Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalismo local falha com a democracia

Uma imprensa local fraca implica em uma democracia nacional fraca? Essa questão me perseguiu (e ainda persegue) por anos e fiz dela meu objeto de pesquisa na Universidade de São Paulo. Quis investigar até que ponto o tipo de jornalismo praticado nos interiores dá conta de representar a nossa rica diversidade Ou, de outra forma, se a pluralidade de vozes em cada canto desse país não está refém de um sistema midiático que privilegia poucos atores falando em nome de todos, mas cujos interesses são só de uma minoria.

Infelizmente, a resposta à pergunta inicial é “sim”. Por não contarmos com uma vigorosa, atuante e crítica imprensa em cada localidade estamos condenados ao atraso na política.

Compreender o papel do sistema midiático brasileiro sobre a democracia é um tema recorrente entre estudiosos da comunicação e da política. Mas as pesquisas acadêmicas dedicam seus maiores esforços para analisar as principais empresas de comunicação, que todos sabemos se tratar dos Grupos Globo, Folha, Estado e Abril. Os demais veículos, que podem ser contados na ordem dos milhares, são deixados de lado ou têm sua importância reduzida. Para a pesquisadora Pâmela Araújo Pinto, a típica abordagem dos estudos da comunicação coloca a imprensa local ou regional “em uma postura negativa e inferiorizada” na comparação com a mídia de referência nacional.

Na tese de doutorado Notícias de Segunda Mão: os jornais locais e a cobertura política, que defendi em 6 de junho, procurei verificar como os veículos Comércio do Jahu (Jaú-SP), Correio do Povo (Porto Alegre), Diário do Rio Doce (Governador Valadares), Folha do Estado da Bahia (Feira de Santana), Jornal do Povo (Três Lagoas-MS) e O Liberal (Belém) retrataram o longo processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, desde a aceitação da denúncia, em 2 de dezembro de 2015, até sua conclusão pelo Supremo Tribunal Federal, em 31 de agosto de 2016, e as duas denúncias de corrupção passiva contra o presidente Michel Temer, no ano seguinte.

A tese demonstra que, no caso do impeachment de Dilma, os seis jornais analisados reproduziram, com ângulos praticamente idênticos e sem contextualização local ou regional, o discurso de Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S.Paulo. Pela lei do menor esforço, reproduziram os conteúdos ofertados pelas agências de notícias dos respectivos diários. Já sob o governo de Temer, esses jornais dos interiores procuraram se afastar da narrativa dos três veículos de alcance nacional, que realizaram uma cobertura crítica desde o surgimento das denúncias contra o presidente em 17 de maio de 2017. O jornal carioca apresentou gravações em que o ex-vice de Dilma avalizava uma mesada ao ex-deputado Eduardo Cunha, bancada por Joesley Batista, dono da JBS, em troca de seu silêncio. Temer inicia, então, um toma-lá-dá-cá típico das piores práticas clientelistas da política brasileira, com a liberação de emendas parlamentares em troca de apoio para se livrar das denúncias no Congresso. Nesse momento, a imprensa local ou regional emite sinais de apoiar essa estratégia, denotando estar a serviço de interesses políticos de suas regiões.

Logo após a denúncia contra Temer, o sul-matogrossense Jornal do Povo produziu uma reportagem com o título “Delações da JBS revelam a face de um Brasil corrupto”, mas a foto ilustrativa era de Dilma e Luiz Inácio Lula da Silva. O Diário do Rio Doce ignorou a primeira votação no Congresso da denúncia contra o presidente. A Folha do Estado da Bahia falava do périplo de um secretário local em busca de recursos do programa Minha Casa, Minha Vida, mas não mencionava que esta era uma das moedas de troca utilizadas pelo peemedebista. Mais explícito foi o paulista Comércio do Jahu: “Jaú entra em briga por verbas após Congresso salvar Temer”. O mesmo jornal paulista não escondia, meses antes, sua satisfação com a ascensão do peemedebista, ao dizer em manchete que “Mandato de Temer realinha Jaú com governo federal”.

Os exemplos que levantei evidenciam como a imprensa regional tratou de ocultar, negar ou obscurecer o noticiário envolvendo Temer, ao contrário do comportamento crítico que adotou na maior parte do tempo quando Dilma era presidente da República. A palavra “corrupção”, usada em larga escala pela imprensa contra a petista, praticamente desapareceu com o peemedebista. Isso se deu, muito provavelmente, porque prefeituras que sofriam com a crise econômica tinham a lucrar se a denúncia contra Temer fosse rejeitada. As práticas fisiológicas, de uma hora para a outra, se tornaram aceitáveis ou naturais.

Em resumo, os jornais locais adotaram ou a política do menor esforço, reproduzindo a narrativa vendida por Folha, O Globo e Estadão, ou se renderam às práticas clientelistas e fisiológicas da política. Essas duas alternativas não eram excludentes, ou seja, os jornais variavam entre esses dois comportamentos, conforme a conveniência. Em um e noutro caso, o jornalismo praticado foi de segunda mão. Em um e noutro caso, a democracia perdeu. Com uma imprensa regional que faz vista grossa para as relações fisiológicas, e mesmo que a “grande imprensa” atue no sentido de fiscalizar o poder, as velhas práticas políticas se sacralizam.

Nos seis veículos pesquisados, oito de cada dez reportagens ou notas jornalísticas políticas ou artigos para assuntos nacionais foram provenientes de serviços noticiosos, ocupando um espaço equivalente a 78% da editoria de política. Mas esse fenômeno não se restringiu ao noticiário sobre Brasília. Desde a primeira página, ficou evidente como os jornais locais têm deixado de produzir conteúdos próprios para assuntos de interesse nacional. Cerca de 90% desse material é proveniente de agências de notícias ou da internet, e isso vale também para economia, esporte, internacional ou cultura. A resenha de um filme ou a crítica de um show de um artista em destaque na cena nacional vem das agências noticiosas — ou, pior, da prática de copiar e colar da internet. É como se os jornalistas dos interiores assumissem que não têm competência para tratar de grandes assuntos.

