Friday, 27 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 3107

Em busca da cura da ‘surdez” jornalística

(Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay)

A grande moda no mundo acadêmico norte-americano atualmente são os estudos de audiência, mais conhecidos pelo jargão ‘audience turn” (virada para a audiência).  A tendência tenta descobrir o que o público pensa e quer em matéria de notícias, mas acabou constatando algo mais complicado: a dificuldade do jornalismo em ouvir as pessoas comuns.

Os estudos de audiência são mencionados na maioria dos artigos publicados em revistas acadêmicas desde o ano passado e são uma referência quase obrigatória nos pedidos de financiamento para projetos de investigação sobre comunicação na era digital, submetidos a fundações e instituições governamentais.

É um modismo que incorpora uma preocupação há muito ausente nos estudos acadêmicos sobre jornalismo, área onde a expressão inteligência artificial ainda reina absoluta. Desde o início da avalanche de inovações tecnológicas na comunicação e no jornalismo, as pessoas acabaram relegadas a um segundo plano e só eram consultadas para saber se esta ou aquela novidade jornalística tinha chances de gerar receita. 

A nova preocupação com a agenda oculta de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas começa a abalar o histórico comportamento jornalístico de olhar o público de cima para baixo. Durante décadas, quase séculos, os profissionais encarnaram o personagem de quem sabe o que é bom para as pessoas, do que é importante e o que elas devem fazer para receber o rótulo de bom cidadão. Isto deu origem a uma clara diferença entre as preferências noticiosas da imprensa e as do público, como mostrou o pesquisador argentino Pablo Bozkowski no livro The News Gap (1).

Engajamento jornalístico

A internet quebrou este paradigma ao dar às pessoas comuns a capacidade de expressar seus sentimentos, desejos, percepções e opiniões através de blogs, comentários em páginas web, redes sociais, fóruns e chats online. A avalanche de informações produzidas pela interatividade digital mostrou até que ponto o jornalismo, e em especial a imprensa, ignoram a maior parte das preocupações que afligem leitores, ouvintes e telespectadores. 

Esta situação levou inúmeros pesquisadores do jornalismo, como o britânico Nick Couldry e a finlandesa Laura Ahva, a lançar mão de teorias sobre a importância da observação da realidade utilizando métodos inspirados na etnografia e na sociologia. A diferença está em que a observação jornalística na preparação de uma notícia deveria ser participante em vez do distanciamento da realidade, recomendado atualmente pelos manuais de redação, a pretexto de preservar a imparcialidade e isenção.

Os estudos de audiência foram também buscar até nas teorias de administração de empresas fórmulas para entender a realidade dos ecossistemas informativos (1). É o caso da estratégia de gestão conhecida como JTBD (Job To BE Done – trabalho a ser executado) (2), um acrônimo para expressar ações a serem desenvolvidas para atender necessidades objetivas e subjetivas dos consumidores de bens e serviços em geral.  A JTBD gerou inúmeros casos de sucesso na área industrial e comercial, tornando-se uma ferramenta usadíssima na administração empresarial.

O problema é que a cultura da maioria das redações e de muitos profissionais autônomos está longe de incorporar a postura ‘clínica’ de um médico ao examinar um paciente desconhecido, ou de um marqueteiro na hora de decidir uma estratégia de venda para um novo produto.  Para nós, jornalistas, uma pesquisa de reações do público ainda é fundamentalmente determinada pelo desejo de saber se tivemos sucesso ou não na nossa empreitada. E muito frequentemente, quando a reação é negativa, nossa atitude é a de culpar o público.

Letramento auditivo

Os pesquisadores Seth Lewis, Alfred Hermida e Samantha Lorenzo, autores do artigo Making News More Responsive to Community Needs (Tornando as notícias mais sintonizadas com as necessidades de uma comunidade) além de detalharem a análise do que elas chamaram de ‘surdez jornalística’ foram além ao propor o desenvolvimento de estratégias de audição batizadas como ‘listening literacies’ (letramento auditivo).

Estas estratégias se concentram basicamente em duas questões: a identificação das influências noticiosas e a definição das necessidades informativas das comunidades locais em estudo. Este é o objetivo de instituições como o Center for Collaborative Media, da Montclair State University, que analisa o tipo de notícias que recebem os moradores de quase 20 pequenas cidades no estado norte-americano de Nova Jersey.

O mapeamento das influências noticiosas é importante porque permite identificar quais as fontes de informação e quais as notícias que estão alimentando a formação de opiniões e posicionamentos numa comunidade. Com base nestes dados colhidos através da observação direta é possível separar a opinião refletida (formada a partir de influências informativas vindas de fora do público-alvo) da opinião pessoal formada a partir da realidade local.

Para que isto aconteça, é indispensável ouvir as pessoas dando espaço para que elas expressem desejos, necessidades e desafios que servirão de matéria-prima para um jornalismo centrado nas suas audiências.

Notas  

  1. Ver breve review em inglês em https://www.amazon.com/News-Gap-Information-Preferences-Diverge/dp/0262019833 
  2. Ecossistema é o termo utilizado para definir um grupo de seres que habitam em um determinado local, as relações entre eles, e a interação destas comunidades com o ambiente em que vivem. Ecossistema informativo é o ambiente onde correm os fluxos de informação entre pessoas de uma comunidade.
  3. Mais detalhes sobre a metodologia JTBD em https://g4educacao.com/portal/jobs-to-be-done 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.