O reencontro com emoção foi quase três semanas depois da chegada ao pisar na areia, ouvir o barulho das ondas e ver todas aquelas pessoas expostas ao sol indo se banhar na praia de Santos.
Quatro anos tinham se passado, muita coisa começava a se distanciar na memória. Mas me lembrei do menino, adolescente e jovem passando por ali, geralmente de bonde, talvez nunca num calção de banho da época para entrar na água.
Num relance reconheci ali meu país e meu povo. Cheguei a pronunciar com emoção, como num reencontro amoroso “minha terra”, talvez num sussurro, quase um soluço, que não chegou a ser ouvido por minha esposa e minha filha caçula, também redescobrindo a praia. Em outras tantas praias já haviam se banhado, mas aquele momento, aquela praia, ali no Gonzaga, diante do Atlântico Hotel, era especial – era o retorno.
Minha filha chegara há algumas horas de Berlim, nós viéramos há alguns dias de Berna e ficáramos no interior paulista.
Por que tanto tempo longe, quando praticamente todo ano, depois do longo exílio, atravessávamos o Atlântico? Primeiro, foi a crise sanitária do Covid, que assumira no Brasil proporções alarmantes. Depois foi o temor de um novo golpe militar, anunciado com certa insistência de maneira velada ou sem nuances pelo ex-presidente Bolsonaro.
Enfim, ali eu estava novamente, não a serviço como correspondente, mas como um anônimo turista saudoso, e teria três meses para matar tantas saudades e sentir, sem agir como um jornalista, o clima do novo governo, servindo-me apenas dos contatos nas ruas, nos ônibus, nos metrôs, nos restaurantes populares “por quilo”, nas lojas, nos supermercados, e um pouco de noticiários mas sem ver televisão. Então, como vi e senti meu país depois da longa ausência?
Salta aos olhos a ligação familiar das pessoas, a proximidade com que procuram viver, os contatos, talvez por imperativos econômicos, mas igualmente por índole própria. Apesar dos noticiários policiais assustarem, as pessoas demonstram nas ruas e no transporte público bastante preocupação umas com as outras, principalmente com as mulheres grávidas ou com bebês, com os idosos ou com os deficientes, exceto, exceto, se forem muito pobres ou pedintes.
Aqui é preciso destacar ainda continuarem a existir classes sociais distintas dentro da população. A dos servidos e a dos que servem, decorrente de uma nítida divisão social. Isso fica bem evidente no espaço das praias, ainda aberto a todos, sem uma generalidade de áreas particulares com acesso delimitado.
Embora os casos de racismo pareçam ser mais próprios da classe média para cima e tenham aparecido nos pronunciamentos do governo anterior, o Brasil não é um país de apartheid. Muito ao contrário, prossegue a salutar mistura racial ao que parece em todos os níveis sociais e cada vez mais evidente.
Decorrente da má alimentação, por pobreza ou da preferência por alimentos rápidos e industrializados, massas e poucas frutas, é evidente, nos transportes ou nas áreas públicas, uma generalização da obesidade, fenômeno que deveria preocupar as autoridades sanitárias governamentais em favor de melhor saúde para o povo.
Estas, vejam bem, são simples observações muito genéricas de quem não esteve nas favelas e apenas em poucas cidades paulistas.
O preocupante ocorre ao ver nosso governo sem força na Câmara e no Senado, incapaz de poder fazer as reformas prometidas e planejadas. Quase impedido de governar. Se isso continuar, o próprio futuro da unidade do Brasil poderá ser comprometido.
As forças da extrema-direita derrotadas nas eleições não foram desativadas. Embora a maioria dos analistas políticos de direita ou de esquerda não acentuem ou não percebam, continua o desvirtuamento das crenças das seitas populares evangélicas por líderes de extrema direita. Esse foco estanque, alimentado semanalmente em muitas igrejas por visões falaciosas da realidade, semelhantes às utilizadas nos EUA, continua vivo, embora latente. Avaliado em um terço do eleitorado, consumidor de fake news, esse foco espera só o momento de ressurgir.
Ao contrário da proposta do ex-deputado federal mineiro Tiago Mitraud, do Partido Novo, que desejava acabar com a necessidade de diploma para 106 profissões, haveria necessidade de se criar a obrigatoriedade de um curso universitário de teologia para pastores evangélicos, como ocorre com padres e reverendos das igrejas reformadas ou protestantes tradicionais. Atualmente, como já denunciamos em outros comentários, qualquer vendedor ambulante de barbatanas para colarinhos pode criar sua igreja e se tornar pastor. Não faltam interessados em ajudar.
Certos sintomas preocupantes têm surgido como capazes de colocar em questão a unidade territorial do país e, com isso, encerro minhas reflexões de retorno de viagem. Seriam os focos de extrema direita no Sul do Brasil com alguns líderes escravagistas; o peso dos agroruralistas em favor do desmatamento e contra a política ambiental de proteção das populações nativas da Amazônia; e, no sentido inverso, a posição do Nordeste em favor do presidente Lula, no caso de uma tentativa de desestabilização do país ou golpe, desta vez utilizando os meios políticos legais.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.