Numa de suas declarações, diante da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, ao ser sabatinado como candidato, indicado por Bolsonaro, para preencher uma vaga de ministro no STF, André Mendonça, que era pastor da Igreja Presbiteriana Esperança de Brasília, e que, como Advogado Geral da União, fora um ativo negacionista durante a crise sanitária do Covid, assumiu o compromisso de respeitar o Estado laico diante dos senadores.
Até que ponto tal compromisso pode ser respeitado, quando se sabe ter sido André Mendonça o “terrivelmente evangélico”, prometido por Bolsonaro para agradecer e agradar aos evangélicos pelo decisivo apoio nas eleições de 2018?
Simone Tebet estava lá e, embora tivesse criticado o negacionismo bolsonarista, deu seu voto em favor de Mendonça como uma espécie de voto de confiança em suas declarações de que daria prioridade à Constituição e não à Bíblia em suas decisões, caso fosse integrado como ministro do Supremo.
Teria sido Simone Tebet ingênua ou oportunista e seremos nós muito desconfiados ao manifestarmos nossa dúvida?
Na verdade, em diversas situações e declarações, o livro que norteia a vida do ministro Mendonça não permite aos seus seguidores a opção entre o laico ou profano e os ditâmes da chamada “palavra de Deus”. Como enfatiza a frase bolsonarista de origem nazista, em qualquer circunstância Deus e seus preceitos ditos sagrados são prioritários, ou seja, “Deus acima de tudo”.
Por que toda essa longa introdução? Porque por uma espécie de sorteio, comum no STF para escolha dos relatores, foi escolhido como relator das ações apresentadas contra o jovem, um tanto moleque, deputado federal mais votado do Parlamento, Nikolas Ferreira, por ter pronunciado com teatralidade e falta de decoro um inoportuno discurso transfóbico justamente na data da comemoração do Dia Internacional da Mulher, na Câmara Federal.
Nikolas Ferreira é um dos pretendentes a assumir o lugar de líder da extrema-direita, deixado vago com a ausência do ex-presidente Bolsonaro, considerado por grande parte da imprensa como um foragido nos EUA, atualmente envolvido num escândalo de jóias, como já fora suspeito de envolvimento no escândalo das rachadinhas.
Alguém acredita numa ação do relator Mendonça contra Ferreira por ter infringido a Lei 7.716/1989 contra preconceitos de raça ou de cor, que, por decisão recente do STF passou a incluir também ações ou declarações homofóbicas e transfóbicas?
Além desses crimes, que poderiam custar uma perda de mandato, o deputado bolsonarista ofendeu as mulheres em geral, feministas ou não, dizendo para se casarem e terem filhos, dentro do mais reacionário, superado e conservador dos esquemas dos conservadores e fundamentalistas evangélicos, segundo os quais o lugar da mulher é na cozinha e na cama.
Nikolas é amigo dos filhos de Bolsonaro e suas últimas ações incluem a tentativa negacionista de derrubar a lei que obrigava ao uso de máscaras nos espaços públicos em Belo Horizonte.
O mais provável será um arquivamento das denúncias, a pretexto do uso da liberdade de expressão pelo deputado. Mendonça já havia adotado uma decisão parecida com relação aos manifestantes em frente dos quartéis, dois meses antes do ataque do 8 de janeiro, por esses mesmos manifestantes em Brasília.
Há dois anos, num texto publicado no Observatório da Imprensa, quando Mendonça fazia campanha pela vaga de ministro no STF, fiz uma síntese a respeito, por antecipação: “A função de um ministro do STF implica em decisões envolvendo questões definidas pela religião ou pelos dogmas da fé. É possível se imaginar que ele possa decidir deixando de lado suas convicções evangélicas que envolvam, por exemplo, aborto, homossexualidade e interesse das igrejas? Não, porque fervente devoto, não iria trair os preceitos bíblicos divinos em favor de um Estado temporal. (Um ministro terrivelmente bolsonarista, 13.7.2021).
Ou será que o ministro André Mendonça irá nos surpreender? Não creio!
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.