Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que o caso do imposto de renda de Trump tem a ver com o futuro da reportagem?

(Foto: Joyce N. Boghosian/Casa Branca)

Não é a idade que traz a decadência profissional para o jornalista. É quando ele deixa de aprender com os seus erros. Esse mal não tem idade para se alojar nas nossas mentes. Digo isso para chamar a atenção sobre uma lição deixada para nós repórteres no caso das declarações de renda do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicadas pelo The New York Times. Elas mostram duas coisas: a primeira é que ele sacaneou o imposto renda americano e a segunda é que não é o empresário de sucesso descrito nas nossas matérias. É sobre isso que quero refletir com os meus colegas, principalmente os mais jovens que estão na correria das redações. Vamos aos fatos.

Logo que Trump ganhou as eleições de Hillary Clinton, em 2016, tive a minha atenção despertada para a máquina publicitária inédita que o elegeu e devorei tudo o que se tinha publicado sobre ele — reportagens, livros, documentários e vídeos. Essa máquina publicitária profissionalizou o uso de fake news como ferramenta política. E houve uma grande discussão entre nós jornalistas sobre o assunto. Esse mesmo modelo foi aperfeiçoado por Jair Bolsonaro (sem partido) e continua sendo usado pelo Gabinete do Ódio, como são conhecidas as pessoas que fazem parte do círculo ao redor do presidente. Voltando à história de Trump. A fama de empresário bem-sucedido e milionário nasceu bem antes dele ser candidato a presidente dos Estados Unidos. Alguém entrou na redação de um jornal americano e contou essa história, ela colou e virou verdade. Esse tipo de coisa acontece em todas as redações ao redor do mundo devido à concorrência entre os jornais. E é hábito do repórter só verificar se o peixe que lhe venderam é verdadeiro se ele desconfiar. Caso contrário, passa a história adiante do mesmo modo como lhe foi vendida. Esse procedimento é uma brecha que persiste há muitos anos nas redações.

Lembro que, nos 60 e 70, os serviços de contrainteligência das ditaduras militares da América do Sul, incluindo a do Brasil, usavam essa brecha para vender o seu peixe para as redações. Era assim. As grandes fornecedoras de conteúdo para os jornais eram as agências internacionais e nacionais de notícias. Essas agências faziam escutas (gravavam) nos noticiários das emissoras de rádio que, por sua vez, colocavam no ar tudo o que chegava à redação. E transformavam o que tinham escutado em notícias e as distribuíam para os jornais. Essa brecha ainda existe. Um exemplo é o caso de Paulo Guedes, ministro da Economia. A história dele foi vendida para as redações como sendo um empresário competente, rico e bem-sucedido do mercado financeiro. Ele ocupa o cargo há quase dois anos e não lembro de ter lido uma matéria sobre a real história dele. O que nós soubemos de concreto é que até agora tem um sido um ocupante discreto do cargo. O fato é o seguinte: a brecha existe. E tende a aumentar, porque as demissões em massa diminuíram em muito os contingentes das redações. Hoje um repórter faz texto, foto, vídeo e áudio e ganha um dos salários mais baixo da história da profissão. Portanto, o tamanho da brecha aumentou.

O que nós precisamos nos dar conta é que a imprensa tradicional ainda é a grande formadora da opinião pública, principalmente os noticiários das TVs abertas. E que nos dias atuais o jogo mudou. Agora não são apenas pessoas oportunistas que chegam às redações e nos vendem uma história que saímos repetindo por julgar ser verdadeira. Agora são empresas montadas e com profissionais altamente qualificados em manipular a verdade. Personagens como Trump e Bolsonaro se divertem chutando as canelas dos jornalistas porque apostam em uma velha e eficiente tática: “Falem bem, falem mal. Mas falem de mim”. Ou seja: o bate-boca deles conosco é uma ajuda importante no reforço da imagem. Há uma coisa que sempre repito nas minhas palestras. Não concordo com a tese do apocalipse do jornalismo. Hoje o nosso setor tem dois problemas. Um é o das empresas de comunicação, que vivem uma crise como jamais viveram. Provavelmente poucas sobreviverão. Isso já aconteceu antes na história do setor. E a outra crise é na nossa formação. Estamos vivendo um momento de indefinição. Os baixos salários desestimulam os pais a investir na formação dos filhos. Em decorrência disso, as faculdades de jornalismo estão minguando. Por outro lado, em nenhum outro momento da história as pessoas necessitaram tanto de informações corretas e passadas de modo simples e eficiente para organizarem as suas vidas dentro uma realidade que muda a toda hora, como é a de hoje. Essa é a realidade.

Publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas.

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Carlos Wagner é jornalista.