Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Plano de Lula para acabar com o garimpo na terra dos yanomami precisa ser melhor explicado

Sobrevivência do garimpo ilegal depende dos voos de abastecimento (Foto: Reprodução)

A volta dos garimpeiros para a reserva dos índios yanomami é o primeiro arranhão na imagem internacional do Brasil que a tão duras penas vem sendo reconstruída pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A história é a seguinte. O governo anterior (2019-2022), do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), desmontou a estrutura de fiscalização dos órgãos ambientais, entre eles o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o que facilitou o avanço sobre a Floresta Amazônica de madeireiros ilegais, garimpeiros e organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, que usam os rios da região para o transporte da cocaína produzida na Colômbia, na Bolívia e no Peru. O resultado dessa situação foi devastador na terra dos yanomami, uma vasta área de 9,5 milhões de hectares (soma dos territórios do Rio de Janeiro e do Espírito Santo) na fronteira de Roraima (RR) com a Venezuela, onde vivem 30 mil indígenas. Pelo menos 20 mil garimpeiros invadiram a reserva, destruindo e contaminando o meio ambiente com mercúrio, um metal pesado e tóxico utilizado no processo de separação do ouro de outros sedimentos. A invasão levou a morte e a fome para os índios. Imagens de homens, mulheres e crianças esqueléticas percorreram o mundo. No início de 2023, uma força-tarefa do governo federal expulsou os garimpeiros da região. Mas, nos quatro últimos meses do ano, os efetivos federais começaram a ser desmobilizados e os garimpeiros iniciaram a sua volta às terras yanomami.

Ao retornar à área indígena os garimpeiros levaram novamente a fome, as doenças e a morte para a tribo. Novas imagens de crianças, homens e mulheres reduzidos a pele e ossos voltaram a ser notícia ao redor do mundo. A resposta do governo federal veio na segunda semana de janeiro: a criação de uma estrutura permanente nos moldes da força-tarefa desativada. Vai funcionar? Essa iniciativa pode ser o início de uma solução definitiva para o problema das invasões ou simplesmente fracassar e ser desmantelada. Conversei com vários especialistas e colegas repórteres familiarizados com o assunto e somei as suas opiniões com a experiência que adquiri nas duas vezes que andei pela região realizando reportagens, quando estabeleci por lá uma rede de fontes importantes. Vou alinhavar alguns fatos para que possamos refletir. Em primeiro lugar, para que a iniciativa do governo federal tenha uma chance de apresentar resultados que a credencie a resolver o problema, é preciso que os serviços de inteligência da Polícia Federal (PF) e das Forças Armadas troquem informações para mapear e imobilizar um contingente de cerca de 350 pilotos de pequenas aeronaves que abastecem os garimpos da região. A maioria desses pilotos também opera no tráfico de cocaína da Colômbia, Peru e Bolívia para o Brasil. São profissionais altamente capacitados para realizar voos clandestinos e pousar em pistas muito precárias.

Lembro-me que, em 1993, quando um grupo de yanomamis foi massacrado por garimpeiros, o governo federal proibiu os voos na área e destacou aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para patrulhar o espaço aéreo. Por um período de tempo, os pilotos dos garimpeiros migraram para o tráfico de drogas em busca de trabalho. Um levantamento do perfil desses pilotos feito pelos serviços de inteligência, somado a um patrulhamento ostensivo por aviões Super Tucano, da FAB, podem dar uma chance para o plano do governo federal. Usados para o treinamento de pilotos de caça, os Super Tucano são aeronaves turboélice ideais para realizar patrulhamento na Amazônia. Foi o que ouvi de várias fontes. Há outra conversa que ouvi sobre a volta dos garimpeiros que considerei interessante. Fui lembrado que garimpar na terra yanomami custa muito caro. Portanto, se os garimpeiros voltaram à reserva, é porque os seus financiadores continuam na ativa. Alguns foram presos pela PF, mas a maioria escapou ilesa. Como foi possível? Porque há muitos anos nasceu, cresceu e se consolidou entre boa parte dos empresários de Roraima a ideia de que não é crime explorar as riquezas das terras yanomami. Eles falam sobre o assunto às claras – há matérias na internet. Essa cultura foi fortemente reforçada pelo governo Bolsonaro, ao boicotar os serviços de fiscalização ambiental. Como o governo Lula vai lidar com esse problema? Existe ainda um fato muito sério nessa história. O boicote na fiscalização deixou a porta aberta para a entrada nos garimpos de organizações criminosas, com destaque para o PCC e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. A imprensa cunhou a nome “narcogarimpo” para descrever essa nova situação.

Por uma das tais ironias da história, caso o governo federal não consiga encaminhar uma solução definitiva para a invasão das terras yanomami, a primeira vítima dessa situação será o agronegócio, um dos esteios da economia nacional, que enfrenta uma concorrência gigante nos mercados internacionais por parte de produtores americanos e europeus. Disse ironia porque é justamente a bancada ruralista no Congresso, que diz representar os interesses do agronegócio, que tem se alinhado com os defensores da exploração ilegal das terras yanomami. No começo da nossa conversa disse que a volta dos garimpeiros à reserva era o primeiro arranhão na imagem internacional do Brasil no governo Lula. Porque a imagem de um país em dia com os seus compromissos ambientais é fundamental para manter a competitividade dos produtos brasileiros lá fora. O que, por sua vez, é fundamental para o desenvolvimento do país. Há muita coisa em jogo nessa história. A imprensa tem dado informações gerais a respeito do plano do governo federal para barrar a entrada dos garimpeiros nas áreas indígenas. Entretanto, devido a seriedade do assunto, torna-se necessário publicar reportagens mais encorpadas. O recado dado pela volta dos garimpeiros à área yanomami é que o problema não acabou. É necessário que as grandes redes de comunicação abram a mão e enviem repórteres para a região para contar os bastidores dessa história. É um rolo grande demais para a imprensa varrer para debaixo do tapete.

Reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal Contadas”

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.