Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Distorção do entendimento de bibliodiversidade e os riscos do PL 3070/2024

(Foto: Daniela Zigante – arquivo pessoal)

A bibliodiversidade, amplamente reconhecida como fundamental para a promoção da diversidade cultural no campo literário, está sendo distorcida por uma proposta legislativa preocupante. O Projeto de Lei (PL) 3070/2024, que exige que bibliotecas públicas e privadas sigam um critério de “pluralidade de ideias, conceitos, teorias e interpretações” na organização de seus acervos, forçando a quantificação de obras de autores conservadores, liberais e progressistas, exemplifica como esse conceito pode ser completamente deturpado.

Ao propor que as bibliotecas organizem seus acervos com base em uma divisão quantitativa de ideologias, o PL pratica uma forma de censura disfarçada. Em vez de permitir que as obras sejam escolhidas por seu mérito e relevância, o projeto impõe um critério externo e artificial que restringe a autonomia das bibliotecas. A verdadeira liberdade intelectual exige que os curadores das bibliotecas possam tomar decisões com base na qualidade das obras, na necessidade dos leitores e na missão educacional das instituições.

A bibliodiversidade defende a diversidade necessária de pontos de vista e abordagens epistemológicas, em oposição a um modelo mercadológico que visa exclusivamente objetivos financeiros e a homogeneização cultural. HAWTHORNE (2014, 20) define bibliodiversidade como 

[…] um sistema complexo e autossuficiente de relatos, escrita, editoras e outras formas de oratura e literatura, onde tanto os escritores quanto os produtores são comparáveis aos habitantes de um ecossistema. A bibliodiversidade contribui para o florescimento da cultura e para a saúde do ecossistema social.

O texto do PL pode, à primeira vista, parecer uma tentativa de garantir que múltiplas visões de mundo estejam representadas nas bibliotecas brasileiras de forma equânime e justa. Contudo, ao impor que os acervos sigam uma distribuição artificial entre autores de diferentes espectros ideológicos, o que se cria é um controle sobre a curadoria das obras, cerceando a autonomia das bibliotecas e a livre circulação de ideias. Essa tentativa de balanceamento forçado não considera as necessidades locais, a relevância das obras, a qualidade literária e acadêmica dos materiais, reduz a discussão à questão quantitativa que é justamente o oposto da compreensão de um ambiente equilibrado e diverso no âmbito dos livros.

Portanto, longe de promover a diversidade de ideias, esse PL impõe uma censura disfarçada de equidade, comprometendo o cenário cultural e educacional do país. Ao limitar a autonomia dos bibliotecários na curadoria de suas coleções, a proposta ameaça o funcionamento das bibliotecas e, consequentemente, a riqueza do debate intelectual e cultural na sociedade.

Ao contrário do que o PL sugere, a bibliodiversidade não é alcançada pela imposição de quotas ideológicas, mas sim pela garantia de que autores de diferentes origens culturais, sociais e geográficas possam ter suas vozes ouvidas e seus livros acessados. A bibliodiversidade implica na promoção de uma pluralidade de ideias que emerge naturalmente da liberdade editorial e da diversidade de publicações. O foco está na representação de várias culturas, experiências de vida e contextos históricos, não restrito à quantificação de ideologias.

RIBEIRO (2021) destaca que a noção de bibliodiversidade, adaptada da biologia (biodiversidade) para o universo dos livros, enfrenta desafios semelhantes aos dos ecossistemas naturais, como incertezas, ameaças, disputas e depredações, e o que observamos com este PL é um ataque em forma de regulamentação que compromete a circulação das obras. 

Bibliodiversidade envolve a representação de diferentes perspectivas autorais, inclusive as dissidentes, abrangendo não apenas aspectos temáticos e estéticos. Para garantir a verdadeira pluralidade, é essencial considerar a multiversidade na produção editorial, permitindo que vozes marginalizadas sejam ouvidas, além dos discursos hegemônicos e historicamente opressores, incluindo obras que tratem de questões de identidade de gênero, diversidades geográficas, raciais e econômicas, e outros temas que reflitam a rica complexidade do nosso país.

