A República do Irã, na verdade o governo teocrático islâmico autoritário iraniano, proibiu a viagem a Berlim aos dois cineastas realizadores do filme Meu Bolo Preferido, selecionado para a competição principal de longas-metragens, no próximo Festival Internacional de Cinema de Berlim, do 15 ao 25 de fevereiro. A cineasta Maryam Moghadam e o cineasta Behtash Sanaeeha tiveram seus passaportes confiscados e enfrentam processos relacionados com suas atividades como artistas e cineastas.
O cinema iraniano é um dos melhores do mundo, seus filmes costumam ganhar os maiores prêmios nos principais festivais internacionais. É também bastante inventivo e vinha sabendo driblar a rigorosa censura do regime islâmico, lembrando nisso a maneira como nossos cineastas conseguiam filmar durante a ditadura militar.
A criatividade dos cineastas iranianos explora até o sabor das coisas nos títulos de seus filmes. Foi o caso do Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami e, agora, do Meu Bolo Preferido, uma coprodução feita no Irã com o apoio de França, Alemanha e Suécia. O Irã, embora simpático para alguns representantes da esquerda brasileira, exerce uma censura rigorosa contra seus artistas e, em outras oportunidades, já prendeu mesmo três importantes cineastas Jafar Panahi, Mohammada Radoulof e Mostafa al-Ahmad (premiados nos festivais de Berlim, Cannes e Veneza) a pretexto de fazerem com seus filmes propaganda contra o regime (o regime islâmico iraniano é totalitário) e ativismo anti-revolucionário.
A República teocrática islâmica do Irã, na qual se aplica a pena de morte a mulheres que não colocam corretamente o véu na cabeça, citada favoravelmente como exemplo em algumas redes sociais, lembra, na sua relação com o mundo do cinema, o regime de censura aplicado no Brasil durante o regime militar de 1964 a 1985.
Mas é recente o surgimento de uma diferença em decorrência da mobilização popular depois do assassinato pela polícia iraniana da jovem Mahsa Amini e do surgimento do movimento Mulher, Vida, Liberdade, pelo reconhecimento dos direitos femininos. Diferença tanto por parte das autoridades iranianas, agora ainda mais intolerantes, como da parte dos cineastas nem sempre dispostos a aceitar as regras da censura em vigor.
Aqui no Observatório da Imprensa, em artigos republicados em outros jornais como o Brasil de Fato, já tínhamos tratado da questão da censura iraniana, na premiação do filme do realizador Mohammad Rasoulof, premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim com o filme Não Há Nenhum Mal ou O Diabo Não Existe, impedido de ir a Berlim pelas autoridades iranianas. Rasoulof já havia sido preso em 2020 com outro importante cineasta, Jafar Panahi, ambos autores do filme Os Manuscritos Não Queimam, premiado em Cannes na mostra Um Certo Olhar.
No ano passado, destacamos também a premiação do filme iraniano Zona Crítica com o Leopardo de Ouro do Festival Internacional de Locarno. Seu diretor, Ali Ahmadzadeh também tinha sido impedido de ir a Locarno. O texto publicado aqui no Observatório enfatizava: “o Leopardo de Ouro com suas unhas e dentes desafia a ditadura teocrática xiita iraniana”.
Festival Internacional de Cinema de Berlim apela em favor da liberdade
A Berlinale, Festival Internacional de Cinema de Berlim, apela pela liberdade de viagem e liberdade de expressão para os cineastas Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha.
A Berlinale teve recentemente o prazer de anunciar que o filme iraniano Meu Bolo Preferido (My Favorite Cake), de Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, será exibido em competição na 74ª Berlinale.
Entretanto, logo a seguir, o festival soube ter sido imposta uma proibição de viagem aos cineastas realizadores iranianos Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha. Os seus passaportes foram confiscados e eles enfrentam ações legais relacionadas com o seu trabalho como artistas e cineastas.
A Berlinale está fundamentalmente comprometida com a liberdade de expressão e expressão, bem como com a liberdade artística para todas as pessoas no mundo. O Festival de Berlim está chocado e consternado pelo fato de Moghaddam e Sanaeeha terem sido impedidos de viajar para o festival, onde deveriam apresentar o seu filme e encontrar o público internacional.
A dupla de dirigentes da Berlinale, Carlo Chatrian e Mariëtte Rissenbeek, divulgou: “Apelamos às autoridades iranianas para que devolvam os passaportes e levantem todas as restrições que impedem Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha de viajar a Berlim do 15 ao 25 de fevereiro para se juntarem aos outros cineastas para apresentar seu novo filme Meu Bolo Preferido (My Favorite Cake) a produtores, diretores internacionais e talentos do cinema como parte da competição Berlinale de 2024.”
O filme anterior de Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, Ballad of a White Cow, foi exibido em competição na Berlinale em 2021, quando foi aclamado como um dos favoritos do público. O filme Meu Bolo Preferido foi apoiado pelo Berlinale World Cinema Fund e participou anteriormente como projeto no Berlinale Co-Production Market 2020, onde ganhou o prestigiado Eurimages Co-Production Development Award.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.