O assunto causou estranheza. Mas teve vida curta nos noticiários. No último dia 19/12, uma terça-feira, parlamentares bolsonaristas, articulados pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), conseguiram aprovar no Congresso (na Câmara, por 305 votos a 141, com duas abstenções, e no Senado, por 43 a 26) uma emenda ao projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que proíbe a destinação de verbas públicas relacionadas ao aborto, a cirurgias de resignação de gênero (mudança de sexo) em crianças e adolescentes e ao incentivo à invasão de terras urbanas e rurais. A LDO estabelece as regras a serem seguidas para a elaboração da Lei Orçamentária Anual, que por sua vez determina as despesas do governo federal. O deputado Eduardo agradeceu às bancadas ruralista e evangélica pela aprovação. O assunto desapareceu dos noticiários porque essas regras já foram disciplinadas por leis, portarias e outras normas legais – há matéria na internet. Portanto, o que foi votado não muda nada. É apenas um aceno aos evangélicos fundamentalistas e à extrema direita do agronegócio, grupos políticos importantes do bolsonarismo.
Lembro-me que durante o ano de 2023 noticiamos que os bolsonaristas não estavam conseguindo fazer uma oposição consistente ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Noticiamos que, enquanto o governo federal lidava com problemas nacionais importantes para a economia, como a reforma tributária, os bolsonaristas continuavam insistindo com pautas de costume, tipo o perigo da infiltração comunista nas instituições. Recentemente, fizeram um carnaval tentando derrubar a indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF) do então ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, acusando-o de ser comunista. Ser comunista no Brasil é um direito assegurado pela Constituição. Dino foi aprovado pelo Senado e deverá tomar posse em 8 de janeiro, data que marca o aniversário de um ano da tentativa de golpe de estado feita por bolsonaristas da extrema direita, que invadiram e quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Palácio da Alvorada, do Congresso e do STF, em Brasília. Estava perfilado entre os repórteres que acreditavam que a defesa das pautas de costume pela extrema direita se devia ao fato de não conseguirem articular propostas melhores e mais consistentes para fazer oposição ao governo Lula. Um grupo de leitores chamou a minha atenção para o seguinte. Desde que o mundo é mundo, a extrema direita sempre defendeu pautas com grande apelo popular. Nos anos 1920, logo após a Alemanha perder a Primeira Guerra Mundial, Adolf Hitler (1889-1945) conseguiu consolidar o nazismo atirando a culpa pela derrota nos judeus e em outras minorias. Na mesma época, na Itália, Benito Mussolini (1883-1945) ergueu o fascismo defendendo, entre outras pautas, o cumprimento dos horários pelos trens.
Onazismo e o fascismo arrastaram o mundo para a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), vencida pelos Aliados, que deixou um saldo de 70 milhões de mortos. Ainda assim, continuam sendo pauta de grupos de extrema direita espalhados pelo mundo. No Brasil, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), durante as três décadas em que foi vereador do Rio e deputado federal pelo Rio de Janeiro, sempre defendeu pautas de extrema direita, entre elas o golpe militar (1964 a 1985). Enquanto esteve na Câmara era considerado um deputado do baixo clero, sem importância política, que conseguia, vez ou outra, espaço na mídia falando asneiras que se tornavam manchete dos jornais. Em 2018, quando se candidatou a presidente da República, nem ele acreditava que teria chance. A sua candidatura foi favorecida por uma série de fatores, entre eles o antipetismo, movimento político contra o Partido dos Trabalhadores, e a Operação Lava Jato, do então juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba (PR) – há farto material disponível na internet. Eleito, Bolsonaro seguiu defendendo as mesmas pautas, sendo que algumas foram transformadas em política de governo, como o seu negacionismo em relação à ciência, desprezando o poder de contágio e a letalidade da Covid, o que resultou na morte de 700 mil brasileiros pela doença, como informou o relatório de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid). Além de outros absurdos que resultaram, entre outras coisas, na decretação, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), da sua inelegibilidade por oito anos. E uma fila enorme de processos e investigações policiais – há matérias na internet.
Portanto, perante o que falamos, é no mínimo arrogância nossa afirmar que a extrema direita está sem pauta para fazer oposição ao governo Lula. Ela está defendendo as pautas que sempre defendeu, assuntos com grande potencial popular relacionados a religião, sexo, comunismo e outros. Sempre que é favorecida pela conjuntura política consegue atrair para o seu lado a direita e ganha as eleições. Para as eleições municipais de 2024, a extrema direita enfrenta problemas. Um deles é tentativa de golpe de 8 de janeiro. As imagens dos bolsonaristas depredando tudo que encontraram pela frente afastou muita gente da direita que os apoiava. Consultei sobre o assunto quatro experientes estrategistas de campanha eleitoral. Eles traçaram três possíveis cenários: o primeiro é o aumento do número de votos brancos e nulos, o segundo, a vitória de candidatos apoiados pelo governo federal, e, por último, a chance de que um prefeito eleito em uma capital surja com potencial de crescer como candidato da direita nas eleições presidenciais de 2026, a chamada terceira via. Na teoria, tudo é possível. Na prática, a conversa é outra. Aprendemos na lida diária da reportagem que as coisas na política mudam todos os dias. Daí a importância de estarmos atentos a mudanças, por menores que sejam. Sabe-se lá o que irão desencadear no dia seguinte.
Reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal Contadas”
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.