Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jornais são empreendimentos familiares e não diferenciam notícias de releases

Cassiano Aguillar, diretor de redação do Panfletu’s. (Foto: Ana Terra Athayde)

Os jornais impressos de Mariana sobrevivem à onda do jornalismo on-line. Entre os fatores que explicam tal resistência está a distribuição gratuita dos exemplares para os distritos e municípios vizinhos; eles chegam aos pequenos povoados onde não existem rádios, e o acesso à internet é deficiente. Outra razão apontada pelos proprietários é o vínculo estabelecido com os moradores.

Os jornais são empreendimentos familiares; as redações funcionam em anexos das residências, e as famílias participam da produção para reduzir os custos e tornar os projetos lucrativos. A cidade possui três semanários de tiragem regular — Ponto Final, O Espeto e Panfletu’s — além do Mundo dos Inconfidentes, que se propõe a ser quinzenal. Em Ouro Preto há O Liberal, que também circula em Mariana.

A expansão para os municípios vizinhos é uma estratégia para atrair publicidade de várias prefeituras e câmaras municipais e também para reduzir a dependência em relação ao poder público local. O ponto fraco mais evidente desses impressos é o uso generalizado de releases enviados por assessorias de comunicação de órgãos públicos e de instituições e empresas privadas; eles são editados como se fossem matérias produzidas pelos próprios jornais.

As informações que impactam o cotidiano do cidadão — como a compra de um novo equipamento para o hospital, campanhas de vacinação, criação de vagas na rede de ensino, arrecadação e destinação de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), pavimentação de ruas — baseiam-se principalmente em releases. Os jornais buscam diferenciar-se na cobertura dos eventos esportivos e culturais, no noticiário político e na apuração de queixas e denúncias encaminhadas pelos leitores. O único que dá ênfase às notícias policiais é o Ponto Final, mas sem sensacionalismo; os proprietários temem sofrer processo com a cobertura criminal. O Liberal foi condenado a pagar duas indenizações, de cerca de R$ 25 mil cada uma. “Todo o lucro que tivemos se foi nas indenizações”, lamentou o editor Paulo Noronha. Segundo ele, um dos processos contestava uma informação tirada de um release da polícia.

A Prefeitura de Mariana define o teto anual para gasto com publicidade em impressos, sites de notícias e emissoras de rádio. A tabela de 2018 estabeleceu o preço de R$ 4,65 por centímetro quadrado, o que corresponde a R$ 2.208,75 para o anúncio de meia página. O limite anual por jornal é de R$ 106 mil, correspondentes a 48 anúncios. Para se cadastrarem, os jornais tiveram de comprovar uma tiragem mínima de 2 mil exemplares.

“JÁ VI”, “JÁ LI”

O Observatório da Imprensa comparou as edições dos jornais O Liberal, Espeto e Ponto Final da terceira semana de setembro de 2018. Elas continham cinco textos exatamente iguais e três com pequenas diferenças; eram releases da Prefeitura de Mariana. Um deles — sobre o tombamento histórico da igreja de Bento Rodrigues — foi a manchete de O Liberal. A publicação de releases é motivo de ironia entre os próprios jornalistas, que se referem a alguns impressos como “já vi” e “já li”, mas os jornais alegam que os releases são informativos.

A faculdade de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) fica em Mariana, e os jornais locais são alvo frequente de pesquisas no curso de graduação. Um dos alunos, Felipe Barbosa, quantificou os releases publicados pelo Ponto Final nos meses de junho e julho de 2017. De 75 textos analisados, 35 (46%) eram baseados em material disponível nos sites das prefeituras e das câmaras municipais de Mariana e de Ouro Preto, da Polícia Militar, do deputado estadual Tiago Cota, da Unimed, da Fundação Renova, da Samarco e da empresa de consultoria Consecon Jr.

O proprietário de O Espeto, Leandro Henrique dos Santos, afirmou que busca ter pelo menos metade da edição com matérias de apuração própria. Ele Lembrou que, certa vez, uma professora da Ufop qualificou os jornais da região de “colcha de retalhos de releases” e de “invólucros de propaganda”; disse que, na época, ficou ficado chateado com a comparação, mas que hoje concorda com a professora. “Há jornais que são invólucros de propaganda. Eu tento não ser”, afirmou. O Liberal disse ter, em média, cinco matérias com produção própria por edição, que representam 40% do conteúdo total.

