Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Intolerância religiosa e disputa agrária, motivos da execução de Mãe Bernadete

(Foto: Redes Sociais)

Nos conflitos agrários há uma tradição que vem de longe. Os assassinatos cometidos por pistoleiros de aluguel trazem uma mensagem do mandante para a família do morto, o governo e a quem mais possa interessar. Não foi diferente no caso da execução, na quinta-feira (17/08), por dois pistoleiros usando capacete de motociclistas, de Maria Bernadete Pacífico, 72 anos, a Mãe Bernadete, ialorixá do candomblé e líder do quilombo Pitanga dos Palmares, uma área de 854 hectares onde vivem 254 pessoas, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (BA). Essa área vem sendo disputada há mais de duas décadas por quilombolas, madeireiros ilegais e grileiros. Mãe Bernadete foi morta com 24 tiros, sendo 12 disparados no seu rosto. Ela é a 11ª vítima entre os quilombolas executada nos últimos 10 anos. Em 2017, um dos seus filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, o Binho do Quilombo, foi morto por pistoleiros com 14 disparos. Qual é a mensagem que a execução de Mãe Bernadete traz? É sobre isso que vamos conversar.

Porque estava marcada para morrer, Mãe Bernadete vivia sob proteção das polícias civil e militar da Bahia. O sistema de proteção não conseguiu impedir a ação dos matadores. Nessa altura dos acontecimentos, toda a comunidade sabe o nome do mandante da execução. Essa é outra marca do crime de mando. Aquele que manda matar faz questão que todos saibam quem foi, para desencorajar futuros adversários. A execução da ialorixá está sendo investigada pelas polícias civil e militar da Bahia e pela Polícia Federal (PF). Alerto o leitor e os jovens repórteres que lidam com a cobertura do dia a dia nas redações que saber o nome do mandante do crime é uma coisa. Provar que foi ele é outra coisa. Essa é a dificuldade dos policiais que trabalham com esse tipo de caso. Como sei disso? Especializei-me na cobertura de conflitos agrários e, a partir de 1979, cobri as principais disputas por terra que ocorreram no Brasil entre agricultores, grileiros e fazendeiros. Além de índios, garimpeiros e madeireiros ilegais. Nas últimas décadas, fiz várias reportagens sobre os pistoleiros de aluguel dos estados do Nordeste, uma das regiões brasileiras onde sobreviveu ao tempo a profissão de matador de aluguel. No caso do assassinato de Mãe Bernadete há uma história que ficou de lado na cobertura da imprensa que é a seguinte. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a política oficial do governo federal tratou as lideranças populares como se fossem bandidos e deu proteção a grileiros de terras, garimpeiros e madeireiros ilegais. Cito um caso: o escândalo dos índios yanomami, transformados em pele e osso pela fome causada pelos garimpos clandestinos em suas terras, na fronteira de Roraima com a Venezuela. O caso virou notícia no mundo inteiro. No governo Bolsonaro, os líderes populares trabalharam na clandestinidade para evitar retaliações. A eleição de Lula mudou tudo. Foram criados ministérios especializados para tratar do problema dos conflitos agrários, como o dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e Cidadania e outros. É um fato importante: nos dias atuais, quando uma liderança do calibre de Mãe Bernadete, que integrava a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), liga para alguém do governo e faz uma denúncia, tem gente que a ouve e age. Lembro que a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber se avistou e conversou longamente com Bernadete a outras lideranças do quilombo Pitanga dos Palmares.

No entendimento do mandante do crime a execução colocaria um fim nessa situação. Claro que não. Aqui há outro fato que devemos levar em conta. Não existe um comando central nas disputas agrárias. Cada caso é um caso. E as decisões são tomadas para solucionar o problema do local. Lembro uma história que virou notícia internacional. Em 1988, o grileiro de terras Darly Alves mandou o seu filho, Darci, tocaiar e executar Chico Mendes, ambientalista, sindicalista e ativista contra a derrubada da Floresta Amazônica, em Xapuri, pequena cidade no interior do Acre – há matérias, documentários e pesquisas disponíveis na internet. O problema dos quilombos no Brasil é extenso e muito sério. Existem 5.972 quilombos, sendo que 404 são reconhecidos. Os restantes, entre eles o Pitanga dos Palmares, estão em diferentes fases do processo legal de reconhecimento. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, 55 anos, a quem a PF é ligada, conhece essa realidade. Ele foi governador do Maranhão (2015 a 2022) e é ex-magistrado. No seu estado, existem 1,5 mil comunidades quilombolas. O ministro vem agindo com muito vigor e organização no combate aos crimes contra os povos originários e o desmatamento na Floresta Amazônica. Portanto, as chances de esclarecer o assassinato de Mãe Bernadete são reais. Há uma novidade nesse caso sobre a qual ainda não se sabe o tamanho da sua contribuição para o que aconteceu. Trata-se da questão da intolerância religiosa. O governo do ex-presidente Bolsonaro e os pastores neopentecostais usaram o púlpito das igrejas evangélicas para espalhar mensagens de ódio contra as religiões afro-brasileiras. Por conta disso, em vários cantos do Brasil terreiras de umbanda foram invadidas e destruídas. Fiz dois posts sobre o assunto. O mais recente foi em 11 de julho, Governo Lula tem um plano para lidar com o crescimento da intolerância religiosa? Em 16 de setembro de 2022 publiquei o post Esperam o novo presidente famintos, intolerância religiosa e civis armados.

Ocaso da Bahia tem a explosiva mistura dos conflitos agrários com intolerância religiosa. A investigação policial terá que levar isso em conta. Tem a ver com essa mistura a mensagem enviada para o governo Lula pelo mandante da execução de Mãe Bernadete. Para arrematar a nossa conversa. A imprensa nacional tem dado o devido destaque para o caso. O que fiz na nossa conversa foi compartilhar alguns ensinamentos que aprendi fazendo cobertura dos rolos de terra nas últimas décadas. E que julgo necessários serem mencionados nas matérias para melhor informar o leitor. Como costumo falar. Não defendo que se faça uma tese em cada notícia. Mas que sejam colocadas frases mostrando as particularidades do assunto sobre o qual estamos noticiando. Esse procedimento torna as nossas matérias mais exatas. Insisto que essa história da mistura de conflito agrário com intolerância religiosa precisa uma melhor atenção da imprensa.

Reportagem originalmente publicada em “Histórias Mal Contadas”

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Carlos Wagner é
 repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.