “PG, quanto ao risco, é algo que cabe aos cidadãos venezuelanos ponderarem. Eles têm o direito de se insurgir”.
O juiz parcial está nu
Quando se soube que a ex-procuradora-geral da Venezuela, Luísa Ortega Díaz, destituída e exilada na Colômbia, veio ao Brasil para falar com Rodrigo Janot, o procurador Paulo Galvão aproveitou para fazer a provocação precisa: “Vcs que queriam leakar as coisas da Venezuela, tá aí o momento. A mulher está no Brasil”.
Como sabem até os monolíngues, leakar é a gíria baseada no verbo leak, que em português significa “vazar”. Dito e feito. Em 12 de outubro, semanas após a visita secreta de dois procuradores venezuelanos a Curitiba, Ortega publicou em seu site na internet dois vídeos com trechos de depoimentos do ex-diretor da Odebrecht na Venezuela, Euzenando Azevedo, falando sobre propinas para a campanha eleitoral de Nicolás Maduro.
A sequência de diálogos de Moro com sua força de tarefas impublicáveis, agora transcrita pelo Intercept, desnuda um juiz de inegável, condenável mau comportamento perante o Código de Ética da Magistratura e de clara afronta à Constituição, que exigem imparcialidade e isenção do magistrado entre acusação e defesa. Os diálogos com os procuradores da Lava Jato mostram Moro tomando claramente partido na investigação, orientando o Ministério Público sobre estratégias de abordagem, sugerindo inversão da data de operações futuras, discutindo detalhes de ações ainda não realizadas, apontando testemunha e concordando com a ideia de falsa denúncia para forçar o depoimento de uma testemunha potencial, como na mensagem de 7 de dezembro de 2015. “Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é séria”, escreveu Moro. “Estou pensando em fazer uma intimação oficial até, com base em notícia apócrifa”, antecipou Dallagnol. Indiferente à ilegalidade, Moro endossou a violência: “Melhor formalizar então”, respondeu o juiz, segundo o Intercept.
A secreta promiscuidade entre o juiz e os procuradores, agora revelada nas conversas que se imaginavam privadas do Telegram, mostra Sergio Moro fora de prumo, atuando claramente a favor da acusação, desequilibrando a balança da Justiça, pelo qual ele era constitucionalmente responsável. Na noite de 10 de maio de 2017, às 22h12, horas após o depoimento de Lula na Lava Jato, Moro não teve escrúpulos em orientar a acusação, não como juiz, mas como um reles torcedor de arquibancada: “Talvez vcs devessem amanhã editar uma nota esclarecendo as contradições do depoimento com o resto das provas ou com o depoimento anterior dele”, completando um minuto depois: “Por que a Defesa já fez o showzinho dela”.
Entre si, os procuradores exorbitavam de suas atribuições, lamentando a decisão do STF, em 28 de setembro de 2018, de liberar uma entrevista de Lula, na cadeia, à repórter Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo. A procuradora Laura Tessler se mostra indignada no Telegram: “Que piada!!! Revoltante!!!”, escreve, com a ênfase de três pontos de exclamação, conforme o Intercept. “Lá vai o cara fazer palanque na cadeia. Um verdadeiro circo… e a gente aqui fica só fazendo papel de palhaço com um Supremo desse…”. Outra procuradora, Isabel Groba, ecoa o insulto ao STF com outra ofensa, escoltada por exatas 21 exclamações, conforme a transcrição: “Mafiosos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!”.
Uma hora mais tarde, a procuradora Tessler voltou ao aplicativo para confessar a verdadeira preocupação do grupo do MP: a eleição presidencial em primeiro turno, que aconteceria uma semana depois, em 7 de outubro. Uma entrevista do preso Lula, presumia a procuradora, poderia turbinar a eleição do candidato do PT, Fernando Haddad. “Sei lá… Mas uma coletiva antes do segundo turno pode eleger o Haddad”, temia Tessler na sua inconfidência pelo Telegram. Em outra conversa com o coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, uma procuradora de nome Carol diz, às 11h22 daquele dia: “Ando muito preocupada com uma possível volta do PT, mas tenho rezado muito…”. Dez minutos depois, Dallagnol concorda: “Valeu, Carol! Reza sim, precisamos como país”.
Alarmado com a possibilidade, o grupo de Dallagnol e outros doze procuradores começou a pensar em fórmulas para atrapalhar a entrevista, na impossibilidade de impedi-la. A alternativa era esculhambar o encontro exclusivo com a repórter da Folha de S.Paulo, transformando-o em uma imensa entrevista coletiva, que provavelmente atrairia repórteres do país e do mundo. “Abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona, mas diminui a chance de a entrevista ser direcionada”, imaginou o procurador Januário Paludo. “Tentar ampliar para outros, para o ‘circo’ ser menor armado e preparado, com a chance de, com a possível confusão, não acontecer”, escreveu o procurador Júlio Noronha.
A aflição da Lava Jato só acabou às 22h49 daquele mesmo dia, quando o ministro Luiz Fux, do STF, atendeu ao Partido Novo e cancelou a entrevista, alegando sem qualquer constrangimento “a necessária relativização excepcional da liberdade de imprensa”. Essa afinidade com Fux foi demonstrada em uma conversa de abril de 2016, quatro meses após a abertura na Câmara dos Deputados do processo de impeachment de Dilma Rousseff, consumado no Senado Federal em agosto daquele ano. Dallagnol informa aos procuradores sobre uma conversa reservada que teve com o ministro do STF: “Disse para contarmos com ele para o que precisarmos, mais uma vez. Só faltou, como bom carioca, chamar-me pra ir à casa dele rs. Mas os sinais foram ótimos. Falei da importância de nos protegermos como instituições. Em especial no novo governo”. Ao repassar a mensagem ao juiz, ele recebeu a já citada resposta de Moro: “Excelente. In Fux we trust”.
