Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

OESP

GLOBO & FUTEBOL

"Abuso da exclusividade na TV", Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 21/10/01

"Se o direito à igualdade de oportunidades é garantia comum e indispensável a quaisquer atividades que se desenvolvam dentro de um regime de livre concorrência, em se tratando de setores que dependam de concessão pública – justamente porque neles sobreleva uma função de interesse público -, esse sentido isonômico deve ser especialmente cuidado, para que a concessão – que é outorga de toda a sociedade – não se transforme em privilégio ou abuso de alguns. É dentro dessa ótica que se devem examinar os contratos que têm por objeto os direitos de transmissão de eventos esportivos, culturais e de todo o gênero, notadamente aqueles que sempre foram de maior interesse para a população – sejam os campeonatos de futebol, os desfiles de escolas de samba, os grandes eventos religiosos, políticos ou culturais que deveriam situar-se acima das injunções – ou do excesso de imposições – do patrocínio econômico. É bem de ver que, no campo da ?exclusividade? da transmissão, tais eventos ou espetáculos não podem ser equiparados a fatos ou notícias que se tornem objeto de matérias jornalísticas ?exclusivas?, deste ou daquele veículo. E também não se equiparam às ?produções? próprias dos veículos de comunicação eletrônica – como se fossem novelas ou programas de auditório – com todos os seus respectivos mecanismos legais de proteção autoral, comercial e mercadológica.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do Ministério da Justiça, por voto unânime de seus integrantes, instaurou inquérito para investigar os contratos de venda de direitos de transmissão, pela televisão, dos jogos dos campeonatos de futebol. A investigação se deve a indícios de abuso de poder econômico e de formação de cartel, tanto da parte das emissoras quanto dos clubes de futebol, no sistema de ?exclusividade? dessas transmissões. A procuradoria do Cade questiona a legalidade e mesmo a constitucionalidade desse sistema, do qual a TV Globo é a principal beneficiária, por deter os direitos de transmissão de mais de 20 campeonatos, além dos amistosos da seleção brasileira.

Com efeito, em termos de direitos de transmissão, quase sempre com exclusividade, a Globo é ?dona? das Copas do Mundo de 2002 e 2006, das Eliminatórias da Copa de 2002, da Copa Libertadores, dos Amistosos da Seleção, da Copa Mercosul, da Copa América, da Copa das Confederações, do Campeonato Brasileiro, da Copa do Brasil, da Copa dos Campeões, do Torneio Rio- São Paulo, da Copa Nordeste, da Copa Norte, da Copa Sul-Minas, da Copa Centro-Oeste e dos Campeonatos Gaúcho, Catarinense, Paranaense, Paulista, Carioca, Mineiro, Goiano, Baiano, Pernambucano, Cearense e Maranhense.

Dentro das investigações do Cade estarão duas empresas do Grupo Globo – TV Globo e Globosat -, além da TV Bandeirantes e da TVA, do Grupo Abril , por contratos firmados em 1997, com vigência até 1999. Da parte dos clubes, serão investigados os integrantes do Clube dos 13 (que são os representantes dos maiores clubes de futebol do País) e o Clube dos 11, onde estão os times de segunda divisão. Para os procuradores do Cade, esses clubes formaram um verdadeiro cartel, quando resolveram unir-se para negociar em bloco a venda dos direitos de transmissão dos jogos. Eles buscaram obter o melhor preço por essa transmissão, mas deram margem a que pudesse eliminar-se a concorrência entre as emissoras de televisão, nos jogos de maior interesse para a população. Também entendem os procuradores que as emissoras teriam violado princípio constitucional, segundo o qual os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

Sabe-se que a TV Globo tem contrato de exclusividade com o Grupo dos 13, que vai até 2005. E sabe-se também que esses clubes recebem, anualmente, da emissora o que corresponde a 60% de seu faturamento total. Por aí já se percebe o grau de dependência de todos eles, em relação à rede líder da audiência nacional. Indague-se agora: isso é bom para a evolução do nosso futebol, para o fortalecimento da pluralidade dos nossos veículos de comunicação e para a preservação da diversidade de opções dos telespectadores brasileiros?

Esperemos que, a partir da atuação do Cade, desapareça a exclusividade nas transmissões, pela televisão, dos campeonatos futebolísticos e se restabeleça a diversidade de opções."

 

"No país do tranco lícito", copyright no. (www.no.com.br), 18/10/01

"Ali pela altura dos 25 minutos do segundo tempo de Flamengo e Corintians, domingo passado, o atacante Roma, do time carioca, foi empurrado dentro da área. O baixinho já ia caindo, quando conseguiu arrumar forças para ficar de pé, pegar a bola e chutar em gol (longe, sem perigo para o guarda-valas adversário). Da cabine da TV Globo, o comentarista de arbitragem José Roberto Wright viu o óbvio que o juiz em campo não viu: tinha sido pênalti no empurrão. Empolgado, porém, o comentarista da Globo viu além. Viu fundo na alma cafaja que assola as esquinas do país. E aí, como se diz na Rio Branco com Ouvidor, aí o cara se estrepou.

José Roberto Wright, que é pago para julgar o juiz, pago para fiscalizar o sujeito que está encarregado de colocar a lei em campo e tornar o futebol um espetáculo civilizado, de obediência cega às regras de já um século, pois não é que o ex-juiz Wright transportou-se para o outro lado do tribunal e, como esses policiais cariocas que vão trabalhar nas delegacias usando carro clonado, pregou o crime com algo próximo desse discurso: ?O Roma devia ter valorizado, é um jogador jovem ainda não sabe dessas coisas. Devia ter caído no chão e ficado por lá, que o juiz dava o pênalti. O Roma ainda é muito ingênuo.?

