O município de Mariana sofreu duas tragédias simultâneas: o rompimento da Barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015 — que matou 19 pessoas, dizimou povoados e deixou um rastro de destruição até a foz do Rio Doce, no Espírito Santo —, e a explosão do desemprego pela paralisação das atividades da Samarco. Na tentativa de defender a economia local, a imprensa de Mariana relativizou a tragédia ecológica em sua cobertura.
Passados três anos do ocorrido, é unânime a opinião entre os jornalistas locais de que a mídia nacional e internacional só enxergou a primeira tragédia e ignorou completamente a depressão econômica que sobreveio ao lamaçal. O desemprego bateu 24,54% no mês de agosto de 2018, quando o índice médio nacional foi de 12,3%. Segundo o coordenador do Sistema Nacional de Emprego (Sine) no município, Gustavo Júnior Ribeiro, Mariana tinha então 11.780 desempregados. Todos os dias há filas na agência do Sine de gente em busca de uma oportunidade de trabalho.
A convite do Observatório da Imprensa, estive em Mariana entre os dias 22 e 28 de agosto, com a videorrepórter Ana Terra Athayde, e entrevistamos proprietários de jornais impressos e sites noticiosos da região. Também foram ouvidos profissionais das emissoras de rádio e televisão de municípios vizinhos que cobriram os desdobramentos do desastre. Todos criticaram a cobertura da grande mídia que, segundo eles, não destacou que o mar de lama passou a 30 quilômetros da cidade e que o centro histórico ficou intacto. O entendimento é de que a imprensa nacional afastou os turistas e agravou a crise econômica.
Perda tributária
Para compreender o jornalismo praticado ali — antes e após o desastre — pesquisei as edições dos dois principais veículos impressos da região, os semanários Ponto Final, de Mariana, e O Liberal, de Ouro Preto. Existem em Mariana mais três semanários impressos — Panfletu’s, O Espeto e O Mundo dos Inconfidentes — e um jornal mensal voltado exclusivamente às populações atingidas pelo rompimento da barragem, chamado A Sirene. O Ponto Final é o único vendido em banca. O exemplar custa R$ 1; os demais são gratuitos.
As edições do Ponto Final de 2015 são reveladoras do grau de dependência econômica da cidade em relação à Samarco e explicam a reação da imprensa local diante do temor da perda da principal fonte de sustentação do município. Antes do desastre, segundo o prefeito Duarte Júnior (PPS), a mineração respondia por cerca de 80% da arrecadação tributária de Mariana e era também a principal atividade empregadora.
A receita tributária de Mariana começou a encolher antes do rompimento da barragem, por causa da desvalorização do minério de ferro no mercado internacional, o que afetou a Vale e a Samarco; o preço da commodity caiu 42% em 2014 e derrubou a arrecadação de tributos. Segundo a Secretaria de Planejamento da Prefeitura, a arrecadação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) era de R$ 151,16 milhões em 2014 e baixou ano após ano até chegar a R$ 100,15 milhões em 2017. A Samarco também é importante na arrecadação de Ouro Preto, mas em escala muito menor que em Mariana.
Antes do desastre, a cidade já enfrentava o desemprego por causa da queda no preço do minério de ferro. As vendas do comércio tinham despencado, e até o mercado imobiliário estava em crise. No final de março de 2015, o Ponto Final informou em manchete que a quantidade de imóveis vazios tinha crescido 60%; na semana seguinte, a manchete foi sobre o crescimento do desemprego.
A relação da Prefeitura e da Câmara de Vereadores de Mariana com a Vale e sua controlada Samarco ficou tensa em razão da perda de receita e dos empregos. Os vereadores passaram a fiscalizar com lupa os contratos de terceirização das duas empresas para ver se os fornecedores locais estavam sendo preteridos. O vereador Juliano Duarte (PPS) requisitou informação sobre as placas de todos os veículos usados pelas mineradoras; a Vale não respondeu. Em agosto de 2015, o Ponto Final noticiou: “Vereador quer repúdio à Vale”.
As edições do Ponto Final anteriores ao desastre evidenciam que a cidade não suspeitava que uma tragédia daquela monta pudesse acontecer. O jornal visitou Bento Rodrigues dois meses antes do rompimento da barragem, mas produziu uma reportagem idílica sobre o lugar e sobre a boa índole de sua gente. A única reclamação manifestada pelos moradores foi a escassez de água, que também era atribuída à Samarco. A empresa fez um acordo com a Prefeitura e melhorou o abastecimento.