Imprensa séria quebra o isolamento
A aberração desse comportamento desnivelado de Sergio Moro, que deveria ser equilibrado e factualmente imparcial, fica clara na evidência de que não existe no Telegram nenhuma conversa do juiz com os advogados da defesa de Lula. Ou seja, nesse caso específico, Moro tinha claramente um lado, uma preferência, um parceiro oculto, uma confraria secreta: o Ministério Público, que ele orientava por baixo dos autos, no escurinho do aplicativo aparentemente sigiloso, para contrapor e incitar o “showzinho” da acusação.
Não cabe a procuradores diligentes a missão pervertida de atrapalhar a imprensa, sabotando uma entrevista exclusiva para torná-la uma coletiva – não pelo louvável objetivo da mais ampla informação, mas pela intenção rasteira de convertê-la em uma “zona, uma confusão, um circo”, só para embaraçar o livre discernimento do eleitor sobre um ou outro candidato presidencial. Não cabe a um juiz sério aprovar tudo isso, ou chancelar uma prova falsa para forçar um testemunho, ou instruir a comunicação do MP à opinião pública, ou restringir a investigação para não melindrar o ex-presidente FHC, “cujo apoio é importante”, como explica Moro a Dallagnol.
Quando apareceram as primeiras conversas do Telegram, no início de junho passado, os bolsonaristas infiltrados em blogs, sites e redes sociais saíram em precipitada defesa de Sergio Moro, resumindo tudo aquilo como um solitário ataque de Glenn Greenwald, que diziam ser “um suposto jornalista” com o obscuro objetivo de enterrar a Lava Jato e tirar Lula da cadeia. Nada além disso… Mas, para desconsolo dos inconformados com o jornalismo independente, o consistente vazamento do Telegram de repente deixou de ser uma empreitada isolada e obsessiva do Intercept e ganhou a adesão crescente de outros jornalistas e veículos de prestígio, que não costumam antagonizar a notícia.
O primeiro foi o jornalista Reinaldo Azevedo, odiado pelos petistas e admiradores de Lula como autor de um livro de sucesso, O país dos petralhas, em dois volumes. Trotskista na juventude e hoje um declarado “conservador liberal de centro-direita”, Azevedo foi redator-chefe das revistas Primeira Leitura e Bravo!, editor de política da Folha de S.Paulo e, agora, mantém um blog de sucesso no portal UOL. Aos 57 anos, ele apresenta nos finais de tarde da rádio BandNews FM o programa O é da coisa¸ hoje um dos espaços mais criativos, críticos e inteligentes da imprensa brasileira, um antagonista declarado da ignorância da milícia bolsonarista, entorpecida entre o criador e sua criatura: o desbocado guru Olavo de Carvalho e seu grosseiro seguidor Jair Bolsonaro.
Além do bom humor e das refinadas ilustrações literárias, seus comentários mostram um largo conhecimento jurídico e o fio agudo do rigor linguístico para esquartejar a indigência vocabular do tosco capitão-presidente e seus louvaminheiros. Azevedo foi o primeiro jornalista, fora do Intercept, escolhido por Greenwald para compartilhar os arquivos do Telegram. Logo se juntou a eles a Folha de S.Paulo, que desmontou a falácia dos bolsonaristas atestando a integridade dos registros vazados. Dois repórteres do jornal, Ricardo Balthazar e Flávio Ferreira, investigaram as datas e o conteúdo das mensagens que eles mesmos trocaram com os procuradores e atestaram que nunca houve nenhuma manipulação.
Em 23 de junho, duas semanas após o primeiro vazamento do Telegram, o Intercept anunciou sua primeira parceria institucional de peso, com o jornal Folha de S.Paulo, mostrando com mais detalhes a promiscuidade entre Moro e os procuradores da Lava Jato, articulados para reduzir as tensões entre o juiz de Curitiba e os ministros do Supremo em Brasília. A Folha fez antes o seu dever de casa, para confessar depois sua confiança no material publicado pelo Intercept:
“Nos últimos dias, repórteres do jornal e do site trabalharam lado a lado, pesquisando as mensagens e analisando seu conteúdo. Como o material é muito vasto, os jornalistas têm dedicado bastante tempo para analisar os diálogos, examinar o contexto das discussões nos vários grupos de mensagens e checar as informações encontradas para verificar a consistência do material obtido pelo Intercept.
O pacote obtido pelo Intercept reúne mensagens privadas trocadas pelos procuradores em vários grupos no aplicativo Telegram desde 2014, incluindo diálogos com o ministro Moro, que foi o juiz responsável pelos processos da Lava Jato em Curitiba até 2018. Além das mensagens, o acervo inclui áudios, vídeos, fotos e documentos compartilhados no aplicativo.
Ao examinar o material, a reportagem da Folha não detectou nenhum indício de que ele possa ter sido adulterado.Os repórteres, por exemplo, buscaram nomes de jornalistas da Folha e encontraram diversas mensagens que de fato esses profissionais trocaram com integrantes da força-tarefa nos últimos anos, obtendo assim um forte indício da integridade do material.
Após as primeiras reportagens sobre as mensagens, publicadas pelo Intercept, no dia 9, Moro e os procuradores reagiram defendendo sua atuação na Lava Jato, mas sem contestar a autenticidade dos diálogos revelados. Depois de alguns dias, passaram a colocar em dúvida a integridade do material, além de criticar o vazamento das mensagens. Até agora, porém, Moro e os procuradores não apresentaram nenhum indício de que as conversas reproduzidas sejam falsas ou tenham sido modificadas.”
Logo depois, para desencanto dos mais fanáticos antagonistas do bom jornalismo, juntou-se ao grupo a conservadora revista Veja, que formou uma força-tarefa de cinco repórteres para trabalhar com outros três do Intercept e, durante duas semanas, comparar os diálogos do Telegram com os processos judiciais e entrevistas relacionados a eles. Checaram exatas 649.551 mensagens do aplicativo e, ao final, o exemplar editorial de Veja chegou a uma conclusão deprimente para aqueles que desprezam o jornalismo sério:
“Pela leitura do material, fica evidente que as ordens do então juiz eram cumpridas à risca pelo Ministério Público e que ele se comportava como parte da equipe de investigação, uma espécie de técnico do time – não como um magistrado imparcial.