Em entrevistas ao Observatório da Imprensa, os proprietários divergiram em relação à influência do poder público sobre a linha editorial. Rômulo Passos, do Ponto Final, disse ter independência.

“Não só afirmo que sou independente, mas provo. Minha filha foi demitida do gabinete de um vereador porque fiz uma matéria contra ele no jornal. Os políticos começam a entender que a era de mandar na mídia por causa dos contratos comerciais acabou. Todos os prefeitos brigaram comigo, e eu briguei com todos eles. Meu maior prazer é quando um cidadão me liga e me desafia a publicar uma notícia. Sou amigo do atual prefeito [Duarte Júnior, do PPS] e o assessorei na campanha eleitoral. Mas se aparecer uma denúncia contra ele, vou dar na primeira página. Faço isso constantemente.”

Já Paulo Noronha, de O Liberal, reconheceu que a independência fica comprometida em razão do grande peso da publicidade do setor público que, no caso dele, representa 50% do faturamento – mesmo percentual informado por O Espeto.

O Liberal nunca teve liberdade total, e eu duvido que algum dia a tenha. Se eu dissesse que posso fazer críticas, abertamente e a qualquer tempo, estaria mentido. Como sou financiado por grupos políticos, não tenho como ser totalmente independente e atacar quem controla minha verba. Tenho que pisar em ovos e buscar espaços para fazer críticas, sem exercer uma carga constante. Não posso fazer uma guerra aberta, a menos que queira sacrificar o jornal. Por isso, nossa credibilidade nunca vai ser absoluta”, afirmou.

— Até onde vai sua liberdade?, perguntei. E ele respondeu:

— Até onde o bom senso permite. Meu pai quase levou o jornal à falência, em 2000, porque ficou isolado contra a Prefeitura. Mas não deixo de informar fatos relevantes por medo de retaliação. Em 2013, o ex-prefeito de Itabirito, Manoel da Mota, que concorria à reeleição, se irritou com uma reportagem e os cabos eleitorais dele impediram a distribuição do jornal em várias localidades.

O proprietário do O Espeto, Leandro Henrique dos Santos, disse que seu jornal é imparcial, mas que ele é filiado ao PPS, partido do atual prefeito de Mariana. “Eu tenho lado. Não acredito nesse negócio de neutralidade. Mas meu jornal é apartidário, até para poder dialogar com todas as gestões.”

Paulo Noronha e Leandro Santos são professores da rede pública de ensino e têm, portanto, uma fonte de renda fora do jornal. O Espeto ficou oito anos sem publicidade da Prefeitura de Mariana, o que levou a expandir o jornal para outros municípios. “Não dependo do jornal para sobreviver, mas a receita precisa, pelo menos, cobrir as despesas.”

O ESPETO

O jornal foi fundado em 1928 por Henrique Caetano dos Santos, avô do atual proprietário. Circulou por cinco anos, quando foi uma espécie de porta-voz das reivindicações dos trabalhadores na mineração de ouro. Leandro Santos ressuscitou O Espeto em 1988, de início como bimestral; há cinco anos tornou-se semanal. Santos conta com ajudante contratado, que desempenha as funções de repórter e diagramador, e com colaboradores voluntários.

O Espeto é o único jornal da região com impressão própria; segundo o proprietário, a tiragem é de 2 mil exemplares. Ele circula em Ouro Preto, Acaiaca, Santa Bárbara, Catas Altas, Barra Longa e Diogo Vasconcelos, além de Mariana.

Leandro Santos tornou-se conhecido nacionalmente por ser o fundador e presidente da Associação dos Caçadores de Assombração de Mariana (Acam); a associação também tem sede na casa dele, e reúne 111 integrantes. Todas as edições de O Espeto trazem pelo menos um relato sobre assombração.

