Numa entrevista para a televisão indiana, durante o encontro dos países do G20, o presidente Lula, intencionalmente ou mal-informado, convidou o presidente russo Putin ao próximo encontro do G20 no Brasil, apesar de ter sido condenado pelo Tribunal Penal Internacional. Logo depois, alguém lhe alertou ter cometido um erro; Lula corrigiu a fala, mas a emenda saiu pior que o soneto.
Antes, porém, é bom lembrar, neste momento em que o mundo lembra, há 50 anos, o violento e criminoso golpe de estado de Augusto Pinochet, no Chile, como foi possível a prisão do ditador em Londres.
Não havia ainda o Tribunal Penal Internacional; o ditador Pinochet, havia perdido no plebiscito e deixado o poder em março de 1990 como senador perpétuo. Oito anos depois, precisou fazer uma operação e decidiu fazê-la em Londres, aonde chegou em 16 de outubro de 1998.
Alguns dias depois, o juiz espanhol Baltasar Garzón pediu a extradição de Pinochet para a Espanha e, antes mesmo de Pinochet ser recebido por Thatcher, foi preso. Não foi extraditado, mas ficou em estado de detenção durante 503 dias, até 2 de março de 1999. Esse julgamento de extradição lembrou o de Nuremberg e ajudou na criação do Tribunal Penal Internacional.
Mas voltemos a Putin: onde está o erro de Lula? O presidente russo Vladimir Putin não foi aos encontros dos Brics na África do Sul e do G20 na Índia, porque poderia ser preso. Putin foi condenado à prisão pelo crime de guerra de sequestro e deportação de 19 mil crianças ucranianas para a Rússia, durante a atual guerra, iniciada dia 24 de fevereiro do ano passado, quando diversas cidades ucranianas, perto da capital Kiev, sofreram ataques russos.
Quem condenou Putin foi o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, na Holanda, com seus 18 juízes, depois de investigações feitas pelo procurador-geral do TPI, o inglês Karim Khan, que esteve pessoalmente na Ucrânia, e dois procuradores adjuntos de nacionalidade senegalesa e fidjiana.
Atualmente, o TPI investiga denúncias recebidas contra o presidente venezuelano Maduro. Já foram também enviadas denúncias ao TPI, feitas por entidades brasileiras contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por genocídio durante a crise sanitária do Covid.
A condenação do presidente russo foi anunciada pelo TPI, no dia 17 de março deste ano. O próprio TPI não tem meios e nem policiais para efetuar a prisão de seus condenados. Mas emite um mandado de prisão enviado aos países signatários do Tratado de Roma, em 1998, quando se criou o Tribunal Penal Internacional, também conhecido como Tribunal de Haia.
Se o TPI condenar alguém, brasileiro ou estrangeiro, que viva no Brasil ou um estrangeiro em visita ao Brasil (seria o caso de Putin) cabe à Polícia Federal efetuar sua prisão, sem intervenção do presidente ou do STF, porque a adesão ao Tratado de Roma e ao TPI confere essa autorização automática. Não está prevista punição ao país que não prender a pessoa condenada pelo TPI, mas será uma violação de um tratado, uma quebra de compromisso internacional assumido livremente, implicando numa desonra internacional.
No caso de um país desejar sair do TPI, deverá anunciar essa intenção um ano antes, ou seja, tarde demais para o Brasil sair do TPI, a fim de permitir a vinda do presidente russo Putin sem risco de prisão.
Ao declarar que Putin poderia ir ao Brasil sem ser preso, Lula errou, mas não conseguiu se explicar direito ao tentar se corrigir. Ele se implicou com o fato dos EUA não pertencerem ao TPI e deu a impressão, na conversa com jornalistas, da possibilidade de retirar o Brasil do TPI, já que os EUA dele não fazem parte. Ora, outros países como a China, Rússia, Israel, Filipinas, Arabia Saudita, Cuba, Turquia e Indonésia também não fazem parte do TPI. Lula poderá mesmo seguir o exemplo da África do Sul, Burundi e Gambia que apresentaram nas últimas semanas o pedido para saírem do TPI.
Será que vale esse desgaste (sem pressão do Lira do Centrão) para levar Putin ao Brasil sem ser preso por crimes cometidos na invasão da Ucrânia? Já tinham pegado mal aquelas declarações dúbias sobre a guerra da Ucrânia e Rússia, interpretadas como apoio aos russos. Abandonar o TPI para agradar Putin, condenado por violação de direitos humanos, impedindo com isso um processo de Bolsonaro por genocídio, seria uma manobra um tanto indigesta para seus apoiadores internacionais e para a própria esquerda brasileira.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.