Alguns dos exemplos de irregularidades: Moro apontava abertamente aos procuradores as delações de sua preferência, alertava sobre a falta de provas nas denúncias e chegava a receber material dos procuradores para embasar suas decisões. Veja sempre foi – e continua – a favor da Lava Jato. A luta contra a corrupção tem sido um dos pilares da nossa história. Mas os diálogos que publicamos nesta edição violam o devido processo legal, pedra fundamental do estado de direito – que, por sinal, é mais frágil do que se presume, ainda mais na nossa jovem democracia.
Jamais seremos condescendentes quando as fronteiras legais forem rompidas (mesmo no combate ao crime). Caso contrário, também seríamos a favor de esquadrões da morte e justiceiros. Há quem aplauda e defenda esse tipo de comportamento, reação até compreensível no cidadão comum, cansado de tantos desvios éticos. Mas como veículo de mídia responsável não podemos apoiar posturas como essa.
Um dia, o justiceiro bate à porta e, sem direito a uma defesa justa, a pessoa é sumariamente condenada. Na Lava Jato ou nas operações que virão no futuro, é fundamental que a batalha contra a corrupção seja feita de acordo com o que diz o regime constitucional. Essa é a defesa de todos os brasileiros contra os exageros do Estado.”
Com a elegância de não citar os antagônicos que abertamente “aplaudem e defendem” aquelas violações, a revista abandonou a pétrea defesa de Sergio Moro escancarada em dezenas de capas ao longo de uma década e, no espaço de três semanas, produziu duas edições demolidoras para a imagem consagrada de quem ela mesma chamava de “grande herói da Lava Jato”.
A meteorologia dos fatos
No domingo, 14 de julho, o grupo do jornalismo honesto ganhou o endosso do jornal espanhol El País, uma das publicações de maior credibilidade do mundo. Sem a preguiça dos antagonistas que detestam o esforço ritual dos bons repórteres, o El País fez uma incontroversa parábola: “Se alguém diz que está chovendo, e outra pessoa diz que não está, não é trabalho do jornalista citar as duas — é ir olhar lá fora”. Com a precaução de um guarda-chuva em um braço e a cartilha do jornalismo de investigação no outro, o jornal espanhol foi lá fora conferir a meteorologia dos fatos. É possível provar a veracidade das conversas, como garante o Intercept, sem comprovar a origem e a fonte dos vazamentos do Telegram? Conclusão do jornal:
“O EL PAÍS testou este impasse. Com o auxílio de uma fonte externa ao The Intercept, que prefere preservar sua identidade, tivemos acesso a parte de um arquivo de mensagens de um dos chats mencionados nas reportagens e comparamos seu conteúdo com o material disponibilizado pelo site. O conteúdo é idêntico. À parte imagens, que não estavam disponíveis nos documentos consultados, as informações são as mesmas em ambos os chats e mostram o dia a dia de conversas de trabalho entre procuradores, assessores de imprensa e jornalistas. A partir deste material, identificamos outras conversas com potencial de verificação. Inclusive, mensagens do EL PAÍS com pedidos de informações enviados à Lava Jato puderam ser identificadas. […]
Ao ter acesso aos arquivos do The Intercept, vemos que a consulta ao material é artesanal, e depende de busca por termos em diversos chats – o site não mapeou o número total de documentos nem de chats disponíveis. A quantidade do material faz com que o processo de entrevista dos dados seja lento e bastante trabalhoso. A maioria das conversas traz apenas conteúdos corriqueiros que, certamente, não geram interesse público, logo, não haveria motivo para terem sido inventadas.”
Nem o antagonista mais asnático poderá sustentar a falácia de que Azevedo, Veja, Folha e El País formam uma inesperada ORCRIM, uma organização criminosa interessada apenas em sepultar a Lava Jato e colocar Lula em liberdade. A investigação ainda no início do Intercept, que já ganhou o reforço das equipes da revista e dos jornais de São Paulo e de Madri, além da adesão do influente jornalista da BandNews, antecipa coisas mais graves pela frente. Na semana passada, foi divulgado o primeiro áudio de Deltan Dallagnol e, segundo o colunista político Ricardo Noblat, de Veja, o total de arquivos de som chega a 2 mil.
Os números retumbantes apurados pela Lava Jato desde março de 2014 mostram que a maior investigação de corrupção da história brasileira, no seu conjunto, está muito acima dos desvios de conduta e abusos de poder de Sergio Moro. No Petrolão, foi apurado o rombo de R$ 6,5 bilhões em propinas e o total de ressarcimento pedido pela Justiça, incluindo multas, já supera os R$ 40 bilhões. A ação produziu até agora noventa acusações contra 429 pessoas, gerando 244 condenações que somam 2.250 anos de pena. Na rede da Polícia Federal, caiu pela primeira vez a fina flor da plutocracia nacional – os donos bilionários das treze maiores empreiteiras, que faziam a intermediação entre os executivos corruptos da petroleira e os desonestos palacianos e congressistas do poder federal em Brasília.
A massiva delação, em abril de 2017, de 78 executivos e dirigentes da Odebrecht, a maior construtora envolvida no Petrolão, levou o STF a pedir 83 inquéritos, envolvendo 29 senadores e 42 deputados federais (incluindo os presidentes do Senado, Eunício de Oliveira, e da Câmara, Rodrigo Maia), colocando na mira da Justiça uma malha pluripartidária envolvendo 108 políticos e agregados, junto com oito ministros do governo anterior. Além de Michel Temer e da cúpula do Congresso, os delatores citaram outros quatro ex-presidentes: Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Só Lula teve o ciclo de punição completo: denunciado, processado, condenado e preso, sob alegações controversas, em ritmo acelerado e inusitado para a tradição da lerda Justiça brasileira.