PONTO FINAL

O Ponto Final nasceu como revista, em janeiro de 1995. Foi fundado por Héber Passos, irmão do atual proprietário, Rômulo Passos. O jornal ocupa um andar da casa dele, em uma ladeira íngreme. No mesmo ambiente fica o cenário da TV Ponto Final, canal na internet apresentado pelo próprio Rômulo. A filha Bruna Passos e o genro Thiago trabalham na redação. Bruna é editora, e o marido dela é fotógrafo e representante comercial. A equipe conta com apenas um repórter fixo. A tiragem é de 3 mil exemplares. O jornal é vendido a R$ 1. Segundo Bruna, não há distribuição gratuita. Todos os anos ele promove o evento de marketing “Destaque Empresarial”, que escolhe os melhores em 120 categorias de prestação de serviços.

É o jornal local que dedica mais espaço à cobertura policial e o que tem o noticiário político mais “quente.” Entre as denúncias que publicou, está uma série de reportagens sobre as queixas dos moradores com o serviço prestado pela concessionária municipal de ônibus. A empresa era sua anunciante havia mais de 20 anos. Em retaliação, ela cortou a publicidade e ameaçou o repórter por telefone. O jornal transcreveu a ameaça recebida e o comunicado da empresa sobre o rompimento do contrato de publicidade.

Paulo Felipe Noronha, editor de O Liberal. (Foto: Ana Terra Athayde)

O LIBERAL

Fundado em agosto de 1988, pelo radialista paraense Dirceu Noronha, o semanário O Liberal tem tiragem de 11 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente em Ouro Preto (para onde vai metade dos exemplares), Mariana e Itabirito. A edição varia de 12 a 16 páginas.

O jornal tem sede em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, e também tem equipe enxuta. A diretora de redação, Paula Saliba, é também diagramadora. Seu filho Paulo Felipe Noronha é redator, repórter e editor. O jornal possui uma repórter com graduação em jornalismo e oito colaboradores. Segundo Noronha, o faturamento anual é de cerca de R$ 500 mil, e o lucro, de cerca de R$ 15 mil, é reinvestido no próprio negócio.

PANFLETU’S

O semanário Panfletu’s surgiu em 2001 e foi fundado pelo publicitário ngelo Serafim. O diretor de redação, Cassiano Aguillar, de 28 anos, filho do fundador, diz que o jornal foi boicotado financeiramente pela Prefeitura de Mariana de 2005 a 2011, que o teria excluído da distribuição da verba publicitária municipal. Em razão disso, segundo ele, o foco da cobertura do jornal voltou-se para outras cidades. Em 2012, a sede do Panfletu’s voltou para Mariana.

Segundo Aguillar, 50% do conteúdo do jornal é extraído de releases e a tiragem varia de 5 mil a 10 mil exemplares, de acordo com a demanda comercial. Ele disse que o semanário se mantém sobretudo com anúncios de empresas privadas e é distribuído gratuitamente em Mariana, Ouro Preto, Santa Bárbara e Catas Altas. Possui três repórteres (um formado em direito e três de nível médio), além de colunistas não remunerados. Uma das fontes de receita é o evento anual de marketing “Troféu Empresarial,” similar ao do concorrente Ponto Final.

O MUNDO DOS INCONFIDENTES

Foi fundado em 2012, por Levi Quaresma, e circula nos municípios de Ouro Preto, Catas Altas, Santa Bárbara e Barão de Cocais. É o único meio de comunicação impresso de Mariana excluído do credenciamento da Prefeitura para a distribuição da verba publicitária. A causa da exclusão, de acordo com o Município, foi a falta de comprovação da tiragem mínima exigida de 2 mil exemplares, embora o expediente do jornal informe a tiragem de 10 mil exemplares. Quaresma disse que a Prefeitura não lhe manda nem releases — “patrocínio, então, nem pensar” —, mas que já recebeu sinalização do prefeito Duarte Júnior de que o site Mundo dos Inconfidentes será credenciado no próximo ano.

A crise econômica reflete-se na periodicidade incerta do veículo. As edições saem quando há publicidade que banque os custos. Nos meses de julho e setembro 2018 houve uma edição, mas nos meses de agosto e outubro foram três. O principal anunciante neste período foi a Prefeitura de Itabirito.

O conteúdo de O Mundo dos Inconfidentes é composto basicamente de releases e de material extraído de agências. Por isso, é o único jornal local que traz notícias nacionais e internacionais. Quaresma disse que faz o jornal praticamente sozinho e só contrata o diagramador; ele próprio distribui os exemplares nos municípios e distritos da região.

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Elvira Lobato é jornalista.