Pode parecer um detalhe tão pequeno de nós dois, mas por aqui tudo que rola ao redor de uma bola desce redondo e ajuda a entender o país. A legislação que regula o direito de todo brasileiro levar vantagem em tudo, uma das nossas sínteses mais geniais e sórdidas, vem de um jogador – é a lei de Gerson. Há anos me impressiona também a famigerada jogada do tranco lícito. É assim: o craque vem com a bola grudada nos pés quando um Emerson da vida dá-lhe uma trombada com os ombros. Melhor dizendo: agride-o com o ombro. O craque perde imediatamente a bola, é jogado pela linha de fundo, enquanto o perna-de-pau sai de peito estufado. Na cabine, ouve-se o comentarista de arbitragem mandando seguir o jogo: ?tranco lícito, com o ombro?. Ah, bom.

O futebol nos explica e seduz. Se no Brasil até o tranco é lícito, sobra muito pouco para o ilícito. Vale tudo.

José Roberto Wright e Arnaldo César Coelho foram bons árbitros. São bons comentaristas de televisão e costumam ter certa paciência para explicar, ao público feminino, os intricados da lei do impedimento. Mas andam, coitados, tão acostumados a verem carros estacionados nas calçadas, pedestres tendo que olhar para os lados mesmo quando o sinal lhes é favorável, andam tão acostumados com a imensa bandalha fora dos campos, que a cada dia diminuem um pouco mais o rigor na crítica à aplicação das leis no futebol.

No Brasil, tudo acaba em campo ou sai de lá. FH matou: Seleçao fora da Copa é crise política na certa. Somos bons na mudança das mãos das ruas pela manhã na Zona Sul do Rio, uma operação espetacular feita com meia dúzia de PMs. Somos feras na organização dos desfiles das escolas de samba, um show de 100 mil dançarinos dirigido por meia dúzia de bicheiros. De resto, nesses 500 anos, fracassamos em quase tudo. No futebol, no entanto, inventamos uma civilização e, acima de tudo, ensinamos o mundo a se comportar com estilo cumprindo todas as leis. Agora, inspirados ou inspirando os senadores corruptos, jogamos fora da ordem geral.

O carrinho – aquela excrescência pública que o jogador faz na horizontal – deveria ser combatido por Wright e Arnaldo César com veemência. Mas, do mesmo jeito que os vereadores do Rio permitem o aumento dos decibéis na cidade, os comentaristas de arbitragem na televisão, pagos para ensinar a lei, já admitem os carrinhos mais criminosos. Ainda se mantêm cheios de pudores diante do carrinho por trás. Mas nada como o tempo para lhes acabar com essas bobagens. Breve, a tesoura voadora, desde que aplicada pela frente, e abaixo da linha da cintura do adversário, será explicada por suas Senhorias como um recurso lícito, como o tranco.

Já tivemos Didi, um jogador de tal elegância na relação com a bola e com os adversários que foi apelidado de Príncipe Etíope. Didi inventou a folha seca, versão futebolística da arquitetura de Niemeyer – enviava a bola em linha reta para o gol, até que, subitamente, ela descrevia uma curva, caía e entrava nas redes. A Pampulha, se você reparar bem, é assim. Didi jamais foi visto de carrinho, arrancando grama e tendões alheios como os Emersons de hoje. Era o Brasil da gargalhada de JK, hoje é o Brasil do pega-prá-capá. Se os juízes na televisão deturpam a lei, se o PM embaixo do sinal de trânsito fica apitando decibéis inúteis e criminosos à saúde pública, quem será que nos salva, nos salvarão dessas trevas e nada mais?

Haverá alguma coisa com mais cara desse Brasil grosso e sincero do que o Felipão despejando palavrões na beira do campo? A televisão vibra com seus closes. E, no entanto, é uma atitude absolutamente anti-esportiva, além de lembrar certos filmes de Jece Valadão. Os comentaristas de arbitragem calam-se outra vez. Wright e César Coelho poderiam se esforçar mais para que os pitbulls sem focinheira, as bicicletas à cem por hora nas calçadas e os lutadores de jiu-jitsu, essas violências que o dia-a-dia vai banalizando, não tivessem representação nos campos. Parece que é tarde demais e a praga do juiz Lalau já adentrou o gramado. Se as multas de trânsito são anistiadas pelas prefeituras, qual o problema com o carrinho e o tranco de ombro? Parece que ainda não pode dançar homem com homem, o resto – dá para ouvir a voz do Tim Maia – é tudo lícito. O vale é tudo.

O futebol era o último bastião em que cumpríamos a lei, ainda mais porque ela sempre nos protegia diante dos brucutus argentinos e alemães. Hoje, o Campeonato Brasileiro é pau puro, sem que ninguém note na cabine refrigerada da Globo. Ronaldinho é nove, mas o ilícito joga nas onze e, como aqueles policiais que assumem a linguagem dos bandidos, chegou no ouvido do torcedor e gritou: ?Perdeu, perdeu?. Perdemos todos, rumo à repescagem moral e esportiva.

Se o técnico, o grande mestre, rege a Seleção com palavrões; se um juiz vai para a televisão ensinar o jogador a ludibriar a lei, teatralizando um pênalti, é a hora de seguir a velha técnica futebolística de arrecuar os arfes para evitar a catástrofe. É a triste hora de parodiar a música do Chico – e chamar o Eurico Miranda."

    
    
                     
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