A parceria DD-GG
Em setembro de 2017, a Lava Jato ganhou reconhecimento internacional. Competindo com 240 ações semelhantes de setenta países, ela ganhou Menção Honrosa como um dos três finalistas no chamado “Oscar anticorrupção”, o Allard Prize for International Integrity, conferido anualmente pela Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, Canadá. Dallagnol estava lá, com três dos doze procuradores da força-tarefa, para receber o prêmio. A notícia foi publicada na página do Ministério Público do Paraná na internet, que apresentou assim o orador principal da cerimônia: “Um dos destaques da noite foi o discurso do jornalista, escritor e advogado norte-americano Glenn Greenwald. Especializado em direito constitucional e criador do site de notícias The Intercept, Greenwald ficou conhecido mundialmente por ter revelado, em reportagens publicadas pelo jornal britânico The Guardian, a existência de um programa secreto de vigilância global mantido pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.”
Assim, em um único parágrafo, a própria Lava Jato – aparentemente colocada em risco pelo Intercept – conferiu a Greenwald os títulos de “jornalista, escritor, advogado e especialista em direito constitucional”, reverência factual que os mais abatatados antagonistas da verdade recusam com doentia, teimosa caturrice. E, para desespero dos sites bolsonaristas, a força-tarefa de Dallagnol ainda teve a gentileza de lembrar a ressonância mundial do trabalho de Greenwald e do The Guardian no vazamento sobre a espionagem planetária da NSA.
Dallagnol ficou tão entusiasmado com o que ouviu naquela noite festiva do próprio Greenwald, elogiado por ele, que publicou a saudação do jornalista em sua página pessoal do Facebook. E abriu assim sua mensagem: “O renomado jornalista Glenn Greenwald foi convidado para ser o palestrante da cerimônia de um prêmio a que a Lava Jato estava concorrendo em Vancouver, no dia 28 de setembro. Houve, contudo, uma campanha de algumas pessoas contra a premiação da Lava Jato. Na noite do prêmio, ele contou que recebeu mensagens pedindo que ele boicotasse o reconhecimento da operação, até porque ele próprio já havia discordado de alguns de seus episódios.”
Aqui, com o trecho mais relevante da fala de Glenn Greenwald, disponível no Facebook do procurador e no YouTube, é possível entender o motivo do entusiasmo e do reconhecimento de Deltan Dallagnol diante dessa inusitada parceria DD-GG. Leia:
“[…] Houve uma campanha pública de pressão contra o prêmio para que a indicação fosse retirada, exigindo que eu cancelasse minha fala aqui, em protesto contra o que eles fizeram. Não obstante o fato de achar que eles cometeram alguns equívocos, eu nunca, nem por um segundo, cogitei fazer isso.
Quando se está no Brasil, um país que por décadas foi governado pela corrupção…. Não é um país onde há alguns políticos corruptos aqui e acolá. É um país que é governado por uma criminalidade organizada. Todo o sistema político é baseado em corrupção sistêmica. E isso foi feito por décadas em completa impunidade. Então, se você é um jovem procurador, na casa dos seus 30 anos – e vimos pelos vídeos que a maioria deles é -, e você quer enfrentar as pessoas mais ricas e poderosas, não há nenhum manual de instruções sobre como se faz isso, não há cartilha, não há um guia do que se pode fazer. Você vai cometer erros, você terá que ser engenhoso, você vai ter que tomar decisões difíceis. […]
Como um cidadão americano, vi meu próprio governo, no despertar do regime de tortura no ataque ao Iraque, protegendo todos os criminosos de guerra que estavam envolvidos, porque eles eram poderosos demais para prender. E protegendo os criminosos de Wall Street que causaram o colapso econômico de 2008, que causou sofrimento econômico em todo o mundo. Nenhuma pessoa de Wall Street foi para a prisão, porque eles também eram muito poderosos.
Assistir brasileiros numa jovem democracia colocando os seus bilionários mais poderosos na prisão e prendendo os políticos de todos os espectros partidários também, não obstante os erros que eu acho que eles cometeram, e as críticas embasadas que ocasionalmente foram externadas contra eles, é algo que eu considero extraordinariamente corajoso, digno de apoio e de ser homenageado.Eu acho que o que podemos dizer à força-tarefa brasileira da Lava Jato é que eles definitivamente não foram perfeitos, mas que foram guiados por princípios e [foram] muito persistentes. E eles são realmente dedicados a essa ideia de que eles querem mudar a sociedade, de um modelo sistematicamente corrompido para um em que a lei prevaleça, não importa se você é um garoto negro e pobre da favela ou um oligarca absurdamente rico nascido em um berço de bilhões de dólares. Então eu acho que eles encarnaram muito bem essa virtude de ser comum, de não ter muito poder, mas ser dedicado a mudar o mundo.”
A veia cômica dos antagônicos
Sob a suspeita do bolsonarismo de raiz de que, agora, ele e o Intercept estariam tentando destruir a operação tão elogiada no Canadá, Greenwald esclareceu essa aparente contradição para a jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo: “Eu sou a favor da Lava Jato. Mostrar os erros cometidos só fortalece a operação”. Alguns antagonistas do bom jornalismo, os mesmos que chamam Greenwald de “suposto jornalista”, também insistem em carimbar Bergamo não como jornalista, mas como “colunista social”. Se não é uma dupla distorção da verdade, deve ser alguma anedota que ainda precisa ser explicada – o que é sempre ruim para qualquer piada digna de atenção.
Diante da dolorida incapacidade de desmentir o conteúdo cada dia mais perturbador das mensagens do Telegram, os bolsonaristas antagônicos procuram desqualificar o mensageiro – ou quem vazou as mensagens. Nesse tortuoso processo, o jornalista Greenwald, graças ao hilariante talento cômico dos bolsonários infiltrados nas redes sociais, foi vítima de uma divertida transliteração que o transformou em reles “Verdevaldo”. (Entenderam a piada?)
Ninguém ri, ao ler em um site bolsonarista, um texto supostamente jornalístico que se orgulha de ter acompanhados os trabalhos da Lava Jato “fanaticamente”. Isso não é engraçado, é apenas triste. Afinal, fanatismo não rima com jornalismo e um fanático jamais poderá dar lições de jornalismo aos jornalistas sérios que não sucumbem ao deboche nem se prestam à bajulação de mitos solidamente plantados nos coturnos da estupidez.
