Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os primeiros cem dias de Lula: Tal como o boneco “João Teimoso” em um Brasil escorregadio

(Foto: Agences)

Já se passaram mais de cem dias desde que Luiz Inácio Lula da Silva voltou à presidência do Brasil pela terceira vez. Desde o início do ano, o presidente teve de lidar com uma série de dificuldades sem ceder ao pânico. O que podemos concluir deste início de mandato em nada convencional?
À primeira vista, comparar Lula ao boneco “João Teimoso” pode parecer para muitos um tanto incongruente. Essa reação, no entanto, é inadequada. Como o dicionário define o boneco “João Teimoso”? Como “um pequeno boneco cuja base arredondada é mais pesada, de modo que, mesmo que se bata ou se derrube esse brinquedo, ele sempre volta a ficar na vertical, de pé”. Desde 1 de janeiro de 2023, Lula não faz outra coisa a não ser apagar incêndios, a não ser desviar dos golpes e manter-se de pé em um terreno um tanto escorregadio. Sendo esta a situação, seria um enorme risco adotar outra postura e ficar estático? As tempestades sucedem-se, cada uma com um forte efeito desestabilizador. A extrema-direita bolsonarista não desistiu. O regresso do ex-presidente, Jair Bolsonaro, deu-lhe algum fôlego e ele não desapeou de seus desejos golpistas. Como em jogo de fases, Lula deve retomar o trabalho cem vezes mais, movendo algumas casas e tendo vez ou outra de voltar para o “início”.

No dia 8 de janeiro de 2023, o bolsonarismo tentou um espetacular golpe de força ao ocupar os três poderes da capital brasileira, entrando sem grandes problemas no Parlamento e na Presidência da República. A atitude benevolente da força pública revelou a resistência obstinada à mudança política das chamadas “forças da ordem”, de policiais a militares. Igualmente preocupante para o Presidente em exercício é o fato de a polícia parecer incapaz de reduzir a criminalidade. A multiplicação dos homicídios nas escolas de todo o país conferiu-lhe uma forte dimensão emocional. Essa dimensão foi instrumentalizada pela “grande imprensa”, que a utilizou como manchete. O Estado de S.Paulo, por exemplo, noticiou em sua primeira página, no dia 6 de abril, com o seguinte comentário, em letras grandes e em negrito: “A barbárie entra na escola”.

De janeiro a março de 2023, nunca houve tanto desmatamento, e não só na Amazônia. Os números que acabam de ser publicados são os piores registrados nos últimos anos. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 1.375 Km² da Amazônia foram queimados de janeiro a março. Também aqui, os jornais hostis a Lula deram ampla cobertura a esta tragédia ecológica. O novo ocupante do Planalto é lembrado ao longo dos editoriais de que venceu as eleições presidenciais por uma diferença mínima, 50,9%, e que não tem, nem de longe, uma base parlamentar sólida.

Além disso, muitos membros da direita “civilizada” e dos meios empresariais não deixam Lula se esquecer de que foi eleito com o voto desses representantes. A direita “civilizada” votou nele contra Bolsonaro, sem compartilhar com o eleito nenhuma das suas ambições fiscais e sociais, especialmente se estas implicarem um aumento de impostos. “Lula 3”, escreveu em um editorialista da revista Istoé, “é um mal necessário”, e por isso “dentre os males, o menor” (5 de abril de 2023, p. 11).

Apesar da pressão desses eleitores de última hora, a expectativa social é exigente e urgente. A fome reapareceu em um país que é o maior exportador agrícola do mundo. Os levantamentos feitos são conclusivos: 15,5% da população está em situação de insegurança alimentar grave e 15,2% desnutrida; 29,4% foi registrada em situação de extrema pobreza em 2021, ante 8,8% em 2013 (Carta Capital, 29 de março de 2023, p. 15). Nas ruas de São Paulo, a capital econômica, ou Salvador, na Bahia, os vendedores ambulantes de ontem seguram agora cartazes diante dos motoristas com uma mensagem curta e escrita às pressas: “Tenho fome”.

Em suma, desde 1º de janeiro, Lula fez muitos anúncios que ficaram na gaveta por falta de aprovação parlamentar. O presidente do Congresso, Arthur Lira, impediu até agora qualquer procedimento de urgência que permitisse a aprovação das medidas provisórias que Lula quer acionar. Além disso, os embates de Lira com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tão direitista quanto ele, prolongam ainda mais o processo.

A política externa, no entanto, longe da cozinha parlamentar interna, também está atolada por várias razões. A primeira é o desmantelamento da equipe vencedora de 2003/2010. Marco Aurélio Garcia, que era o assessor internacional de Lula, morreu em 2018. Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores, ainda está por aqui. Ele é o conselheiro diplomático do presidente. O atual ministro das Relações Exteriores já ocupou este cargo durante o governo de Dilma Rousseff, entre 2014 e 2016. Mas ele não tem uma cultura partidária. É um bom diplomata, o que já é muito, mas será suficiente? O contexto internacional é muito mais complicado do que há vinte anos. O clima de rejeição mútua entre as grandes potências, a “OTANização” da Europa, reduziu a flexibilidade das negociações.

