Televisão é o principal meio de comunicação da cidade; legislação especial para retransmissoras da Amazônia estimula a programação local.
A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte impactou profundamente a vida de Altamira, inclusive o seu jornalismo. De cidade isolada dos confins da Amazônia — fica na margem do Rio Xingu, a 800 Km de Belém — foi para o epicentro da discussão mundial sobre a preservação do meio ambiente dos direitos dos povos indígenas.
Construída entre 2011 a 2016 a um custo estimado de R$ 40 bilhões, a usina é o maior e mais controverso tema de interesse público de Altamira. A represa formou um lago de 480 Km quadrados que atingiu treze terras indígenas. Dez mil famílias ribeirinhas foram deslocadas. A imprensa local, antes voltada para os assuntos da própria comunidade, ampliou seus horizontes para acompanhar a nova agenda.
Altamira tem uma população de 113 mil habitantes, de acordo com o IBGE, e é um polo de serviços na região do Rio Xingu. A televisão é seu principal meio de comunicação, graças à legislação especial que estimula a programação local no interior da Amazônia. O rádio perdeu seu protagonismo na região. Altamira possui apenas uma rádio comercial e duas comunitárias. O jornalismo impresso está restrito ao quinzenal “A Voz do Xingu”, de distribuição gratuita, que circula em doze municípios.
Em janeiro de 2019, quando o Observatório da Imprensa esteve em Altamira, havia três canais de televisão — TV Vale do Xingu (SBT), TV Cidade (Bandeirantes) e TV Mirante (Record) —, cada uma com dois telejornais locais diários. Havia também o jornal “Xingu 230”, pela internet. Em fevereiro, o canal da prefeitura TV Altamira (Rede Cultura) retomou seu telejornal que estava suspenso desde dezembro de 2018.
A imprensa local é atenta às falhas do consórcio Norte Energia, que construiu e opera a usina de Belo Monte, no cumprimento de metas de compensação social e ambiental, mas, por outro lado, não tem tradição de investigar o uso de recursos públicos pela prefeitura (leia matéria Enfoque Nacional). Só no mês de fevereiro de 2019, a TV Vale do Xingu exibiu onze reportagens com queixas de moradores sobre problemas nas redes de água e esgoto e rachaduras nas casas construídas pela empresa. A Norte Energia diz ter investido R$ 6,3 bilhões em mais de 5 mil ações de compensação dos impactos causados pela construção da usina, mas não quis comentar o noticiário crítico da imprensa local.
Nas semanas seguintes ao rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 25 de janeiro, as televisões fizeram reportagens sobre os riscos de ocorrer igual desastre no Rio Xingu, caso seja aprovado o projeto de extração de ouro da mineradora canadense Belo Sun que está na dependência da licença ambiental. A mina fica na Grande Curva do Rio Xingu, a 11 quilômetros de Belo Monte. Imagens do mar de lama em Brumadinho abriram a reportagem exibida pela TV Mirante, canal 17, (afiliada Record), em 7 de fevereiro. Depoimentos contra e a favor do empreendimento foram mostrados, e um índio de cocar resumiu: “Belo Sun vai levar o ouro e deixar o rejeito pra nóis resolver.”
O diferencial da Amazônia
Uma legislação especial para a radiodifusão na Amazônia estimulou a proliferação de pequenas emissoras de TV. Ela permite que as retransmissoras veiculem até 3 horas e meia por dia de programação local e que faturem com anúncios. A regra, instituída em 1978, é válida para os nove Estados da Amazônia Legal: Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. No restante do país, as retransmissoras são apenas equipamentos ligados a uma antena que captam a programação do satélite e redistribuem o sinal na localidade. Na Amazônia, elas ganham vida e produzem, sobretudo, jornalismo.
A produção de conteúdo local oscila de acordo com a conjuntura econômica, já que as retransmissoras sobrevivem da venda de anúncios. Durante a construção de Belo Monte, Altamira viveu um ciclo fugaz de crescimento e chegou a ter nove telejornais diários. Após a inauguração da barragem, em maio de 2016, que contou com a presença da então presidente Dilma Rousseff, a economia local começou a desacelerar e a também sofrer com a recessão.
Nos últimos anos, as retransmissoras RecordNews, Canção Nova e RedeTV suspenderam seus noticiários locais. Em abril de 2018, a Prelazia do Xingu interrompeu o telejornal “Cidade Livre” que esteve no ar por 14 anos na TV Canção Nova, sendo também retransmitido pelas TVs Nazaré e Rede Vida. Segundo o bispo Dom João Muniz Alves, faltaram recursos financeiros para manter a produção. Para a fundadora do Movimento Xingu Vivo (coletivo de organizações ambientalistas), Antônia Melo, o fim do Cidade Livre “foi uma grande perda para as vozes populares.”