O juiz que Moro esqueceu
Em Nova York, em 1971, Murray Irwin Gurfein era a versão de um juiz mais velho, mais discreto e mais erudito do que seria em Curitiba o jovem Sergio Fernando Moro, que só nasceria no ano seguinte. Aos 35 anos, como tenente-coronel do Exército, já lutava na II Guerra Mundial nos quadros do predecessor da CIA – o secreto OSS, Office of Strategic Services, a agência de inteligência militar que coordenava ações de sabotagem e espionagem atrás das linhas inimigas do Reich nazista. Ao final da guerra, em 1945, ele se integrou à equipe norte-americana no Tribunal de Nuremberg para crimes de guerra como assistente do procurador Robert H. Jackson, que chefiava a equipe de acusação dos Estados Unidos.
Voltou no pós-guerra ao escritório de advogado, em Nova York, até retornar ao serviço público no início da década de 1970, indicado pelo presidente Nixon para um posto de juiz de primeira instância – como Moro – na corte do distrito sul da maior cidade americana. Foi confirmado pelo Senado em maio e, já na semana de estreia em seu tribunal, em 15 de junho de 1971, uma terça-feira, caiu no seu colo o mais rumoroso processo de sua carreira: uma ação da Casa Branca de Nixon pedindo, pela primeira vez na história americana, censura prévia para o The New York Times. No domingo, 13, o jornal começara a publicar os bombásticos detalhes secretos do envolvimento político e militar dos Estados Unidos na guerra do Vietnã, entre 1945 e 1967, em um estudo de 7 mil páginas produzido durante três anos por 36 especialistas (militares, acadêmicos e servidores civis) do Pentágono e carimbado como Top Secret-Sensitive.
Por ordem de Nixon, o procurador-geral John Mitchell pediu na segunda-feira, 14, que o Times voluntariamente interrompesse a publicação. Diante da recusa do jornal, entrou no dia seguinte com uma liminar na corte de Gurfein forçando o Times a cessar a divulgação, com três capítulos já publicados. Diante da ordem de restrição temporária do juiz, que o Times classificou como “um exemplo sem precedentes de censura”, seu vigoroso editorial de quarta-feira, 16, definia o papel de sempre da imprensa independente e comprometida com a verdade: “Como um jornal que assume seriamente sua obrigação e suas responsabilidades para com o público, nós acreditamos que, uma vez que esse material caiu em nossas mãos, não é somente do interesse do povo americano publicá-lo, mas, ainda mais enfaticamente, não o ter publicado seria uma abnegação de responsabilidade e uma renúncia de nossas obrigações sob a Primeira Emenda”.
O texto do Times poderia ser assinado pelo Intercept e por todos que publicam os diálogos incômodos do Telegram. Com uma definição memorável da luta épica que estava disposto a empreender contra o mais poderoso governo do planeta, o Times encerrava assim seu editorial: “Este é o esforço para expor e elucidar aquela verdade que é a essência da liberdade de imprensa”.
O país viveu o suspense das horas seguintes, enquanto aguardava a palavra final de Gurfein. Para ele, era um duro conflito existencial entre seu jornal favorito e o presidente que o conduzira à cadeira de juiz. Até que no sábado, 19, Gurfein deu ganho ao jornal, uma decisão que lhe garantiu um espaço merecido na memória da imprensa. Trecho de sua histórica decisão:
“Se houver algum embaraço para o governo em aspectos de segurança, tão remotos quanto o constrangimento geral decorrente de qualquer violação de segurança, devemos aprender a viver com esse embaraço. A segurança da nação não está somente nas muralhas. A segurança também está no valor de nossas instituições livres.
Uma imprensa rabugenta, uma imprensa obstinada, uma imprensa onipresente deve ser suportada pelos que têm autoridade, a fim de preservar os valores ainda maiores da liberdade de expressão e o direito do povo de saber. Neste caso, não houve nenhuma tentativa do governo em supressão política. Não houve tentativas de sufocar as críticas. No entanto, em última análise, não é apenas a opinião do redator do editorial ou do colunista que é protegido pela Primeira Emenda. É o livre fluxo de informações para que o público seja informado sobre o governo e suas ações.
Estes são tempos difíceis. Não há maior válvula de segurança para o descontentamento e o cinismo sobre os assuntos do governo do que a liberdade de expressão em qualquer forma. Este tem sido o gênio de nossas instituições ao longo da nossa história. É um dos traços marcantes da nossa vida nacional que nos distingue de outras nações sob diferentes formas de governo.”
O governo Nixon apelou da decisão de Gurfein e recorreu à Suprema Corte. Após duas semanas de incerteza, na quarta-feira, 30 de junho, os ministros decidiram por 6 votos a 3 pelo direito do Times de retomar a publicação dos documentos, franquia estendida ao The Washington Post, que também recebera os papéis e passou a divulgá-los em 18 de junho, cinco dias após o seu concorrente. No seu voto favorável, o ministro Potter Stewart (1915-1985), que permaneceu quase 23 anos na corte, lembrou: “Sem uma imprensa livre e informada, não pode haver um povo iluminado”. A manchete do dia seguinte, quinta-feira, 1º de julho de 1971, traduzia a euforia do Times e de todos que não antagonizam a liberdade de imprensa: “Suprema Corte, 6-3, apoia os jornais na publicação do relatório do Pentágono; o Times retoma sua série, suspensa quinze dias”. Naquele dia histórico, o jornal voltou com plena carga, dedicando o número recorde de doze páginas da edição para dois novos capítulos da série, além de outras cinco páginas para os votos dos ministros e a repercussão política da decisão.
A aula errada do professor Moro
É oportuno, aqui, voltar à intempestiva aula de jornalismo que Sergio Moro tentou dar na audiência no Senado, citando erroneamente os casos emblemáticos de Watergate e dos “papéis do Pentágono”. Na esperança de que o ministro não esqueça tudo de novo, vamos aos fatos.