A proposta de “balanceamento ideológico” ignora o fato de que o mercado editorial, as necessidades educacionais e a produção acadêmica não funcionam segundo essas lógicas e balizas de proporcionalidade forçada. Ao impor tais regras, o PL compromete a qualidade dos acervos, limitando o acesso dos leitores às obras que podem vir a contribuir para o seu desenvolvimento intelectual. Forçar uma divisão entre conservadores, liberais e progressistas não só desrespeita a complexidade das ideias, mas também transforma a curadoria das bibliotecas em um campo de batalha político-partidário, onde as obras e os leitores ficam em segundo plano.

A diversidade de ideias não se constrói a partir de quotas ideológicas, mas sim a partir da liberdade de publicação, da circulação de obras de diferentes gêneros e contextos, e da promoção de uma leitura crítica. Transformar bibliotecas em campos de batalha ideológicos é uma forma de controlar o pensamento e limitar a exposição dos leitores a uma verdadeira pluralidade de ideias. Ao tentar criar uma igualdade forçada, o PL está, na verdade, gerando ainda mais desigualdade, impedindo que obras relevantes sejam acessadas pelo público por não se enquadrarem em critérios ideológicos predeterminados. 

Além do que, os critérios propostos pelo Projeto de Lei são genéricos e superficiais, o que inevitavelmente pode gerar distorções em futuras regulamentações. Um projeto de lei minimamente bem elaborado deveria explicitar claramente o que se entende por “conservador”, “liberal” e “progressista”. Além disso, o PL confunde autores com suas obras, assumindo que um autor de orientação conservadora, por exemplo, sempre produzirá livros alinhados a essa mesma ideologia, independentemente de seu passado ou futuro, uma suposição simplista que desconsidera a complexidade das produções literárias e intelectuais.

Ao longo da história, os livros têm sido alvo de ações de repressão e censura, evidenciando o poder que possuem em disseminar ideias e questionar o status quo (CHARTIER, 1998). Cada contexto histórico apresenta suas particularidades, mas a veemência com que regimes autoritários buscam controlar a publicação e circulação de livros atesta o temor que esses poderes têm diante da força transformadora das palavras (REIMÃO, 2023). A partir de DARNTON (1990 e 2010), compreendemos como censura qualquer atitude que busque limitar a atividade de autores, editores, gráficos, distribuidores, livreiros e leitores.

Nesse sentido, o Projeto de Lei (PL) em questão, que propõe a organização dos acervos bibliográficos de bibliotecas públicas e privadas com base em uma “quantificação dos exemplares de autores conservadores e progressistas,” se insere em uma longa tradição de controle do conhecimento, disfarçada sob o manto de uma falsa equidade ideológica. A justificativa do PL afirma que ele “não pretende ser, de modo algum, um instrumento de censura, mas exatamente o contrário: ser um instrumento de eliminação de uma flagrante e cotidiana censura nas bibliotecas brasileiras”, trata-se de retórica da extrema direita para confundir e polarizar o debate público, criando um ambiente de cerceamento da liberdade de expressão e circulação de ideias, observamos nesse projeto um movimento de desconstrução das macropolíticas voltadas ao livro e à leitura, que vêm sendo implementadas no Brasil ao longo dos últimos 87 anos. Desde a criação do Instituto Nacional do Livro, essas políticas têm sido orientadas pela promoção do livro, da leitura, da escrita, da literatura e das bibliotecas de acesso público, buscando ampliar o acesso à cultura literária em todo o país.

A tentativa de impor uma distribuição ideologicamente equilibrada nas bibliotecas ignora o papel fundamental dessas instituições como promotoras da diversidade cultural e da democracia. Ao propor a eliminação de obras que excedam o “limite” imposto para autores de determinada linha ideológica, o PL visa, na prática, excluir as vozes críticas e progressistas, limitando o acesso dos leitores a diferentes perspectivas políticas e intelectuais. Isso sem falar de uma possível repercussão no direcionamento para a criação de obras, visto que uma possível lacuna de variadas linhas ideológicas poderia resultar na produção forçada de títulos que atendam a esses critérios artificiais.