Na tese, realizei ainda entrevistas com editores ou donos dos veículos analisados, porta-vozes das agências de notícias e dirigentes das duas principais associações de jornais dos interiores, a Adjori e ADI-Brasil. Minha experiência profissional de mais de duas décadas como repórter deveria me prevenir do impacto ao ouvir afirmações como essas: “Você é prefeito de uma cidade. E eu, como dono de jornal, acompanhei toda a sua eleição. Agora como vamos trabalhar? O que o senhor inaugurar, o que fizer na cidade, que trouxer um ganho, o jornal vai estar divulgando. Não precisa nem mandar o release. Se tem interesse em parceria, o senhor vai me perguntar a tabela para publicação de matérias adicionais. Preço A com a sua fala. Abre aspas, o prefeito falando: A+B; a sua fala e a sua foto, A+B+C, a sua fala, a sua foto e a manchete.”

O Brasil dos interiores se moderniza, mas a imprensa local ainda preserva características históricas do atraso que a acompanha desde o seu nascedouro. E esse tipo de jornalismo está mais vivo do que imaginamos. Diz-se que a imprensa tem a missão de vigiar o poder. As principais teorias democráticas, de Joseph Schumpeter a Robert Dahl, de Carole Pateman a Jünger Habermas, consideram a necessidade de haver uma sociedade mediada pelos veículos de comunicação e estes sejam capazes de tornar as disputas eleitorais mais justas e equilibradas. Até que ponto os veículos locais e regionais brasileiros têm cumprido com a sua tarefa de, minimamente, informar bem o público?

Em muitos países, a democracia está em xeque, sendo até questionada se ela é o melhor regime para o mundo contemporâneo. Estudiosos da comunicação como Michael Schudson, Ken Doctor ou Emilly Bell têm reiterado a importância de se colocar a mídia local ou regional no centro desse debate. Os desertos de notícias, que existem nos Estados Unidos e no Brasil, tornam essa questão ainda mais evidente, como apontou o Atlas da Notícia. Eis o drama que a democracia terá de enfrentar seriamente nos próximos anos.

Estudos têm reiterado que a imprensa local tem o poder de influenciar positivamente a política. Em 2011, os economistas Christian Bruns e Oliver Himmler se debruçaram sobre um conjunto de 150 jornais locais na Noruega para descobrir que o aumento na circulação dessas publicações está associado a níveis mais elevados de eficiência dos governos locais. A população desse país nórdico está entre as que mais consomem jornais diários em todo o mundo e conta com um poder político descentralizado. Nas localidades pequenas, o espaço dedicado às notícias de política local tende a ser maior, o que favoreceu a conscientização para os problemas da cidade. Ou seja, um eleitorado mais informado obriga os políticos a se comportarem bem.

Em 2013, pesquisadores de universidades de Westminster, Birmingham City e Cardiff analisaram 496 sites locais e descobriram que o jornalismo local favoreceu o avanço da democracia no Reino Unido. Esses sites se especializaram em realizar desde coberturas de campanhas eleitorais até questões cada vez mais abandonadas pela imprensa nacional, como planejamento municipal ou comunitário, cortes em serviços públicos, atividades e campanhas cidadãs. Já os pesquisadores liderados por Martin Baekgaard trabalharam com dados de 2004 a 2009 em 272 municipalidades da Dinamarca, muitas com um jornal local e várias sem nenhum. Naquele país, o voto não é obrigatório e o eleitor precisa se registrar antes para poder participar no dia da votação. O que eles perceberam é que à medida que os grandes veículos de comunicação se afastavam da cobertura local, a inclinação do eleitorado em votar despencava.

Quando a imprensa de maneira geral, e a regional e local em particular, deixa de ser intérprete e porta-voz da vida social, o cidadão se vê obrigado a buscar fontes alternativas de informação, e ele as encontrará. Pense nas redes sociais. O problema se agrava quando o fazer jornalístico se distancia das boas práticas. Ao entregar um conteúdo com um excessivo número de notícias de segunda mão, e muitas delas ao alcance de um clique na internet, os jornais dos interiores perdem sua função e, em pouco tempo, a sociedade os considerará desnecessários. Ela sequer lamentará pela morte de tantos veículos, um fenômeno que já acontece em ritmo acelerado em todo o mundo.

Minha convicção é a de que os diversos sotaques e falas regionais só podem ser apresentados de forma autêntica pelos jornais locais. É fundamental que as grandes histórias nacionais, que precisam ser apresentadas para o público local, deixem de ser diluídas e sejam contextualizadas de acordo com a realidade das comunidades. O jornalismo local não compete com o da imprensa nacional, e deve ser visto como complementar de uma realidade mais ampla e complexa. A democracia local depende da fiscalização constante dos jornais dos interiores, e quando essa função deixa de ser cumprida as consequências afetam perigosamente a todos nós.

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Por Eduardo Nunomura é doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela USP, professor da Faculdade Cásper Líbero, integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, vinculado à ECA e ao IEA-USP, e editor de cultura da revista CartaCapital.

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Referências bibliográficas

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PINTO, Pâmela Araújo. Mídia regional: nem menor, nem maior, um elemento integrante do sistema midiático do Brasil. Ciberlegenda, Rio de Janeiro, n. 29, p. 95-107, 2013.
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