Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Católicos e muçulmanos contra educação sexual

(Imagem de 12019 por Pixabay)

Não devo estar enganado: ouvir uma ministra da Educação dizer “não se quer incitar os jovens à pornografia, nem ensinar a se masturbar e nem se incitar a mudar de gênero” é algo inédito. E isso não num lugarejo brasileiro dominado pelos evangélicos, mas na capital belga, Bruxelas, numa entrevista coletiva para a imprensa é quase inacreditável.

Porém, era necessária essa clareza diante da onda de desinformação e conspiracionismo desfechada por católicos fundamentalistas e muçulmanos diante da decisão do governo de destinar duas horas anuais nas escolas, nas classes de adolescentes, para palestras de professores baseadas na Iniciativa Evras, Educação para a Vida Relacional, Afetiva e Sexual.

Em palavras mais objetivas, a iniciativa Evras, que já existia de maneira opcional desde 2012, foi oficializada nas escolas públicas e privadas, cujas aulas já começaram, num total de duas horas anuais, reservando-se a parte destinada à orientação sexual aos alunos de 12 a 16 anos. Essa decisão, chamada impropriamente de curso sexual, já provocou incêndios em oito escolas, atacadas durante a noite por grupos de religiosos.

De acordo com os jornais belgas que entrevistaram professores e orientadores sociais, os pais de crianças em idade escolar vivem um clima de conspiracionismo criado pelas redes sociais, semelhante ao destinado nos EUA e Brasil a fins políticos, com a proliferação de fake news. Uma delas distorce informações da OMS, Organização Mundial da Saúde, para assimilar a Iniciativa Evras como incitação à pedofilia. Como ocorria no Brasil, circulam temas negacionistas ligados à crise do Covid, guerra na Ucrânia, manipulação da mídia. mudança climática e o wokismo (um neologismo francês derivado do inglês woke, acordado e desperto).

A novidade nessa crise é a participação da comunidade islâmica, cujo conservadorismo vai além dos católicos integristas e tem dificuldade de se integrar numa sociedade laica.

Na França. existe mesmo uma certa resistência dos muçulmanos à integração de suas filhas nas escolas públicas, onde ostentam sua diferença religiosa com as outras alunas pelas roupas. Por isso, na atual volta às escolas, o Ministério da Educação proibiu o uso da “abaya”, uma espécie de mantô ou casaco largo e amplo, usado sobre a roupa ou uniforme das alunas, cobrindo todo o corpo até os pés.

A associação Direito dos Muçulmanos entrou com um recurso contra a probição da “abaya” em nome do risco de discriminação e limitação dos direitos, alegando também ser uma roupa tradicional. O Conselho de Estado francês rejeitou o recurso, considerando que essa roupa era uma afirmação religiosa dentro de escolas públicas, quando a lei laica proíbe sinais religiosos manifestados de maneira ostensiva. E rejeitou a desculpa de ser traje tradicional.

Na Bélgica, o Conselho belga de coordenação das instituições islâmicas manifestou-se contra a Iniciativa Evras “por intervir na liberdade religiosa e no direito dos pais guiarem a educação de seus filhos conforme suas crenças”.

Por coincidência, os mesmos jornais que publicavam as reações religiosas e atentados e tentativas de atentados na Bélgica contra o ensino sexual nas escolas, lembravam o assassinato, há um ano, pela polícia iraniana, da jovem Nahsa Amini. A jovem de 23 anos tinha sido presa por não portar corretamente nos cabelos o chale ou véu (hijab) exigido pelos imãs iranianos.

Resumindo, tanto a orientação sexual nas escolas belgas, como roupas religiosas como abaya ou hijab proibidas nas escolas francesas mas obrigatórias no Irã e na maioria das famílias muçulmanas, imitadas pelas pentecostalistas brasileiros de vestidos longos e chales cobrindo os cabelos, mostram a dificuldade das religiões aceitarem a mulher como ser humano livre e igual ao homem. A crença da superioridade masculina defendida pelas religiões ainda é forte na Europa, reforçada pelas crenças vindas com a imigração de países onde a mulher continua sendo considerada um ser inferior.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.