Num estudo intitulado Knowledge of language (1986), que trata da natureza, da origem e dos usos da linguagem, o linguista e cientista cognitivo americano Noam Chomsky estipulou dois problemas básicos acerca da capacidade humana para compreender a realidade. O primeiro deles, intitulado “O Problema de Platão”, é o seguinte: Como é possível saber tanto com tão poucas evidências? O “Problema de Platão” diz respeito a questões ligadas à cognição humana, considerando as temáticas sobre o conhecimento abordadas pelo filósofo clássico em sua obra. A partir dessa primeira questão, Chomsky desenvolveu suas hipóteses sobre a origem e a natureza da linguagem, uma capacidade que nos possibilita o entendimento e a comunicação acerca do mundo à nossa volta. Já o segundo problema, intitulado “O Problema de Orwell”, envolve os seguintes termos: Como é possível saber tão pouco com tantas evidências? A partir dessa segunda questão, Chomsky busca compreender como a nossa compreensão da realidade pode ser falsificada e manipulada, nos fazendo interpretar a realidade de acordo com objetivos e interesses alheios. O “Problema de Orwell” trata-se de uma questão política e institucional, que parte dos cenários distópicos elaborados pelo escritor George Orwell (codinome do britânico Eric Arthur Blair), principalmente na obra 1984, na qual um governo totalitário busca controlar o pensamento das pessoas através do emprego sistemático da propaganda e da manipulação, contando inclusive com um improvável “Ministério da Verdade”, que busca “reescrever a história” e “dominar consciências”.
Dois documentários lançados recentemente abordam de maneiras diferentes o “Problema de Orwell” no cenário político brasileiro, levantando questões relevantes para o debate sobre informação e democracia no país. Tratam das possibilidades de influência e manipulação da opinião pública e os resultados políticos dessa empreitada. O primeiro deles, intitulado A nossa bandeira jamais será vermelha, é dirigido por Pablo López Guelli e trata do papel da imprensa brasileira nos eventos sociopolíticos do país desde 2013, um período de muitas turbulências, conflitos e polarizações. Trata-se de uma iniciativa que envolve grupos de jornalistas independentes, que buscam mostrar como as abordagens das grandes empresas de mídia do país contribuíram com narrativas e enquadramentos específicos para a definição do cenário político atual, influenciando e direcionando a opinião pública. O documentário também analisa a história das relações entre as corporações midiáticas e as estruturas de poder no Brasil, um estranho emaranhado entre interesses financeiros e políticos de seus (poucos) proprietários. O título do documentário remete às manifestações contrárias ao partido que governava o Brasil até 2016, também envolvido na crise de representatividade que impactou a vida democrática brasileira nos últimos anos. Mesmo com possíveis ressalvas em relação à narrativa apresentada, A nossa bandeira jamais será vermelha levanta importantes questões ligadas à estrutura midiática brasileira e ao seu poder e influência consideráveis, mesmo com o impacto das novas tecnologias da comunicação para a produção e distribuição das informações.
Já o segundo documentário, cujo título é A verdade da mentira, é dirigido por Maria Carolina Telles e trata-se de uma produção que envolve o Instituto Tecnologia e Equidade em conjunto com o Canal History. Acompanhando o processo eleitoral de 2018, o documentário aborda as estruturas de desinformação implementadas no Brasil nos últimos anos, que faz uso das tecnologias da comunicação para distribuir e impactar o debate público com informações falsas e desinformação. Nesse sentido, o documentário conta com a participação de diversos especialistas (Noam Chomsky entre eles) para entender como se dá o funcionamento desses procedimentos, que fazem uso principalmente das redes sociais, e qual é seu real impacto na esfera pública. Muitas das informações apresentadas são relativas ao contexto nacional, mas também são válidas para a situação de outros países. Um ponto relevante do documentário é o questionamento sobre os motivos pelos quais as pessoas acreditam e compartilham notícias falsas. Em contextos de polarização política intensa, nas quais as identidades dos indivíduos passam a se vincular a posicionamentos políticos, suas crenças também são impactadas. Na maior parte das vezes, o envolvimento emocional dessa relação de identidade é que pauta a deliberação sobre os motivos para acreditar em algo ou não. Além disso, a própria dinâmica das redes favorece a aproximação de pessoas com posicionamentos e crenças parecidas, configurando bolhas e câmaras de eco na qual se escuta apenas a própria voz. Além disso, com as plataformas de interações sociais digitais é possível direcionar conteúdos para públicos específicos, construindo redes de desinformação e distorção politicamente úteis.
Na análise de Chomsky, o “Problema de Orwell” é um dos desafios das sociedades democráticas contemporâneas, que buscam legitimidade a partir de processos políticos abertos e transparentes, que também dependem da qualidade da distribuição e do acesso à informação para se efetivarem. No caso da influência dos grandes grupos de comunicação do país nos processos eleitorais e o direcionamento da opinião pública, conforme é possível ver em A nossa bandeira jamais será vermelha, o “Problema de Orwell” poderíamos ter a seguinte resposta: mesmo com tanta informação disponível, sabemos tão pouco acerca de nossa própria situação pois estamos inseridos em contextos de enquadramentos e direcionamentos das notícias e informações, de acordo com os interesses dos grandes grupos. Já no caso de A verdade da mentira, a possível resposta é ainda mais cética: mesmo com tanta informação disponível, sabemos tão pouco acerca de nossa própria situação pois estamos envolvidos em redes de desinformação a partir das plataformas de interação social digital, que podem ser aproveitadas nos contextos de polarização para distribuir desinformação e notícias falsas.
Uma observação crítica aos documentários aqui abordados é a ausência do debate mais amplo acerca dos difíceis contextos sociais, econômicos e políticos do mundo contemporâneo, que servem de pano de fundo para tensões ligadas à informação e seus impactos na vida democrática nos países. Cenários de insegurança e instabilidade, com desigualdades em crescimento, contribuem para o avanço de visões de mundo reativas e muitas vezes violentas, que podem ser ampliadas pelas interações sociais digitais, não são temas abordados nos filmes. No entanto, mesmo com essas ressalvas, A nossa bandeira jamais será vermelha e A verdade da mentira são produções importantes para os tempos atuais. Expõe questões importantes dos debates sobre informação e democracia, estimulando assim, reflexões sobre os tempos difíceis em que vivemos. Se na distopia de Orwell, a desinformação, a manipulação e o totalitarismo eram elementos diretamente conectados entre si, onde um levava ao outro, é cada vez mais necessário ficarmos atentos para que os atuais “Ministérios da Verdade” não dominem nossas consciências e nos façam pensar que dois mais dois seja igual a cinco.
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Referências
- A nossa bandeira jamais será vermelha. Direção de Pablo López Guelli. 72 minutos, 2019.
- A verdade da mentira. Direção de Maria Carolina Telles. 44 minutos, 2019.
- CHOMSKY, Noam. Knowledge of language: Its nature, origin, and use. Westport: Greenwood Publishing Group, 1986.
- José Costa Júnior , Professor de Filosofia e Ciências Sociais.
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Por José Costa.