Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Por quê precisamos de um manual de redação antirracista?

Não deveríamos precisar, em um país que tem a maioria de sua população negra. Mas o recém-lançado “Manual de Redação: o Jornalismo Antirracista a partir da Experiência da Alma Preta” mostra o quanto era necessário um documento normativo que posicionasse a imprensa negra para além do nicho ou do ativismo, comumente vistos em tom pejorativo pela mídia dita “tradicional” e por alguns setores da sociedade. Sob os padrões e regras hegemônicos, a publicação de um manual de redação traz consigo marcas de profissionalização e, portanto, é também um ato político importante. Em 263 páginas feitas a muitas mãos, o manual teve orientação da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da UnB, do jornalista Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor da UNESP, e do jornalista Pedro Borges, cofundador e editor-chefe da Alma Preta.

Neste texto, destacarei os aspectos inovadores do manual da Alma Preta, com foco para as discussões éticas que ele suscita.

  1. Posicionamento editorial

A agência de notícias se afirma comprometida com o ‘combate ao racismo estrutural e todas as desigualdades do país’, já que não é possível se viver ‘em um regime democrático com o atual estado de diferenças no Brasil’. É a partir de uma realidade de desequilíbrio, que favorece as pessoas brancas e enfraquece um país democrático, que se tem a necessidade de uma imprensa que combata o racismo e outras desigualdades. É muito menos uma escolha e muito mais uma necessidade latente.

Embora rejeite valores como neutralidade e imparcialidade, ‘a agência de notícias opta por valorizar a objetividade’, pois o jornalista ‘não pode fechar os olhos para os fatos e deve exercer um trabalho responsável de apuração. A realidade é complexa, repleta de contradições e assim deve ser reportada’. A palavra objetividade aparece 10 vezes no documento, sempre relacionada com a apuração responsável dos fatos. Por exemplo, no verbete ‘filiação partidária’, a orientação é de que o repórter pode se filiar a um partido político, mas ‘deve ter objetividade na produção de pautas para apurar fatos controversos e inclusive contrários ao partido em questão’. Já no próprio verbete ‘objetividade’, o manual diz; ‘A objetividade é fundamental para dar conta da complexidade do cotidiano e exige da repórter a escuta ativa, a apuração, a checagem das informações e o domínio das técnicas da profissão’.

O leitor mais atento percebeu o uso do feminino como pronome neutro nas aspas acima e isso faz parte do posicionamento editorial do veículo. Embora não seja uma diretriz em todos os seus conteúdos, optou-se por essa estrutura linguística no manual de redação ‘de forma a romper com uma estrutura de linguagem que reproduz o masculino como universal’. Interessante observar que os autores usam a palavra ‘’incômodo’ – certeira, na minha avaliação – para dizer que se trata de um ‘exercício do incômodo e do questionamento de opressões estruturais da sociedade’.

2. A imprensa negra é imprensa tradicional

A Alma Preta se posiciona como imprensa negra, por ser feita por pessoas negras, se dirigir a um público também negro e/ou comprometido com a luta antirracista e abordar a realidade a partir da perspectiva dos afrodescendentes. ‘Como nos periódicos do século 19 e 20, raça e racismo direcionam a linha editorial da ’Alma Preta’, diz o manual.

O manual destaca que a longevidade dos jornais e revistas, demonstrada a partir dos registros históricos desde 1833, é a prova de como a mídia feita por pessoas negras é tradicional. ‘Não é apenas a imprensa corporativa, feita por pessoas brancas e com o desejo de manutenção do status quo, que pode carregar esse título’.

Posicionar-se como imprensa tradicional é o principal marco de inovação do manual. Para além de regras técnicas e de estilo, comuns em documentos normativos, o resgate histórico de dezenas de periódicos negros embasa a afirmação e reposiciona a mídia negra no país.

  1. Formação de novos públicos

‘Alma Pretinha’ é a editoria da agência voltada para as crianças a partir de cinco anos, que olha para o futuro. Inédita na história da imprensa negra no Brasil, ‘trata-se de um esforço de valorização da infância negra por meio de atividades lúdicas, jogos, vídeos, histórias em quadrinhos, entre outros recursos disponíveis em ambiente virtual’. Uma editoria para o público infantil é rara na imprensa atual, por isso o destaque nesta iniciativa que pensa a formação de cidadãos mais conscientes.

  1. Ouvir todos os lados

O verbete ‘direito de resposta’ enfatiza que os diferentes lados envolvidos em uma notícia devem ser ouvidos – o direito de resposta é, inclusive, garantido em lei. Há algumas diretrizes práticas como ‘cuidar de ouvir todos os segmentos envolvidos na notícia é fator fundamental no fortalecimento de um jornalismo credível, objetivo e transparente’. No entanto, um box logo abaixo do verbete traz uma ressalva importante. De acordo com o manual, há cenários em que ouvir alguns lados de uma história pode desqualificar a informação.

‘Por exemplo, é de amplo conhecimento histórico os malefícios da escravidão no país e a importância de Zumbi dos Palmares na história da resistência negra. Quando uma repórter convoca uma fonte racista e/ou que descredibiliza os impactos negativos da escravidão e nega a importância de Zumbi, a jornalista não agrega à informação, uma vez que essa opinião desmente algo historicamente comprovado’.

Essa relativização é importante, especialmente em se tratando de um veículo que se propõe a combater o racismo, e pode ser estendida para outros temas, como o negacionismo da ciência, por exemplo. Desta forma, o documento propõe um avanço ético na tradicional regra de ‘ouvir dois lados’ em prol da qualidade da informação.

A breve análise dos itens acima não esgota o conteúdo do manual de redação da Alma Preta, mas lança luz sobre aspectos inovadores do documento, que podem servir de guia para outros manuais de redação. Por seu caráter inovador e historicamente embasado, o documento é já um marco importante nas iniciativas normativas do jornalismo no Brasil.

Reportagem publicada originalmente em objETHOS.

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Lívia de Souza Vieira é professora da UFBA  e pesquisadora associada do objETHOS