No caso do Times, desmemoriado ou simplesmente ignorante, o professor Moro ensinou aos senadores que “os papéis do Pentágono foram sendo divulgados à medida que eles tinham alguma coisa”. Errado, professor. Quando o jornal tomou a decisão de publicar os documentos top secret, ele já tinha em mãos todo o material – 47 volumes, com 7 mil páginas e 2,5 milhões de palavras de um estudo do Departamento de Defesa, dissecando os bastidores do envolvimento americano no Vietnã entre 1945 e 1968.
A decisão de vazar é que foi longamente amadurecida pelo delator, o ex-comandante da Marinha e analista de estratégia Daniel Ellsberg, funcionário da Rand Corporation, um think tank contratado pelas Forças Armadas. O vazamento começou com uma crise de choro, durante uma hora, sentado no chão de um banheiro do Haverford College, da Pensilvânia, em agosto de 1969. Ellsberg acabara de ter uma epifania, emocionado com uma reunião da Liga de Resistência à guerra e com o discurso de Randy Kehler, um advogado pacifista que bradava contra o alistamento militar dos jovens e se dizia “excitado” pela possibilidade de se juntar aos seus amigos na prisão. “Não havia dúvida de que meu governo estava envolvido em uma guerra injusta que iria continuar e se tornar maior. Milhares de jovens estavam morrendo a cada ano”, pensou Ellsberg, antes de tomar a decisão de vazar o relatório do Pentágono.
Durante noites seguidas, levando o filho Robert, de 14 anos, como álibi, Ellsberg voltava depois do expediente aos escritórios da Rand para fotocopiar as 7 mil páginas do documento secreto, um ato criminoso que deixaria qualquer antagonista indignado. Ele lembrou então que, nos dois anos de trabalho que passou no Vietnã, em meados dos anos 1960, conhecera um repórter do Times.
Os papéis do Pentágono, que reconheciam secretamente que a guerra não tinha futuro e que a derrota era inevitável, foram vazados por Ellsberg para um velho conhecido do Vietnã, Neil Sheehan, 34 anos, repórter do The New York Times, tido como um teimoso descendente de irlandeses que acordava tarde e escrevia ferozmente entre uma e quatro horas da madrugada. Ellsberg tinha encontrado o sujeito e o instrumento certos para seu empreendimento. O repórter Harrison E. Salisbury, que vazou para o mundo o discurso secreto do premiê Nikita Khrushchev ao congresso do PC soviético, em 1956, denunciando os crimes de Josef Stálin, definia assim o Times: “Era o mais completo, minucioso e responsável diário que o tempo, o dinheiro, o talento e a tecnologia na segunda metade do século XX eram capazes de produzir”.
Desde 1896, quando Adolph S. Ochs comprou aquele pequeno jornal para torná-lo uma lenda do jornalismo, a redação era movida por um lema que hoje faz falta ao bom jornalismo de todas as latitudes: “Dar a notícia de forma imparcial, sem medo ou favor, independentemente de qualquer partido, seita ou interesse envolvido”. Nos anos 1970, afrontar ao mesmo tempo o Pentágono dos falcões do Vietnã e a Casa Branca de Richard Nixon era tarefa para poucos ou para loucos, sem medo ou favor. Só podia ser coisa para o Times do velho Adolph.
A redação clandestina do Times
Divulgar os segredos e a velada autocrítica do assustador complexo industrial-militar era uma tarefa portentosa, mesmo para um jornal tão destemido. Tom Wicker, um de seus maiores repórteres, resumiu: “A publicação dos ‘papéis do Pentágono’ foi a mais celebrada violação da segurança nacional dos tempos modernos”.
Por isso mesmo, exigiu cuidados extremos, que mostram a obstinação de uma pauta que movia montanhas. Não era possível trabalhar um material tão sensível no burburinho do terceiro piso do velho prédio de quinze andares do Times, no número 229 da rua 43. Ali, a redação ampla e aberta ainda não tinha os cubículos e baias que retalharam o espaço a partir de 1978, quando chegaram os computadores. Não era um bom ambiente para trabalhar e digerir com calma os 47 volumes sensíveis e nervosos do Pentágono.
A solução foi descer até o térreo, dobrar 140 metros à esquerda, até a 7ª Avenida, descer outros 90 metros até a rua de baixo e andar mais 170 metros até o número 234 da rua 42, onde ficava o hotel Hilton Times Square. Ali, 400 metros distante da redação barulhenta, o Times discretamente instalou a sua força-tarefa, comandada por Sheehan e integrada por outros três editores, quatro repórteres, cinco secretárias, um pesquisador, um diagramador, três grandes cofres e vários guardas de segurança do jornal, que não faziam ideia do que vigiavam ali, 24 horas ao dia. De acordo com o código da equipe, no yellow floor (andar amarelo) ficava a suíte 1107, base de trabalho do solitário Sheehan. Todos os outros se distribuíam pelos quartos do blue floor (andar azul), no 13º piso do Hilton. Apenas uma empregada do hotel tinha permissão para limpar os quartos que abrigavam o Projeto X, como era chamado. Nos dias de folga, a sala permanecia sem qualquer aspirador e sem faxina.
Todas as folhas de rascunho e páginas amassadas na rotina agitada daquelas quinze pessoas eram recolhidas cuidadosamente em sacolas no fim do dia e levadas de volta para a redação da rua 43, onde eram trituradas. O jornal sabia do poder de seus inimigos e também vivia a paranoia de estar sob vigilância. Nas manhãs serenas de domingo, o chefe da segurança do edifício-sede do Times fazia cuidadosa vistoria e a troca das linhas telefônicas do terceiro (redação), décimo (editorial) e décimo-quarto (editoria-executiva) andares. O dono do jornal, Arthur Ochs Punch Sulzberger, tinha seu escritório varrido regularmente em busca de escuta telefônica.
O editor-executivo do jornal, o experiente Abe Rosenthal, vivia um pesadelo recorrente quando dormia: via Nixon em rede nacional de TV, tendo ao lado os outros três presidentes vivos (Truman, Eisenhower e Johnson), vociferando contra o vazamento da papelada do Pentágono pelo Times.
