Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo cercado ou cerceado, eis a questão

Foto: Isac Nóbrega/PR

O relatório State of Hate 2021 divulgado em março deste ano na capital britânica pela organização Hope not Hate aponta que movimentos de extrema-direita pelo mundo têm usado ativistas que supostamente atuam como jornalistas “cidadãos” para promover e ampliar ataques aos profissionais de imprensa. Consta do documento dados de uma pesquisa realizada pela jornalista Samantha Harman, editora do Newsquest Oxfordshire, a respeito de abuso online relacionado ao trabalho de profissionais dos meios de comunicação regionais em que 89% deles já foram assediados pelo Facebook, 80% em seus próprios sites e 67% no Twitter. Entre os casos recentes destacados pelo relatório está o ocorrido em fevereiro deste ano quando pichações sinistras apareceram em vários locais ao leste de Belfast, capital da Irlanda do Norte, envolvendo o nome da premiada repórter policial Patricia Devlin ao lado de uma cruz.

Do Reino Unido ao Brasil, ao se observar o Levantamento produzido pela organização não-governamental (ONG) Repórteres Sem Fronteiras e divulgado no final de janeiro deste ano é possível perceber que não só ativistas alinhados com a extrema-direita têm atacado repórteres e a imprensa de modo geral. O documento da RSF permite, ao se analisar os números, identificar um balanço sobre agressões feitas por autoridades públicas em alguns continentes. É o caso do presidente Jair Bolsonaro e os filhos parlamentares que fizeram juntos 469 ataques a jornalistas e veículos de comunicação em 2020. A ONG registrou 508 ações desse tipo no ano passado. E as jornalistas mulheres foram as que mais sofreram ataques pessoais. Entre ofensas, ameaça judicial, descredibilidade e até impedimento de cobertura foram 34. No caso dos homens, somam 29 ataques pessoais.

Não é muito difícil ilustrar como isso tem se dado. O episódio do dia 12 de março passado, registrado pelos principais jornais do país envolvendo o deputado federal Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados é um desses casos. Após retorno de uma viagem, integrando a comitiva do governo brasileiro que esteve em Israel para conhecer um spray nasal contra a Covid-19 que está em desenvolvimento por lá, disse em mensagem publicada pela rede social Instagram sentir “pena da imprensa ‘mequetrefe’ que a gente tem aqui no Brasil que fica dando conta de cobrir apenas a máscara. ‘Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara’. Enfia no rabo gente, porra! Estamos lá trabalhando, ralando”. Eduardo se referia ao episódio amplamente divulgado pelos meios de comunicação a respeito do fato da comitiva sair do país sem máscara e ao chegar em Tel Aviv passar a usá-las.

Outros fatos recentes também dão conta das ameaças sistemáticas que envolvem o próprio presidente brasileiro em sua relação conturbada com a imprensa. No dia 16 de fevereiro, em live transmitida pelo filho deputado federal, Bolsonaro disse que “o certo” seria acabar com os veículos para que as notícias falsas parem de circular. Foi enfático: “O certo é tirar de circulação, não vou fazer isso porque eu sou um democrata, Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, Antagonista… que são fábricas de fake news”. Na ocasião, o presidente estava de férias pelo litoral de São Francisco do Sul (SC), onde voltou a promover aglomeração e a circular sem máscaras. E, no início de janeiro, afirmou que a imprensa é o maior problema do Brasil e classificou alguns veículos de comunicação como piores do que lixo, argumentando que o lixo ao menos pode ser reciclado, enquanto a mídia, segundo ele “não serve para nada”.

Cala a boca, jornalista!

Mas quem pensa que os jornalistas estão sendo atacados apenas na história recente do país é preciso dimensionar o incômodo e a contrapartida agressiva que a imprensa provoca quando o exercício do jornalismo desnuda imbróglios e malversações de governantes em períodos significativos da realidade brasileira. Na quinta edição, revista e ampliada em 2017, do livro “Cale a boca, jornalista! – O ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa brasileira”, o jornalista e escritor fluminense Fernando Jorge demonstra as perseguições e arbitrariedades sofridas por jornalistas e a imprensa brasileira desde a época do Império, com destaque especial para os anos de chumbo iniciados com o golpe de 1964. Na leitura da obra é possível detectar situações, como o caso do ex-governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que mandou apreender o jornal Correio da Manhã e outros jornais. A ironia contida no caso é que Lacerda também era jornalista e escrevia para a Tribuna da Imprensa. Mas Fernando Jorge recua um pouco mais no tempo. Lembra que José Bonifácio, o “patriarca da Independência”, agia como um chefe de cangaceiros; o proclamador da República, Marechal Deodoro da Fonseca, apoiou, ao fazer vista grossa, o empastelamento do jornal A Tribuna. Também situa exemplos do período em que militares comandavam com os constantes destemperos e agressões do general Newton Cruz contra jornalistas; e as violentas torturas infligidas contra profissionais como Rodolfo Konder, Maurício Azedo, Miriam de Almeida Leitão Netto, Renato Oliveira da Motta, Antônio Carlos Fon, e a morte de Wladimir Herzog nos porões do DOI-CODI, entre outros casos que abalaram a Ditadura, inclusive o do próprio autor, perseguido durante o regime militar por afirmar que existia preconceito racial no Brasil.