Três meses antes da tragédia, os vereadores de Mariana visitaram as obras de alteamento das barragens de Fundão e Germano, a convite da Samarco. O Liberal cobriu o evento e mostrou que a preocupação dos vereadores era de que os 550 empregos que seriam criados com as obras de expansão ficassem na cidade. O texto reproduzia o elogio do presidente da Câmara, Tenente Freitas (PHS), à mineradora. Segundo ele, o convite para a visita demonstrava a “a preocupação da Samarco em mostrar o que estava sendo feito”.
Samarco anunciava pouco
Antes da tragédia, a Samarco pouco anunciava na imprensa local. A importância dela na economia era tamanha que não era preciso publicidade para se promover, nem para ter a opinião pública de seu lado. De janeiro a dezembro de 2015, a empresa publicou apenas seis anúncios de meia página no Ponto Final e só três em O Liberal.
As raras inserções tinham cunho institucional sobre o Dia Mundial da Água, Dia Mundial do Meio Ambiente, aniversários de Mariana e de Ouro Preto e chegada do Ano-Novo. Quatro meses antes do desastre, a empresa anunciou que recebera pela quinta vez o prêmio de “Melhor Mineradora” do Brasil, conferido pela Revista Exame. Um mês depois, em agosto de 2015, foi premiada também pelo jornal O Valor Econômico.
O desastre e o pós-desastre
A imprensa local ficou atônita diante do rompimento da Barragem de Fundão, e a cobertura refletiu o medo da população em relação às consequências daquele evento sobre a economia. Jornalistas da região contaram que existiam rumores sobre a insegurança da barragem, mas que os próprios moradores achavam que a conversa era para desvalorizar suas terras.
Como se viu, a Samarco não possuía um sistema de alarme e contava que faria o alerta por telefone, o que não funcionou. A cobertura de uma tragédia daquela dimensão é um desafio para qualquer veículo de imprensa; o que esperar dos pequenos jornais e emissoras que trabalham com um ou dois repórteres?
O primeiro jornalista a saber do desastre foi Roberto Verona, proprietário do site Território Notícias. Ele estava em casa, ouvindo a faixa de rádio da polícia, e captou a ligação de um funcionário da mineradora para a delegacia policial. Verona correu para Bento Rodrigues, mas só conseguiu avistar do topo de um morro que a lama havia engolido as casas. Ele lembra orgulhoso da pergunta que fez durante a entrevista coletiva da Samarco, dez dias depois do rompimento da Barragem do Fundão, quando a empresa estava reticente em admitir suas responsabilidades e havia designado diretores para falar com os jornalistas.
“A Samarco não vai pedir desculpas à população?”, perguntou Verona ao então diretor de Operações e Infraestrutura da Samarco, Kleber Terra. “Não acho que seja o caso de desculpas”, respondeu o executivo, alegando que a empresa usava as melhores técnicas existentes de monitoramento de barragens. Seis dias depois, o então presidente da Samarco pediu desculpas em entrevista no Fantástico, da TV Globo. Em agosto do ano seguinte, ao divulgarem o relatório da investigação sobre as causas do desastre, os presidentes da Vale e da Samarco repetiram o gesto.
A TV Top Cultura, de Ouro Preto, ficou sabendo do rompimento da barragem pelo marido da apresentadora do telejornal Top Notícias, Maristella Paiva, e conseguiu enviar uma repórter para Bento Rodrigues, o que era um desafio, pois o acesso estava tomado pela lama. A repórter passou a noite no local, enviando flashes por celular. As TVs nacionais enviaram helicópteros para filmar a cena do alto, mas a mídia local não tinha recursos para isso.
A emissora fez a primeira filmagem terrestre de Bento Rodrigues após a tragédia e cedeu as imagens gratuitamente para as redes nacionais. Até hoje, a TV — que vive com dificuldades financeiras — lamenta não ter vendido o material. Segundo a apresentadora do Top Notícias, as redes nacionais sequer lhe deram crédito pelas imagens.
O Liberal estava no fechamento da edição quando ocorreu o desastre e só mudou a primeira página para incluir informações tiradas de agências de notícias e imagens da devastação de Bento Rodrigues feitas de helicóptero pela TV Globo. A edição foi para as ruas sem apuração própria, por falta de tempo e de equipe. O jornal tem um editor e uma repórter, além de colaboradores não remunerados. Segundo o editor, Paulo Felipe Noronha, o noticiário foi sendo atualizado no site.
O Ponto Final tinha fechado a edição na véspera e, na semana seguinte, fez uma edição especial com fotos dos escombros de Bento Rodrigues na capa. Na contracapa, uma mensagem resumia a perplexidade com o futuro: “Não temos a menor preparação para manter os gastos sem os royalties do minério, mas também não temos a menor condição de perder nossa história para os rejeitos de uma barragem. E agora, Mariana?”.
