Dois episódios que parecem ter nascido um para o outro. O primeiro é a necessidade de preservar a competitividade nas urnas do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), que depende dele conseguir colocar na mente dos seus eleitores eventuais – que defino como sem compromissos ideológicos e que são a maioria – uma dúvida sobre a legitimidade da avalanche de imagens de bolsonaristas radicalizados envolvidos nos atos terroristas do dia 8 de janeiro, em Brasília, quando quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF). Eles defendem a versão de que o quebra-quebra foi praticado por esquerdistas infiltrados. O segundo episódio é a divulgação, pela CNN do Brasil, de uma reportagem que causou a primeira demissão de um ministro no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A matéria mostrou caminhando no meio dos bolsonaristas que destruíam o Planalto o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general da reserva Gonçalves Dias, o G. Dias, 73 anos, amigo há mais de uma década de Lula. G. Dias pediu demissão. Por conta desse episódio, o governo apoiou a realização de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os acontecimentos de 8 de janeiro, que reunirá representantes do Senado e da Câmara dos Deputados. Ela ainda não foi instalada. Mas, como houve concordância entre a oposição e o governo, a previsão é que isso aconteça nas próximas semanas.
Sobre a demissão do ministro há mais de um quilômetro de matérias publicadas na internet. O que realmente aconteceu se tornará público quando os agentes da Polícia Federal (PF) concluírem as investigações sobre o episódio. Uma contribuição importante para o esclarecimento dos fatos foi a determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de quebrar de sigilo das imagens das câmeras de segurança do Planalto. O GSI havia decretado sigilo das imagens, alegando a segurança do presidente. Seja qual for o resultado dessa investigação, o fato é que os bolsonaristas já têm a sua versão da história pronta: a destruição foi realizada por esquerdistas infiltrados e pelo governo, que a deixou acontecer, e vão apresentar como prova disso a presença do G. Dias no Planalto. Vão usar as sessões da CPMI para popularizar essa versão. Vão editar vídeos e textos com informações do seu interesse e as jogarão nas redes sociais. Essa é a aposta. Agora é o seguinte. E o que vou escrever não é opinião. Mas fatos que temos publicado. O maior cliente das redes sociais alimentadas pelas ideias da extrema direita são os bolsonaristas raiz, que votarão sempre no ex-presidente. Mas não têm votos suficientes para elegê-lo para um cargo executivo, como o do presidente do país. Nesse caso, a eleição poderá ser definida pelos eleitores avulsos de Bolsonaro, que ocupam um amplo espaço no espectro político, começando na direita democrática e indo até aqueles que decidem em quem votar dentro da cabine.
Os eleitores que chamei de avulsos consomem, em maior volume, as informações publicadas pela imprensa tradicional, nos sites dos jornais e noticiários das rádios e TVs. Para a CPMI ganhar espaço na mídia terá que produzir fatos novos e polêmicos que despertem o interesse do grande público e, com isso, o assunto cresça dentro das redações, indo parar nas manchetes. Cito o caso da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid), que foi acompanhada pela população como se fosse uma telenovela de sucesso, com altos índices de audiência. O principal motivo foi porque o assunto era a pandemia, de interesse ao redor do mundo. A CPMI do 8 de janeiro vai tratar de assuntos conhecidos pelo público, investigados pela PF, com vários processos em andamento no STF e mais de 500 pessoas presas preventivamente por terem praticado atos de terrorismo. Claro, todos nós jornalistas sabemos que se Bolsonaro for convocado para depor ele pode incendiar a sessão e manter o assunto nas manchetes por vários dias. A ida ou não do ex-presidente vai depender única e exclusivamente da sua decisão pessoal. Aprendemos durante o seu mandato que Bolsonaro toma decisões por conta da sua própria cabeça. Portanto, o que falarmos sobre o assunto agora é especulação. Também é bom lembramos que a CPMI disputará espaços na imprensa com importantes temas econômicos que estarão rolando no Senado e na Câmara, como as articulações para a nova âncora fiscal e a reforma tributária. Esses dois assuntos interessam a toda a população, em especial aos 30 milhões que estão passando fome e aos 9 milhões de desempregados.
Arrematando a nossa conversa. Mesmo que a CPMI não saia, ou que seja apenas um replay de fatos já conhecidos dos atos terroristas de 8 de janeiro e não consiga mobilizar a opinião pública, ainda assim o ex-presidente já ganhou dividendos, porque conseguiu manter o assunto nas manchetes dos jornais graça ao episódio do ex-ministro G. Dias. Depois dessa história da CPMI, os bolsonaristas vão bolar outro acontecimento para continuarem semeando dúvidas sobre os acontecimentos de 8 de janeiro. Não foi inventada hoje a técnica de criar dúvidas na mente das pessoas sobre fatos que realmente aconteceram. Ela vem de longe e ainda é amplamente usada pelos neonazistas para negar o extermínio de milhões de pessoas nos campos de concentração da Alemanha governada por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Essa técnica de tentar colocar dúvidas sobre a veracidade de um acontecimento também pode se transformar em um tiro pela culatra para a popularidade dos bolsonaristas. Uma boa oportunidade de ver o resultado disso tudo serão as eleições municipais de 2024. Dias interessantes vêm por aí.
Texto publicado originalmente em Histórias Mal Contadas
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.