Ao contrário do que pensa o desmemoriado Sergio Moro, não foi uma operação casual, em que se divulgava de forma paulatina, “à medida que eles tinham material”. Foi uma manobra pensada, calculada, que exigia uma articulação monumental para preparar o material de 47 volumes, selecionar, editar e publicar. Os editores tiveram que conferir meticulosamente o que as fontes do governo disseram para consumo público e comparar com a história secreta dos documentos, a verdade enfim por trás das cenas. Quando decidiu publicar tudo, Punch Sulzberger chamou à sua sala o editor-executivo Rosenthal e o chefe da sucursal de Washington, Max Frankel, na manhã de sexta-feira, 11 de junho, para anunciar: “Eu decidi que vocês podem usar os documentos, mas não a história”. Segundo a rígida determinação de Punch, sempre que possível, era reproduzido o documento original, naquele estilo duro, tedioso, cheio de siglas do burocrático jargão militar. O mais importante, segundo ele, era mostrar as vísceras das decisões secretas, sem qualquer firula jornalística.
A reação do vigarista
Na vida real, o esforço teve suas vantagens. O jornal, que tinha uma tiragem de 815 mil exemplares na semana, preparou uma edição especial de 1,5 milhão de exemplares naquele domingo histórico, 13 de junho de 1971. Nas primeiras horas do dia, Nixon não ficou chateado, porque achou que o relatório escoado batia mais nos seus antecessores democratas, John Kennedy e Lyndon Johnson. Só entendeu a gravidade do vazamento quando foi alertado por um telefonema desde a Califórnia de seu assessor de segurança nacional, Henry Kissinger.
Só então o presidente ficou furioso: “Temos que botar essa gente na fogueira por este tipo de coisa… Vamos botar esses filhos da puta na cadeia! ”, trovejou, convencido a ir aos tribunais para evitar um grave precedente de escoamento de informações sensíveis que poderiam, em seguida, atingir seu governo. A primeira reação da Casa Branca na Justiça bloqueou novas edições e o Times teve que suspender sua série por duas semanas.
Esperto, Ellsberg vazou cinco dias depois os papéis do Pentágono para o concorrente, o The Washington Post, dando trabalho dobrado aos advogados de Nixon. E o vazamento virou inundação quando Ellsberg repassou documentos a outros dezessete jornais do país, só para chatear a Casa Branca. Era um crime continuado e ampliado, o que chocaria qualquer antagonista do bom jornalismo.
O processo na Justiça, como já se viu, subiu para a Suprema Corte, onde o Times acabou ganhando por 6 a 3. Derrotado, Nixon quis se vingar do informante e mandou vasculhar a vida de Daniel Ellsberg. E ouviu de seu chefe da Casa Civil, John Ehrlichman, uma boa ideia: em 24 de julho de 1971, um mês e onze dias após a revelação dos “papéis do Pentágono”, foi criada a unidade secreta dos “encanadores da Casa Branca”, que tinha a nobre missão de evitar novos vazamentos.
Em agosto, dois assessores de Ehrlichmann se reuniram em uma sala do porão da Casa Branca com o chefe dos “encanadores”, G. Gordon Liddy, um ex-agente do FBI, e E. Howard Hunt, ex-agente da CIA. Saíram de lá com sua primeira missão secreta: invadir o escritório do psiquiatra Lewis Fielding em busca da ficha médica de seu paciente, Daniel Ellsberg. A invasão aconteceu no início de setembro, com a dupla Liddy-Hunt engrossada por mais três ex-agentes da CIA, mas foi um fracasso: não havia nada no histórico médico que pudesse ser usado.
A missão seguinte dos “encanadores” foi ainda mais retumbante, e um novo fracasso, que acabou com o grupo e com o governo: eles forçaram a entrada de um moderno prédio de escritórios em Washington, às margens do rio Potomac. Os “encanadores” invadiram, na madrugada de 17 de junho de 1972, o Comitê Nacional dos Democratas no prédio de Watergate. Dois anos depois, Richard Nixon acabou saindo à luz do dia da Casa Branca, em 9 de agosto de 1974, pelo inédito ato de renúncia que evitava o impeachment que crescia no horizonte. O chefe supremo dos “encanadores” não conseguiu estancar o vazamento de sua autoridade.
O desinformado Sergio Moro acha que, em Watergate, os jornalistas “divulgavam desde o início, não levavam um ano publicando”. Errado outra vez, professor. O Post não levou um ano publicando – levou mais de dois. Começou com a denúncia da invasão de Watergate, em junho de 1972, e terminou com a renúncia de Nixon, em agosto de 1974. Nessa épica cruzada jornalística, para desespero dos antagonistas cínicos que preferiam as mentiras de Nixon do que a verdade do bom jornalismo, os repórteres do Post tiveram a orientação, a informação privilegiada e as confirmações decisivas do Deep Throat, o “Garganta Profunda”, informante que botava Woodward e Bernstein sempre no caminho certo. Para horror dos antagônicos, soube-se depois, o delator era o número 2 do FBI: seu vice-diretor, W. Mark Felt, que as milícias bolsonarianas devem considerar apenas um traidor da pátria e, portanto, tão criminoso quanto Glenn Greenwald.
Pouco tempo antes, o Times pesou as alternativas legais – consciente de que estava publicando um documento secreto e roubado do Pentágono – e brigou com a força da lei, sem sucumbir a ela, nem se intimidar diante dela. Tanto que levou o caso às últimas instâncias da Suprema Corte, de onde o jornal saiu adornado por uma vitória que reafirmou o primado da imprensa livre sob o império de um presidente politicamente belicoso e moralmente desonesto como Richard “Dick” Nixon, conhecido desde 1950 na campanha para senador na Califórnia como “Tricky Dick” (ou Dick Vigarista).
Um antagonista de raiz, como se sabe, não tem esse tipo de dúvidas: entre Sheehan, Woodward, Bernstein e Greenwald, os fanáticos e idólatras bolsonaristas que infestam as redes sempre estarão ao lado de Tricky Dick.
