Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tratamento tributário diferenciado como privilégio e o caso das lideranças religiosas

(Foto: Pixabay)

A Constituição brasileira em vigor, promulgada no dia 5 de outubro de 1988, consagra com especial intensidade o princípio da igualdade tributária. Afirma, no art. 150, inciso II, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

O constituinte de 1988 poderia ter dito, e já estaria de bom tamanho, que é vedado definir tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente. Mas existem razões bem concretas para ter desdobrado o princípio da isonomia, notadamente para explicitar a proibição do tratamento tributário diferenciado por conta de profissões ou funções exercidas pelo contribuinte. Afinal, em passado recente, já foram concedidas isenções de imposto de renda para parlamentares, magistrados e militares.

É preciso pontuar que a Constituição de 1988 não interdita todo e qualquer tratamento diferenciado. O Texto Maior veda distinções tributárias desarrazoadas, discriminatórias e consagradoras de favoritismos incongruentes. Não por outra razão o princípio da igualdade tributária também é conhecido como “princípio da proibição dos privilégios odiosos”.

Assim, é viável a fixação, no plano da legislação tributária, de diferenças legítimas entre os contribuintes. Essas diferenças aceitáveis não se confundem com privilégios, assim entendidas as facilitações somente voltadas para suavizar a carga tributária do agraciado. Embora sem demarcações altamente precisas, as distinções tributárias válidas são aquelas seguramente escoradas na realização de valores e fins consagrados na ordem jurídica.

O tributo progressivo (com alíquotas crescentes por faixas de renda, por exemplo) não fere o princípio da isonomia. Adota-se um critério de proporcionalidade da incidência em função da utilidade marginal da riqueza. Em outras palavras, quanto maior a disponibilidade econômica, maior será a parcela dessa renda com utilizações distantes do essencial e próximas do consumo supérfluo e da poupança.

Admite-se, também, isenções de caráter não geral destinadas, na qualidade de incentivos fiscais, a promover o equilíbrio do desenvolvimento regional. Essa possibilidade está expressamente autorizada no art. 151, inciso I, parte final, da Constituição.

Inúmeras vantagens ou benefícios fiscais consagrados na legislação infraconstitucional são utilizados como forma de efetivar uma compensação pela existência de uma desvantagem (fática) observada na realidade socioeconômica. Podem-se arrolar os seguintes exemplos, onde a distinção é razoável, conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF): a) tratamento favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte; b) isenção de IPI para taxistas e portadores de deficiência física na aquisição de veículos e c) isenção de IPVA para os proprietários de veículos destinados a transporte escolar.

Por outro lado, o STF já declarou inconstitucional, por reconhecer a presença de privilégios injustificáveis: a) lei estadual que estabelecia isenção de IPVA para os proprietários de veículos destinados a transporte escolar vinculados a uma determinada cooperativa local; b) lei municipal que concedia isenção de IPTU para servidores públicos estaduais e c) lei estadual que concedia isenção aos membros do Ministério Público, inclusive inativos, do pagamento de custas judiciais, notariais, cartorárias e quaisquer taxas ou emolumentos.

Recente decisão da Receita Federal acendeu a discussão acerca dos tratamentos tributários diferenciados. Com efeito, às vésperas da campanha eleitoral de 2022, o Fisco entendeu que não incidia contribuição previdenciária sobre as prebendas, forma de remuneração paga por igrejas a seus pastores, ministros e outras lideranças religiosas. No dia 17 de janeiro de 2024, nova manifestação da Receita sobre o assunto reconheceu como devido e necessário o recolhimento do referido tributo previdenciário. Na sequência, a imprensa registrou fortes reações de dirigentes de várias igrejas que qualificaram a medida como: “afronta aos religiosos”, “afronta às religiões”, “perseguição religiosa”, “vingança”, “sacerdofobia” e “safadeza de Lula”.

Parece acertada a última decisão da Receita Federal. Afinal, deve incidir, por imperativos constitucionais e legais, tributação previdenciária sobre remunerações pagas, a qualquer título, para retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma. Esse é o padrão aplicável a todos em consonância com o princípio da igualdade tributária, antes destacado.

O tratamento tributário diferenciado e benéfico dirigido aos pastores, ministros e demais lideranças religiosas precisaria, para ser válido e legítimo, realizar, de forma clara e inequívoca, algum valor ou fim consagrado na ordem jurídica. Um esforço de hermenêutica jurídica isento de paixões políticas não parece indicar um resultado positivo para os interesses exonerativos dos religiosos.

“O pagamento dessas contribuições não tem relação com a imunidade tributária conferida pela Constituição às entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes. O dispositivo constitucional se presta à garantia da liberdade religiosa no País, de modo a evitar que uma denominação religiosa seja impedida de oferecer conforto espiritual a seus fiéis por falta de dinheiro para pagar impostos relativos a seus locais de culto e obra missionária” (fonte: estadao.com.br ).

Também não são encontradas razões legítimas para o benefício fiscal em questão se o foco da discussão for dirigido às lideranças religiosas. A pura e simples condição de integrar, de alguma forma, a hierarquia de uma entidade religiosa não é critério válido para o estabelecimento de um tratamento tributário favorecido em relação ao cidadão comum. O que se observa é o privilégio pelo privilégio. Nenhum valor ou fim consagrado no ordenamento jurídico é realizado com exoneração tributária dessa natureza.

Assim, não é o caso de alimentar reações virulentas e de forte carga política. É preciso participar do debate público com argumentos e elementos que possam convencer quanto à legitimidade do tratamento tributário diferenciado. Não custa apontar uma crescente repulsa social em relação a um número considerável de lideranças religiosas (não são todos, nem a maioria) vistos como nefastos “mercadores da fé”. Registre-se, nesse sentido, o recente destaque dado pela grande imprensa a chamada “pastora do pix” (ou “pixtora”). A seguinte manchete vale por todas: “Quem é pastora que ostenta vida de luxo e pede pix em troca de orações” (fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/01/24/quem-e-pastora-que-ostenta-vida-de-luxo-e-pede-pix-em-troca-de-oracoes.htm).

Esse episódio possui uma carga educativa para além do universo tributário. As exonerações fiscais figuram como uma parte de uma coleção enorme de tratamentos estatais diferenciados e privilegiados para segmentos socioeconômicos poderosos. Isenções e benefícios tributários convivem com subsídios, incentivos financeiros, ausência de limites para várias formas de transferência de riqueza do conjunto da sociedade para uma meia dúzia de “ungidos pelos deuses” e tantos outros mecanismos cuidadosamente inseridos na institucionalidade jurídica.
O desenvolvimento do Brasil com sustentabilidade, justiça social, democracia, supressão de discriminações e opressões exige uma cidadania ativa atenta, organizada e mobilizada para evitar a criação e para desmontar os instrumentos de concretização de uma das sociedades mais desiguais do mundo.

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional.