Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O golpe germinou com o apoio dos evangélicos

(Valter Campanato/Agência Brasil)

Onde está o ovo da serpente responsável por essas violências em Brasília, praticadas com tanto ódio à democracia e feitas com o uso indevido da nossa bandeira e da camiseta da seleção canarinho? Onde foi fecundada a semente do mal, onde ela germinou discretamente e cresceu, até chegar ao quebra-quebra da versão brasileira do Capitólio norte americano?


Houve quase uma coincidência de datas entre os dois ataques golpistas: os extremistas trumpistas atacaram, há dois anos, o Capitólio em Washington, no dia 6 de janeiro, enquanto o ataque dos extremistas bolsonaristas ocorreu no dia 8 de janeiro, felizmente sem mortes, mas com alguns feridos.

Toda imprensa internacional comentava, na TV e nos onlines, no domingo, a tentativa de putsch ou golpe de bolsonaristas, com a invasão e atos de depredação em Brasília dos prédios da Presidência, do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal e da Esplanada dos ministérios, felizmente vazios com o recesso parlamentar e com a viagem de Lula a Araraquara.

Na segunda-feira, 9 de janeiro, o ataque dos golpistas ocupava as manchetes e as principais páginas dos jornais impressos em todo mundo, com declarações de apoio de políticos e governantes ao presidente democraticamente eleito Lula, cogitando a ONU em Genebra, por proposta latinoamericana, aprovar um postulado mundial em favor do respeito à democracia.

O Brasil não precisava dessa propaganda negativa deflagrada por um bando de bolsonaristas vândalos, movidos pelo ódio e pelas teorias golpistas. Mas esse ataque vinha sendo minuciosamente preparado, embora seu incitador não esteja mais no Brasil e tenha fugido há alguns dias apenas para Orlando, na Flórida, nos EUA. Isso também está contando a imprensa internacional.

A ideia de golpe vinha sendo lançada e alimentada há quatro anos – e isso poucas pessoas alertaram – por pastores nos púlpitos, nas congregações ou tendas evangélicas, agindo junto a pessoas simples crédulas e sem cultura, chamadas geralmente de massa de manobra. Uma grande maioria dos dirigentes protestantes, agora também conhecidos como evangélicos, aceitaram aderir à extrema direita fascista bolsonarista para ter acesso ao Poder político. É o exemplo da conhecida ex-ministra Damares Alves e do ex-ministro Milton Ribeiro.

A evangelização deixou de ser voltada exclusivamente para Cristo e passou também a ser utilizada para endeusar o candidato e depois presidente Messias Bolsonaro, em troca de ministérios, cargos no governo e possibilidade de agir nos setores formadores da opinião como escolas, controle do ensino, intervindo também na deformação da cultura brasileira. Era o Toma Lá, Dá Cá.

As igrejas com cultos duas vezes por semana, escolas dominicais, reuniões semanais de jovens e idosos são hoje o setor mais politizado do país, um verdadeiro viveiro ou berçário de ideias, onde se cultivam as vertentes fundamentalistas de extrema direita vindas dos Estados Unidos, porém de maneira discreta, mesmo imperceptível para os profanos. A grande imprensa leiga, que não frequenta os evangélicos, desconhece esses lugares onde se abastecem os cérebros do gado bolsonarista.

Foram elas, as igrejas, com seu proselitismo a base da vitória de Bolsonaro de 2018. A senadora Damares Alves, exploradora desse filão, eleita com mais de novecentos mil votos é uma prova. “Santa” Michelle uma versão evangélica da católica Maria, poderá ser uma ameaça, caso o marido se torne inelegível.

Qual o segredo do rápido crescimento político do evangelismo? Não há necessidade de uma plataforma de promessas econômicas, salariais, profissionais, de saúde, nada disso. Cria-se um clima de comunidade na qual os pastores prometem o céu e as pessoas simples aceitam, serão felizes depois da morte. O investimento é quase zero, os chamados pastores não fazem curso de teologia, muitos mal frequentaram o curso primário, basta se distribuir algumas Bíblias, ter alguns bancos cadeiras e principalmente ter lábia de vendedor, sem esquecer de ameaçar com o inferno quem não se converter.

Mas, além das igrejas, há as redes sociais misturando o reino dos céus com o perigo do comunismo, a receita infalível! Ninguém viu o reino dos céus, ninguém sabe o que é o comunismo, exceto ser vermelho, mas a pregação dá resultado. O comunismo aqui na vida terrena e o inferno no além assustam e dão calafrios, que só passam com muita oração! Os evangélicos eram 5% nos anos 1960, e hoje já são mais de 35%, dos quais cerca de 30% rezam ou oram segundo o rito bolsonarista.

Não podemos esquecer o efeito das pregações e os gritos golpistas de Silas Malafaia, os apelos golpistas de Cláudio Duarte e de outros pastores usando sem vergonha a Bíblia para justificar suas falas antidemocráticas em favor de uma ditadura teocrática bolsonarista. Em Brasília, havia, sem dúvida, seguidores de Malafaia e Duarte.

E quando não são os pastores são os chamados jornalistas formadores de opinião da Jovem Pan ou da Record e deve haver outras rádios e jornais e redes sociais na mesma linha. Há mesmo gente falando dos EUA, onde se sentem seguros para pregar o golpe. Ainda agora, descrevendo as invasões em Brasília, Jovem Pan e Record chamavam os vândalos criminosos de manifestantes e não de golpistas.

Para eles, tudo é permitido em nome da liberdade, inclusive pregar um golpe de Estado, querer fechar o STF e depredar os prédios dos três poderes em Brasília. Pouco antes dos ataques, circulavam vídeos pela Internet falando da criação de uma Ditadura do PT em Brasília, como o vídeo de Carla Ceccato, contra as intenções do novo governo de acabar com os acampamentos e fechamento de redes sociais golpistas. Eles acreditam, como acreditava o ministro José Múcio, ser uma simples questão de liberdade de expressão pedir golpe e pregar a destruição do STF com o ministro Moraes dentro.

Lembram-se do quebra-quebra em Brasília, no 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula como presidente, quando incendiaram carros e ônibus? Com a maior cara de pau e o maior cinismo, falavam terem sido petistas infiltrados os autores das depredações e, agora, devem estar falando a mesma coisa… Não é, Rodrigo Constantino e Roberto Motta? Mas há outros, que se dizem jornalistas…

E falar em Distrito Federal ou Brasília, no 12 de dezembro, a polícia do governador Ibaneis Rocha não prendeu ninguém! Verdade, não houve prisões, e ficou por isso mesmo. Essa cegueira era meio difícil de engolir, mas o presidente ainda era o Bolsonaro e ficou por isso mesmo.

Ainda agora, no começo da tarde do domingo 8 de janeiro, quando centenas de bolsonaristas invadiram a Esplanada e iam chegando ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao STF, não havia reforço policial e provavelmente também não haveria prisões, se não houvesse a intervenção federal no Distrito Federal.

E diante dos estragos feitos, inclusive em obras de arte depois dos ataques dos golpistas, o que fez Rocha? Escreveu uma carta de desculpas ao presidente Lula. Ora, deveria ter apresentado sua demissão, embora seja agora provável que ela ocorra depois de processo por imprevidência, conluio ou cumplicidade com os golpistas. O ministro Alexandre de Moraes do STF quer saber por que Ibaneis não agiu contra os golpistas e aplicou-lhe uma suspensão do cargo por três meses.

Mas não foram só falsos jornalistas, mentores de redes sociais, pastores e governadores que vinham preparando o golpe na água morna, nestes quatro anos, havia parlamentares como Carla Zambelli, PMs de Brasília tomando água de coco enquanto se quebravam as portas do Palácio do Congresso ou do STF. Outros conduzindo mesmo os golpistas aos seus alvos.

Tudo isso poderia ter sido evitado se o procurador geral da República, Augusto Aras, ou sua substituta, Lindora Araújo, tivessem aplicado a lei. Por que não aplicaram? Devem ter razões bem fortes… logo iremos saber. Renan Calheiros e outros querem também saber!

E o responsável por tudo isso, já foi para bem longe, de onde agora será difícil de voltar. Jair Bolsonaro o presidente instigador do golpe, que negociou o apoio com os pastores evangélicos, pensava ir pedir a nacionalidade italiana, que lhe daria imunidade na Itália, mas a chefe do governo italiano Giorgia Meloni, embora sendo também de extrema direita, já criticou os ataques em Brasília, juntando-se na condenação aos golpistas feita também por Emmanuel Macron e Joe Biden e outros. Vai ser difícil para Bolsonaro se tornar italiano para escapar de uma condenação no Brasil e será também difícil renovar o visto de sua presença em Orlando, nos EUA. Joe Biden cuidará disso…

VEJA TAMBÉM:

Direto da Redação: O golpe germinou e cresceu com apoio evangélico

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.