Fernando Jorge lembra também que ações contra a Imprensa são um problema crônico no país. Toma como exemplo o ocorrido em 2004, quando o então presidente Lula chegou a cogitar a expulsão do país do repórter Larry Rother, correspondente do New York Times no Brasil, por conta de uma matéria onde o jornalista tratou dos hábitos etílicos de Lula, escrita no início daquele ano.

E o “cale a boca jornalista” apontado por Fernando Jorge se reafirma de maneira expressa em pleno 2020 quando o presidente Bolsonaro em 5 de maio daquele ano esbraveja contra uma reportagem publicada pela Folha de S.Paulo e diante de questionamentos de jornalistas: “Cala a boca, não perguntei nada. Cala a boca, cala a boca”. As investidas agressivas do presidente se estenderam em 2021 contra opiniões manifestadas por outros segmentos da sociedade brasileira, envolvendo, inclusive, ações de autoridades como o ministro da Justiça, André Mendonça, e da polícia civil do RJ, no intuito de investigar cartunistas e profissionais da imprensa que manifestaram críticas ao presidente. O que culminou na tentativa de indiciamento contra o youtuber Felipe Neto por parte vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Em contrapartida, a reação denominada “Cala boca já morreu”, impulsionou uma frente idealizada por Felipe Neto com o apoio de escritórios de advocacia com a intenção de defender gratuitamente pessoas que se expressarem por meio de ideias ou críticas a autoridades públicas e sofrerem cerceamento. Neto explica que o grupo vai lutar contra o autoritarismo e será movido pelo princípio de que “quando um cidadão é calado no exercício do seu legítimo direito de expressão, a voz da democracia se enfraquece”.

Cercados na Pandemia

No início de dezembro do ano passado, a Globoplay em conjunto com o Departamento de Jornalismo da TV Globo lançou o documentário “Cercados – A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia”. O filme foca no próprio jornalismo durante o desenrolar da pandemia de covid-19.

O diretor do documentário, Caio Cavechini, em entrevista na ocasião do lançamento do filme enfatizou que o jornalismo está sendo muito atacado, assim como a ciência também, desde o início da pandemia. Ao escolher retratar a rotina dos veículos brasileiros no período, a obra realiza um registro histórico sobre as particularidades brasileiras, e dá visibilidade a uma imprensa atacada tendo como pano de fundo o negacionismo estimulado por autoridades públicas, o que provoca uma tensão permanente, que segundo o diretor, se tornou de maneira natural o fio condutor do filme. Entre depoimentos de profissionais de saúde e de imprensa, familiares e contaminados pelo vírus, o documentário destaca expressões e falas — em que fica claro o esgotamento dos envolvidos tanto na cobertura jornalística quanto no atendimento aos doentes, e nas manifestações dos familiares — que dão visibilidade às dores, dificuldades, embates e contradições de um período singular da realidade brasileira.

O filme também recupera o período em que os jornalistas tiveram que conviver com o denominado “cercadinho” ou “chiqueirinho” que se estendeu até o final de maio de 2020, quando os veículos de comunicação resolveram deixar o local, temerosos de agressões vindas dos apoiadores, e que não eram contidas pela segurança do Palácio. Inicialmente, a medida foi adotada pelo Congresso em Foco e Grupo Globo, além dos jornais “Folha de S. Paulo”, “Estado de S. Paulo” e o portal “Metrópoles”. Posteriormente, o restante deixou de comparecer também. Em entrevista à Rede Brasil Atual, em 30 de maio, o professor da Universidade de Brasília (Unb) e diretor de Relações Internacionais da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação (Alaic), Fernando Oliveira Paulino, disse que os episódios do Alvorada refletem a compreensão que a Presidência da República tem da atuação jornalística. Ou seja, desde janeiro de 2019 houve uma série de situações nas quais o presidente expôs os profissionais a constrangimentos e embaraços por entender que o papel do jornalismo não inclui necessariamente o contraditório e a fiscalização permanente das autoridades públicas. Segundo o professor, “tais situações de tensionamento e hostilidade refletem a polarização política como um instrumento de governo e uma estratégia para manter uma parte da população mobilizada, principalmente pelas mídias sociais, oferecendo apoio para o atual governo.” De acordo com depoimento do jornalista, professor da USP e conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa também a RBA, Laurindo Lalo Leal Filho, há pelo menos dois meses a ABI fazia gestões para que as empresas tirassem de lá seus profissionais. A Federação Nacional dos Jornalistas e o sindicato da categoria no Distrito Federal também apoiaram a decisão.

Investigar o governo, sempre!