O movimento “Fica, Samarco”
Enquanto o país escandalizava-se com o ocorrido, a cidade tentou evitar a discussão e apressar a reabertura da Samarco. Uma semana depois do rompimento da barragem, quando os corpos de oito dos 19 mortos ainda estavam desaparecidos, aconteceu a primeira passeata “Somos todos Samarco” em favor do retorno da mineradora às atividades. O Liberal continuou com uma cobertura pequena e referiu-se à manifestação como um movimento para “defender as vantagens que a empresa traz ao município e conscientizar a população das consequências de perder a mineradora”. Outras manifestações repetiram-se nas semanas e nos meses seguintes, com a participação de prefeitos e de lideranças das cidades vizinhas.
A cobertura da mídia local mostrou que o receio da recessão econômica assustou mais naqueles dias do que o próprio desastre. O veículo que mais expressou aquele clima foi o Ponto Final. Na primeira semana de janeiro, o jornal publicou artigo de um colaborador que conclamava a mídia do Rio de Janeiro a preocupar-se com a poluição da Lagoa Rodrigo de Freitas e da Baía da Guanabara e a de São Paulo, com os rios Tietê e Ipiranga; para o articulista, a imprensa nacional e o judiciário jogavam pesado contra a Samarco. Na Câmara, o vereador Bruno Mól (PSDB) propôs que a Prefeitura exigisse na Justiça a retratação da imprensa nacional.
Um mês depois, o mesmo articulista assinou outro texto: “Samarco: uma empresa mãe”, no qual dizia que as comunidades atingidas estavam em melhor situação do que muitas famílias de Mariana — alojadas em hotéis ou apartamentos pagos pela empresa — e que a mídia brasileira, “carente de boas notícias, só informa tolices, disparates e conversas fiadas”. O articulista foi processado pelo Ministério Público por ter insinuado que os atingidos eram aproveitadores e teve de retratar-se. Com o aumento do desemprego e sem perspectiva de reabertura da mineradora, a imprensa local alinhou-se com o comércio para tentar reativar a economia e atrair turistas. “Se a barragem não é segura, o carnaval de Mariana é!”, manchetou o Ponto Final.
Dos 1,5 mil funcionários que a Samarco possuía antes da tragédia, restaram 590, segundo informou o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração de Ferro e Metais Básicos de Mariana (Metabase), Ângelo Eleutério. A suspensão das atividades teve um efeito em cascata porque cada emprego direto corresponde a quatro indiretos. Eleutério admitiu que os trabalhadores ficaram mais preocupados com o impacto econômico do que com o ambiental, porque “a prioridade é recuperar os empregos”. Após as demissões e o congelamento dos salários, o sindicato entrou com ação judicial para que os demitidos sejam indenizados como vítimas do rompimento da barragem.
O movimento em defesa da Samarco já não mobiliza a população a ir para as ruas, mas algumas lojas do centro histórico de Mariana ainda mantêm a faixa “Fica, Samarco” em suas fachadas. O prefeito de Mariana defende o reinício da mineração. “Vivemos entre a cruz e a espada: os responsáveis precisam ser punidos, mas, sem o retorno da mineração, há uma segunda tragédia”, resumiu o prefeito Duarte Junior.
Outro lado
Até o fechamento desta edição, a Samarco continuava parada. O retorno às atividades depende do Licenciamento Operacional Corretivo (LOC), que envolve várias instâncias do governo. As licenças para a exploração do minério em Ouro Preto e Mariana foram suspensas em outubro de 2016; na primeira semana de outubro de 2018, a mineradora havia iniciado a construção do novo local para receber os rejeitos do minério. Segundo a empresa, a construção se estenderá por dez meses e, no pico das obras, deverá gerar 750 empregos diretos e indiretos, com compromisso de usar de 75% a 80% de mão de obra local.
Questionada pelo Observatório da Imprensa sobre o relacionamento com a mídia de Mariana, a Samarco informou que sempre buscou atender às demandas da imprensa local. Segundo a empresa, antes do desastre, os pedidos de entrevistas eram raros e, quando os executivos não podiam dar entrevistas, as perguntas eram respondidas por nota da assessoria de imprensa. Em relação ao investimento publicitário, disse que o suspendeu após a tragédia e que antes só fazia anúncios em datas específicas, como nos aniversários de Mariana e de Ouro Preto.
Criada pela Samarco para reparar os danos socioambientais, a Fundação Renova declarou que não faz ações de marketing e que publica anúncios apenas para prestar contas de medidas adotadas ou para algum serviço de utilidade pública, porque uma de suas obrigações é garantir acesso à informação a todos os envolvidos nos processos de reparação e compensação. Sobre pedidos de entrevistas, disse que procura atender todas as demandas da imprensa, da local à internacional.
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Elvira Lobato é jornalista e enviada especial a Mariana-MG.