O argumento central do PL, de que os acervos das bibliotecas privilegiam “certas perspectivas ideológicas em detrimento de outras” – sem destacar nenhuma pesquisa a respeito, citando exclusivamente um exemplo estrangeiro, sem qualquer comprovação científica ou relação com o contexto brasileiro – revela um profundo desconhecimento sobre a produção editorial, o papel das bibliotecas e da bibliodiversidade.

A proposição dessa norma revela-se não apenas insipiente e com justificativa incoerente, mas trata-se de proposta completamente inexequível quando consideramos a diversidade de gêneros literários e temáticos presentes no acervo de uma biblioteca pública. Cabe ressaltar que já é precária a situação das bibliotecas brasileiras, posto que não há bibliotecários suficientes para gerenciá-las (VALENTIM, 2017), e ao que parece essa iniciativa visa prejudicar ainda mais esse quadro de precarização. 

Mas, tomemos como exemplo hipotético, uma biblioteca pública, com um acervo composto não apenas de títulos de economia, como sugerido pelo PL, mas também de áreas correlatas como sociologia, história e outras disciplinas. Mesmo no contexto acadêmico, a implementação dessa proposta seria extremamente complexa e inviável, pois exigiria que o bibliotecário conhecesse detalhadamente a ideologia político-partidária de cada autor e de cada obra. Ampliemos essa exigência para outras áreas e gêneros e que o acervo é composto por distintas mídias, formatos e suportes, com conteúdos impressos, eletrônicos e digitais. A tarefa se torna monumental, para não dizer impossível, quem dirá passível de justa fiscalização, considerando os riscos subjetivos e anacrônicos das interpretações diante de critérios tão ineficazes.

Vamos pensar, ainda como exercício especulativo, a Biblioteca Nacional – responsável por atribuir o número de identificação aos livros editados no país e receber seu correspondente exemplar durante os mais de 200 anos da indústria editorial do país –, cujo acervo é dividido em várias seções, como cartografia, iconografia, manuscritos, música e arquivos sonoros, obras gerais, obras raras, periódicos, obras de referência e coleções. Como seria possível aplicar essa proposta em um acervo tão vasto e diversificado, estruturado em variados suportes? Difícil, não? Vamos reduzir. Tomemos, então apenas a multiplicidade de temas e disciplinas presentes nas “Obras Gerais”, que incluem desde literatura brasileira e estrangeira, livros jurídicos, didáticos, infantojuvenis, até ciências, meio ambiente, física, medicina, astrologia, história, geografia, informática e botânica, entre outros. Cada uma dessas áreas envolve um universo próprio de autores, perspectivas e enfoques, o que tornaria a implementação dessa norma no mínimo inviável do ponto de vista prático e operacional.

Essa proposta nos leva a questionar as verdadeiras motivações por trás da sua formulação, já que claramente não foi resultado de uma escuta atenta aos profissionais do setor editorial brasileiro, nem tampouco aos conhecimentos da biblioteconomia. A ausência de considerações sobre a dimensão real e a razoabilidade pragmática desse projeto torna evidente que se trata de uma proposta alheia às complexidades do universo das bibliotecas e à diversidade cultural que elas devem preservar.

Bibliotecas são instituições cujo objetivo é servir à educação, à cultura e ao desenvolvimento crítico da sociedade. Ao imporem regras rígidas sobre a composição dos acervos com base em divisões ideológicas, os legisladores estão impondo uma agenda política que interfere diretamente na liberdade acadêmica e cultural. A ideia de que os acervos devem ser estruturados para quantificar representações ideológicas é não apenas absurda, mas também perigosa, uma vez que se baseia na falsa premissa de que todos os lados de um debate possuem a mesma validade ou relevância, ignorando critérios de mérito histórico, intelectual, artístico, de interesse público.

O PL que propõe como “pluralidade ideológica” nas bibliotecas brasileiras não só distorce o conceito de bibliodiversidade, como também ameaça a liberdade intelectual e cultural no país. Longe de promover a equidade, ele impõe uma forma de censura que compromete a qualidade dos acervos e limita o acesso dos leitores a uma verdadeira diversidade de perspectivas. 