Diante de tantas agressões, as palavras de alguns profissionais se encaixam de modo pertinente para auxiliar no entendimento do verdadeiro papel desempenhado pelos jornalistas e muitas vezes desrespeitado por governantes e parlamentares. “Não estamos em guerra, estamos trabalhando. Nosso trabalho é continuar a contar os fatos. Não podemos controlar o que as pessoas vão fazer com a informação, nem mudar uma situação em que parte da sociedade não quer aceitar alguns fatos”. A expressão é de Paul Fahri, jornalista do Washington Post. Em meio ao ruído e à subjetividade das informações que se ampliaram no digital, ele acredita que ainda é necessário um processo de alfabetização midiática entre o público médio, que nem sempre consegue distinguir conteúdos conspiratórios e opiniões de conteúdo jornalístico.
Algo bem próximo do que disse o diretor executivo do jornal The Washington Post, Martin Baron, durante o anúncio de sua aposentadoria, em 26/1/2021, em matéria publicada pela Revista Época. A título de lembrança, Baron conquistou 17 prêmios Pulitzer de jornalismo, e tornou-se mais conhecido no filme “Spotlight”, ao chefiar uma equipe liderada por ele na cobertura de um escândalo de abuso sexual infantil na Igreja Católica, em Boston, nos Estados Unidos. Segundo o jornalista o dever de todo o profissional é investigar e o governo é a instituição mais poderosa que existe em qualquer país: “Nosso trabalho é fazer essas instituições poderosas prestarem contas à sociedade.

Ataques até quando?

Se os ataques à imprensa vão permanecer por mais tempo ou de onde surgirão daqui para frente são questionamentos de difíceis respostas. Mas se tomarmos por base os dados do Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa divulgado em janeiro deste ano, durante a programação da edição 2021 do Fórum Social Mundial, o ano passado foi o mais violento, desde o começo da década de 1990, quando a entidade sindical iniciou a série histórica. “É uma verdadeira explosão da violência contra jornalistas e contra a imprensa de um modo geral”. Foram registrados 428 episódios, 105,77% a mais do que em 2019. O presidente Jair Bolsonaro, mais uma vez, foi o principal agressor. Sozinho foi responsável por 175 casos (40,89% do total): 145 ataques genéricos e generalizados a veículos de comunicação e a jornalistas, 26 casos de agressões verbais, um caso de ameaça direta a jornalistas, uma ameaça à TV Globo e dois ataques à FENAJ. Seus apoiadores passaram a agredir jornalistas nas ruas e nas redes sociais. Aquelas apontadas como verbais/ataques virtuais cresceram 280% em 2020, em comparação com o ano anterior. O documento aponta 76 casos e, apesar do aumento expressivo, alerta que provavelmente muitos não foram registrados, já que nem todos os profissionais denunciam a agressão de que foram vítimas, especialmente quando estão relacionados aos ataques virtuais.

De acordo com a jornalista Maria José Braga, atual presidente da Fenarj, as atitudes de Bolsonaro somadas às de seus seguidores provocaram um aumento “muitíssimo significativo da violência contra jornalistas e de ataques indiscriminados contra veículos de comunicação”. Segundo ela, a única maneira de punir os agressores é na justiça. Será?

***

Boanerges Lopes é jornalista e professor titular da UFJF-MG. Conselheiro da ABEJ e da ABI e colaborador do OI

___

Fontes consultadas

DE LUCA, Aldo. Extrema direita usa cada vez mais ativistas como jornalistas cidadãos e aumenta ataques aos profissionais de imprensa, alerta organização britânica. Portal MediaTalks: 22/3/2021. Disponível em: https://mediatalks.com.br/pt/2021/03/22/hope-not-hate-afirma-que-extrema-direita-usa-ativistas-como-jornalistas-cidadaos-e-ve-aumento-de-ataques-a-imprensa/

El PAÍS. Casos de censura à imprensa no Brasil expõem clima de “degradação da liberdade”. Portal El País: 8/9/2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-08/casos-de-censura-a-imprensa-no-brasil-expoem-clima-de-degradacao-da-liberdade.html

FENAJ. Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa – 2020. Portal FENAJ. Disponível em: https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2021/01/relatorio_fenaj_2020.pdf

JORGE, Fernando. Cale a boca jornalista: O ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa brasileira. SP: Novo Século, 2017.

JULIO BALAN, Karina. Paul Fahri: “Não estamos em guerra, mas trabalhando”. Meio & Mensagem. 22/5/2019. Disponível: em https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2019/05/22/paul-fahri-nao-estamos-em-guerra-estamos-trabalhando.html

NUZZI, Vitor. No ‘chiqueirinho’ do Alvorada, o jornalismo sofre e a democracia enfraquece. Portal RBA. 30/5/2020. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/05/chiqueirinho-alvorada-democracia/

Revista VEJA. O cerco petista à imprensa livre. Portal Veja: 15/9/2010. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/o-cerco-petista-a-imprensa-livre/