O olho do furacão
Em geral, os jornalistas do interior da Amazônia não possuem qualificação formal e ganham pouco mais do salário mínimo. Mas, este perfil está mudando em Altamira, com a chegada de jovens recém-formados de Belém e com o esforço dos profissionais locais para se qualificarem. A primeira turma de alunos do curso de jornalismo à distância se forma este ano. Em 2012, foi fundada a Associação dos Profissionais de Imprensa de Altamira, Transamazônica e Xingu, que tem levado jornalistas da capital do Estado para dar palestras e treinamentos, que são compartilhados por profissionais de redes concorrentes.
O repórter Felype Adams começou sua carreira na TV Vale do Xingu no início das obras de Belo Monte. Como muitos jornalistas da região, ele adquiriu os conhecimentos rudimentares da profissão com os profissionais mais antigos que também tinham aprendido o ofício do mesmo modo. Sua formação é de técnico em agropecuária. Adams era adolescente quando se empregou como operador de áudio na rádio do mesmo grupo e antes de virar repórter teve uma rápida passagem como produtor da TV. Eis como ele descreve o impacto de Belo Monte sobre os profissionais de imprensa de Altamira:
“De repente, a gente se viu no olho do furacão. Estávamos acostumados a cobrir acidentes de trânsito, homicídios, tráfico de drogas e fatos corriqueiros da administração pública, e tivemos que aprender a lidar com questões novas e muito mais desafiadoras,” diz.
“Os direitos dos indígenas, por exemplo, não estavam na nossa pauta cotidiana, porque os índios viviam quietos nas terras deles. Passamos a ter a imprensa do mundo inteiro entrevistando lideranças de diferentes tribos que se manifestavam em suas próprias línguas.”
Adams, de 35 anos, passou por várias emissoras da cidade e atualmente é apresentador do jornal da Record em Vitória do Xingu, município a 40 Km de Altamira. Na avaliação dele, não apenas a imprensa, mas toda a população de Altamira e dos outros municípios da região impactados pela usina tornaram-se mais politizados, envolvendo-se nas discussões públicas sobre as consequências da construção e nas negociações das medidas compensatórias.
Formada em publicidade e com pós-graduação em Jornalismo, em Belém, a jornalista Karina Pinto chegou a Altamira pouco depois do assassinato da irmã Dorothy Stang, em fevereiro de 2005, no município vizinho de Anapu, a mando de fazendeiros e grileiros. Segundo ela, a imprensa local já cobria os conflitos agrários na região. Mas a partir de Belo Monte, eles deixaram de ser tratados como assunto local para adquirir uma dimensão nacional. Ela diz que os repórteres da cidade começaram a emplacar material nos telejornais nacionais e a trabalhar como freelancers para a imprensa estrangeira. Os editores os orientavam sobre a apuração e cobravam qualidade, o que melhorou produção jornalística local.
Pauta compartilhada
Outra mudança no comportamento dos repórteres foi a aproximação com os movimentos ambientalistas, sobretudo na busca por informações técnicas para compreensão dos impactos da obra sobre o meio ambiente, as populações indígenas e os povos ribeirinhos. Os repórteres possuem um grupo no WhatsApp onde compartilham informações sobre os temas de interesse nacional. “A competição entre as emissoras se dá na cobertura do jornalismo policial. Nos demais assuntos, há troca de de informações,” diz Midiane Chaves de Araújo, coordenadora de jornalismo da TV Cidade, que aos 30 anos estuda direito e sonha em ser promotora de justiça.
O coordenador do ISA (Instituto Sócio Ambiental), Marcelo Salazar, participa do grupo de pautas e colabora com sugestões e informações técnicas. Ele tem uma avaliação positiva sobre a qualidade da imprensa local. “Os repórteres são investigativos e retratam bem as questões indígenas e ambientais, com as limitações da mídia televisiva. A mídia impressa praticamente não existe,” diz.
Já o bispo emérito da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Krautler, avalia que as retransmissoras locais não aproveitam a abertura para produzir conteúdo como poderiam. “Esse potencial é subaproveitado, ou utilizado para veicular notícias esdrúxulas,” diz. “Toda vez que assisto a um telejornal local eu me escandalizo com a exibição das pessoas acusadas de crimes sem terem sido julgadas e condenadas.”
As críticas do bispo Krautler se referem ao teor da cobertura da imprensa local sobre o padre Amaro Lopes, sucessor da irmã Dorothy na luta pela reforma agrária em Anapu. No ano passado, ele foi denunciado pelo Ministério Público por diversos crimes (associação criminosa, ameaça, invasão de propriedade, entre outros) e ficou preso por 92 dias. As televisões locais mostraram imagens dele no momento da prisão. O religioso reponde ao processo em liberdade, mas, segundo Dom Erwin, vive “praticamente em prisão domiciliar” na prelazia.
Para o bispo, as TVs não deveriam ter exibido as imagens do padre antes antes do julgamento final do processo em última instância. No entendimento da igreja, padre Amaro foi vítima de uma armação de fazendeiros e grileiros. As emissoras, por sua vez, alegam que as acusações partiram do Ministério Público e defendem a liberdade de informação.
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Elvira Lobato é jornalista enviada a Altamira (PA).