DARNTON (2016) alerta que há a possibilidade de encontrarmos diversas tentativas na história de coerção aos livros e estas, por sua vez, devem ser compreendidas e analisadas considerando as singularidades de cada país e sistema político que a experiência concreta apresenta. CHARTIER (1998) complementa essa reflexão, observando que a eficácia dos atos censórios aos livros é sempre, de alguma maneira, limitada. Embora a destruição de livros e o bloqueio ao acesso a eles sejam tentativas de eliminar as ideias que os originaram, a história revela que essas ideias frequentemente resistem e sobrevivem, desafiando as tentativas de silenciamento.

A bibliodiversidade deve ser defendida com base na liberdade editorial e no respeito à pluralidade cultural, e não por meio de quotas ideológicas que distorcem o papel das bibliotecas e do mercado editorial. A verdadeira riqueza das ideias surge da liberdade, não da imposição artificial de plataformas políticas. 

A consolidação da democracia no Brasil também se constrói a partir da garantia do direito ao livro e à leitura, promovendo a democratização do conhecimento tanto em sua produção e difusão quanto na criação de oportunidades de acesso. E nos parece que os legisladores por trás dessa proposta não alcançaram essa compreensão e justamente por isso elaboraram esta PL como uma estratégia de desmonte das políticas culturais e educacionais do livro e da leitura, ao construir uma releitura distorcida da “pluralidade”, embasada em visões reducionistas, esse projeto se assemelha a outros propostos por parlamentares de extrema direita, que mais servem ao intuito de gerar polêmica e polarização no debate público do que efetivamente gerar alguma alternativa às políticas para bibliotecas no Brasil. 

Essa proposta de PL não democratiza os acervos, como sugere, mas sim impõe uma forma de censura velada que entra em conflito direto com a cultura de defesa da diversidade e da liberdade de pensamento. A verdadeira pluralidade de ideias em um acervo não pode ser alcançada por meio de quotas ideológicas, mas sim pela liberdade de curadoria e pela diversidade de fontes que refletem a complexidade e a riqueza do pensamento humano. O caminho é resistência!

 

REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. A aventura do livro – do leitor ao navegador. Tradução: Reginaldo Carmello Corrêa Moraes. São Paulo: Unesp, 1998.

DARNTON, Robert. Censores em ação – como os estados influenciam a literatura. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

DARNTON, Robert. “O que é a história do livro?” In: A questão dos livros. Tradução: Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

DARNTON, Robert. “O que é a história do livro?” In: O Beijo de lamourette. Mídia, Cultura e Revolução. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

HAWTHORNE, Susan. Bibliodiversidad. Un manifiesto para la Edición Independiente, trad. Sáez Juan Carlos y Alejandro Caviedes, Cuidad Autónoma de Buenos Aires. Argentina: La Marca Editora, 2018.

Projeto de Lei  n. 3070, 07.8.2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2460508&filename=PL%203070/2024. Acesso em 26 de agosto de 2024.

RIBEIRO, Ana. Livro, hoje: multiversidade e aspectos tecnológicos. In. Piqueira, G. Deaecto, M (org). Bibliodiversidade e Preço do Livro. São Paulo: Ateliê, 2021. 

REIMÃO, Sandra. Resistência: leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022. Sandra Reimão, João Elias Nery, Flamarion Maués. São Paulo: Edições EACH, 2023.

VALENTIM, Marta. O Perfil das Bibliotecas Contemporâneas. In:  Biblioteca do Século XXI: desafios e perspectivas. Organizadores: Anna Carolina Mendonça Lemos Ribeiro e Pedro Cavalcanti Gonçalves Ferreira. Brasília: IPEA, 2017. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/livros/170105_biblioteca_do_seculo_21_cap01.pdf. Acesso em 26 de agosto de 2024.

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Thaís Cristina Afonso de Jesus é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA-USP, e-mail: thaisafonso@usp.br