O orçamento negro dos arapongas
Quase meio século após o vazamento dos papéis do Pentágono pelo Times, que abalou os Estados Unidos, o vazamento do Guardian sobre a comunidade de inteligência impactou o mundo, até pelo alcance muito maior da vigilância indiscriminada sobre um mundo conectado pelas grandes redes da internet. Contudo, o que mais irritou os burocratas do setor de espionagem foi o inédito detalhamento de algo nunca antes revelado: o black budget, o chamado “orçamento negro” do indevassável universo da criptografia. O vice-diretor da CIA, Michael Morell, expressou sua indignação em uma entrevista à rede CBS News: “Acredito que se trata do vazamento mais sério, da revelação de informação secreta mais grave na história da espionagem americana. O pior de tudo foi o vazamento do black budget, pois permitirá aos adversários dos Estados Unidos concentrar seus esforços de contraespionagem em setores onde tivemos mais sucesso, em detrimento de outros onde não temos êxito”. Só um antagonista do bom jornalismo, evidentemente, ficaria condoído e solidário ao cínico lamento do vice-chefe da CIA.
Com base nos arquivos vazados por Snowden, o The Washington Post – que compartilhou o Pulitzer com o The Guardian de Greenwald – revelou os dados de um supersecreto sumário de 178 páginas do orçamento do Programa de Inteligência Nacional para o ano fiscal de 2013. Sob a liderança da NSA, sabe-se agora, a hidra da espionagem americana abriga dezesseis agências de inteligência que empregavam então 107.035 pessoas com um orçamento global de US$ 52,6 bilhões – este é o tamanho do black budget.
Antes que algum antagonista se solidarize com os arapongas da surrupiada NSA, cabe prestar atenção ao que disse o deputado Lee H. Hamilton, um democrata de Indiana que presidiu o Comitê de Inteligência da Câmara e comandou a comissão que investigou os ataques do 11 de setembro. Ele lembrou que o acesso a detalhes nunca vistos do black budget permitiriam um debate público mais informado, pela primeira vez, sobre os gastos de inteligência. “Grande parte do trabalho que a comunidade de inteligência faz tem um impacto profundo na vida dos americanos comuns, e eles não devem ser excluídos do processo”, disse Hamilton ao Post, sem qualquer contestação ao fato de o material vazado ser ou não produto de um furto cibernético. Como diria Sergio Moro, o importante aqui é o conteúdo, não a captação. Esse é o ponto.
Pelo documento supersecreto, a CIA é a maior e mais cara agência de espionagem: em 2013, gastava US$ 14,7 bilhões para 21.459 mil funcionários. A NSA é a segunda maior, com gastos de US$ 10,8 bilhões para 14.950 funcionários, 64% deles militares. Além disso, graças ao vazamento de Snowden, foi confirmado que Bluffdale, uma pacata cidade de 13 mil habitantes em Utah, 30 km ao sul de Salt Lake City, já não era apenas a folclórica sede da Apostolic United Brethren, uma seita fundamentalista mórmon que prega a poligamia.
Passou a ser mais notória, desde agosto de 2014, como a base da mais poderosa central cibernética da espionagem mundial: o Utah Data Center, complexo em área desértica onde a temperatura usual chega a 40 graus, é o poço onde a NSA gastou US$ 2 bilhões só na construção de 100 mil m², além de outro tanto para hardware e software da maior rede de computadores já vista. São tantas máquinas que o centro vai gastar ali 65 megawatts de energia, o suficiente para abastecer todas as casas de uma cidade de 250 mil habitantes. As 60 mil toneladas de equipamento de refrigeração em lugar tão quente vão consumir 6,5 milhões de litros de água por dia. Só o sistema de segurança em torno da base custou US$ 10 milhões, incluindo câmeras de circuito fechado, sistema de identificação biométrica e uma cerca externa desenhada para aguentar o choque de um veículo de 5,6 toneladas a uma velocidade de 80 km/h.
Tudo isso fica insinuado na elusiva placa de saudação, no marco de boas-vindas que a NSA fincou na entrada principal do prédio: Welcome to the UTAH DATA CENTER. Na frase de baixo da placa, a declaração de princípios que resume todo o cinismo de autojustificação usado pelas agências de vigilância e órgãos de repressão de todos os sistemas autoritários, de todos os tempos: If you have nothing to hide, you have nothing to fear [Se você não tem nada a esconder, você não tem nada a temer].
A importância desse massivo vazamento dos dados da NSA por Snowden, vazados para Greenwald e publicados pelo The Guardian, é que, mesmo sem nada a esconder, ficou claro que todos devemos temer o fato de que o centro de Utah foi pensado para rastrear e arquivar todo o tráfego de comunicação existente no planeta.
Segundo um relatório de 2007 do Departamento de Defesa, o Pentágono está montando uma rede mundial, conhecida como Global Information Grid, que vai lidar com uma medida de dados ainda desconhecida pelo homem: o Yottabite (YB), que corresponde a um setilhão de bytes, abarcando toda a informação disponível no planeta. É um valor tão imenso que a mente humana ainda não pensou na palavra para uma magnitude maior. Nesse admirável, assustador mundo novo, o Data Center da pequena Bluffdale estará bisbilhotando literalmente toda a humanidade. Em futuro não muito distante, o Yottabyte da NSA em Utah estará processando informações equivalentes a 500 quintilhões – 500.000.000.000.000.000.000! – de páginas de texto.
O saudável vazamento de dados secretos da NSA foi obra de um sofisticado hacker do bem, Edward Snowden, que teve a boa ideia de repassá-los a um repórter corajoso e ético, Glenn Greenwald, consciente de sua responsabilidade maior perante os cidadãos e a história – um e outro indiferentes aos (maus) humores do poder e dos poderosos.
Para sorte de todos nós, esse material importante não foi entregue a um inimigo do bom jornalismo. Os antagonistas mais excêntricos da boa reportagem, assim, vão continuar confinados à sua ridícula piadinha sem graça: “Verdevaldo”.
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Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação Condor: O sequestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura (L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com