Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quanto vale uma vida arrancada na tortura?

(Foto: GETTY IMAGES)

 Antes de mais nada vamos dividir 3 milhões por 25, qual o resultado? Dá quase para se fazer essa divisão por cabeça: o resultado é 120 mil. De onde vem essa ideia de fazer esse exercício matemático? De uma decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 3a. Região, condenando três delegados do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, conhecido pela abreviação onomatopaica DOI-CODI, órgão ativo durante a ditadura militar de 1964-1985, a pagarem cada um o equivalente a um milhão de reais como indenização por crimes e torturas cometidos.

Esse processo se prolongou por 13 anos, os delegados inculpados e condenados já estão velhos e aposentados, mas um deles, o pior de todos escapou; o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, embora tenha sido condenado por torturas, morreu em 2015. É bom assinalar estarmos nos referindo apenas ao DOI-CODI de São Paulo. Esses centros de tortura e assassinatos existiam em outros Estados. O de São Paulo derivou da Operação Bandeirantes.

Entretanto, esse processo com resultado parcial das condenações que pedia, não foi o único. Diversas tentativas de punição aos torturadores e criminosos, protegidos pela ditadura, e diversas denúncias coletivas ocorreram sem obter resultado. Algumas delas consistiram em manifestos e abaixo-assinados de jornalistas motivados pelo assassinato, camuflado em suicídio, em 1975, do jornalista Vladimir Herzog, na época na TV Cultura.

Esse organismo, o DOI-CODI, denunciado internacionalmente, é bom se destacar era subordinado diretamente ao Exército, criado depois do golpe de 1964 quando os militares assumiram o poder. Essa referência é oportuna, tendo-se ainda bem próxima a tentativa frustrada de golpe no dia 8 de janeiro e as constantes declarações do ex-presidente Bolsonaro, elogiando e praticamente se declarando fã do torturador mor do DOI-CODI paulista, Brilhante Ustra. Essa profissão de fé hedionda de Bolsonaro sempre foi aceita sem restrições pelos líderes evangélicos; nunca se viu qualquer declaração de pastores ou líderes evangélicos bolsonaristas fazendo ressalva à essa preferência.

A publicação com destaque da condenação dos três delegados torturadores Aparecido Laertes Calandra ou Capitão Ubirajara, David dos Santos Araújo ou Capitão Lisboa e Dirceu Gravina ou JC marcou o começo da parceria dos sites Ponte Jornalismo e Justificando com o novo projeto digital de Carta Capital. Para Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog, citada na reportagem, a condenação pelo pagamento de uma indenização mostra um “avanço tímido” da Justiça, porém deve ser celebrada porque permite um retorno ao debate público da questão.

Um pormenor desconhecido tem escapado à imprensa nos relatos sobre sequestros e prisões feitos pelo DOI-CODI, que posso acrescentar. Em 1976, logo depois do assassinato sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, o órgão torturador da ditadura continuava agindo. E seu objetivo era completar os depoimentos relacionados com a Ação Popular.

Assim, sem alarde, foram presas em São Paulo, dez anos depois do sucesso da apresentação, duas das atrizes da celebrada peça teatral do poeta João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”, encenada pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo, da rua Monte Alegre, o TUCA. Elas haviam voltado da Europa, onde viviam sem participação política, depois de concluírem seu curso de filosofia na Universidade Católica.

Eram as únicas que não haviam ainda prestado seu depoimento relacionado com a atividade do grupo teatral TUCA, premiado em 1966, em Nancy, na França, no Concurso de Teatro Universitário. O DOI-CODI foi buscá-las de madrugada em casa e foram submetidas à tortura. Era esse o clima de medo e insegurança nos tempos da ditadura militar, que deixaram ainda marcas nas pessoas que os viveram direta ou indiretamente.

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de LisboaCorreio do Brasil e RFI.