O Brasil presidirá em breve o grupo BRICS. Pretende aproveitar esta oportunidade para desempenhar um papel de mediador, juntamente com a China que Lula acaba de visitar, para encontrar uma janela de oportunidade diplomática no conflito russo-ucraniano. Esta é uma opção difícil depois de Vladimir Putin ter sido acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). O Brasil é signatário do Tratado de Roma que institui o TPI. Neste contexto jurídico vinculativo, como poderia Vladimir Putin participar de uma reunião dos BRICS no Brasil? Celso Amorim acaba de efetuar uma visita de trabalho a Moscou. Não houve um comunicado oficial, mas sabemos que, excepcionalmente, depois de se encontrar com Dmitri Lavrov, o seu homólogo russo, foi recebido pelo Presidente Putin. Não há dúvida de que este contexto foi organizado pelos dois líderes.

Então, o que fazer? E o que é que o chefe de Estado brasileiro pode fazer? Falar, o que ele faz perfeitamente. Anunciou o regresso de um “Bolsa Família” reforçado, bem como do programa de habitação social “Minha Casa, Minha Vida”. Também sinalizou a suspensão do plano bolsonarista de privatização de empresas públicas. Encarregou o ministro da Fazenda de programar uma reforma tributária e um plano econômico para dar fôlego às finanças públicas sufocadas pela lei constitucional aprovada durante a era Michel Temer em 2016, congelando os gastos públicos até 2036. Em consonância com o seu programa, anunciou também um incentivo ao consumo, que implicaria a redução da taxa de juro bancária, que está travando o crescimento. Com 13,75%, a atual taxa do país é uma das mais elevadas do mundo.

No entanto, todo esse planejamento encontra-se no fim de uma rota, à espera de vários sinais verdes: sinais verdes parlamentares, que, como vimos, ficaram cada vez mais difíceis de negociar. Também tem de lidar, nesta rota, com o sinal vermelho da taxa de juros, hoje nas mãos do diretor do Banco Central do Brasil, indicado por Bolsonaro e que graças a ele e à aprovação por disposição legislativa que conferiu uma independência absoluta, segundo o modelo do Banco Central Europeu, a esse personagem em suas ações, como a de manter alta a taxa de juros, e cujo posto é irrevogável até 31 de dezembro de 2024. Só a votação de uma nova lei poderia permitir sua demissão, o que não ocorrerá, uma vez que o Congresso e o Senado, encorajados pela comunidade financeira, não estão priorizando essa questão.
Para além dos anúncios, Lula começou, no entanto, a colocar ordem, modestamente, dadas as circunstâncias mencionadas, na casa brasileira. Realizou uma grande renovação da função pública superior. O golpe malsucedido de 8 de janeiro permitiu-lhe fazer uma faxina na hierarquia militar e começar a recuperar terreno institucional sobre as forças armadas que, graças a Bolsonaro, tinham se tornado um quarto poder de fato. Lançou também uma operação sanitária e policial na Amazônia para salvar o povo Yanomami ameaçado pelos garimpeiros.

As vias de escape são limitadas. Lula, que tem, de fato, um verdadeiro talento para a negociação, está em diálogo com uma série de partidos de direita, sem sucesso perceptível até o momento. Segundo a Folha de 8 de abril de 2023, esta maioria composta seria uma maioria relativa, com 222 deputados num total de 513. É o chamado presidencialismo de coalizão no Brasil. Além disso, ele se choca com o presidente do Congresso, que faz o mesmo cálculo antes de ir para a mesa de negociação, a partir de uma posição de força, com o Executivo. A recuperação pode ocorrer sem os agroexportadores, grandes poluidores e apoiadores da presidência de Bolsonaro? Os discursos feitos na Cop27 e na Cop30 em Belém, proferidos por Lula, perderiam credibilidade se não houver um enfrentamento desses grandes poluidores. Este debate foi aberto justamente de quem não se esperava: o ministro da Agricultura defendeu na tribuna a necessidade econômica de o Brasil explorar um depósito de potássio na Amazônia. O apelo aos investidores estrangeiros, que seria outra possibilidade, é incerto. A China, o maior parceiro do Brasil, não é uma instituição de caridade. A Europa, e a França em particular, bloqueia qualquer acordo com o Mercosul, que não respeita o meio-ambiente.

As “potências” latino-americanas não estão em seu melhor momento. A Argentina pode cair nas mãos da direita na próxima eleição. O México está com olhar voltado para os EUA. O Brasil aderiu à CELAC e à UNASUR, e assinou um acordo conjunto com dez outros países contra a inflação, mas não está indo muito além disso.

A estabilidade do governo foi afetada, assim como o autocontrole de Lula. Vários ministros fazem um jogo individual, uns para a esquerda, outros para outro lado. A ponto de Lula deixar transparecer em diversas ocasiões seu aborrecimento. Segundo as sondagens, a opinião pública está em estado de expectativa: 29% dos brasileiros consideram que a gestão dos primeiros 100 dias de Lula foi desastrosa, 38% são da opinião contrária e estão, portanto, satisfeitos, 30% não têm nada de especial a dizer e 3% não sabem o que dizer (sondagem Datafolha, 29/30 de março de 2023).

Notas 

Texto publicado originalmente em francês, em 19 de abril  de 2023, na seção “Actualités, Brésil” do site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “Les cent premiers jours de Lula, Culbuto en Brésil glissant”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/111725. Tradução: Adriana Cícera Amaral Fancio e Luzmara Curcino. 

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.