Não existe jornalismo sem fonte. Nenhuma narrativa se sustenta apenas no que pensam e sentem os repórteres. É preciso recolher dados, comparar versões, checar, conferir, estabelecer conexões e apresentar contextos. Sem isso, o que se apresenta é meramente um conjunto de dados que podem estar incorretos, incompletos, imprecisos, viciados por interesses que se distanciem das expectativas e demandas do público. Por isso e por uma série de outras razões que não é fácil fazer jornalismo. Ele exige demais de quem se dedica a essa tarefa, e os públicos não devem exigir menos dos jornalistas.
Durante décadas, o domínio da técnica e a adoção de algumas tecnologias garantiram que um grupo restrito de pessoas exercesse o jornalismo profissionalmente. Manipular câmeras sofisticadas, editar imagens, diagramar páginas, aplicar recursos sonoros, gerenciar um grande volume de dados, tudo isso parecia estar determinado às redações.
Os últimos anos mostraram que essas barreiras ficaram mais porosas à medida em que equipamentos se popularizaram, que sistemas de produção, edição e publicação se tornaram mais intuitivos e que outros contingentes passaram a gerar e a oferecer conteúdos parajornalísticos. De imediato, as redações rechaçaram os amadores, receosas de perder importantes terrenos de atuação. Mas foi impossível ignorar a riqueza e a amplitude do fenômeno. Vivemos um período de reacomodação de forças que obriga alguma convivência entre profissionais e amadores. É nessa zona de atrito que as questões mais importantes emergem, e elas não são de natureza técnica ou tecnológica, mas ética.
Um caso emblemático
No último dia 22 de outubro, circulou nas principais redes sociais uma lista “com os maiores devedores de Florianópolis”. A informação foi publicizada no Facebook por um vereador apoiado num documento da Procuradoria-Geral do Município, formulado para atender um pedido da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Vereadores. A lista contém 649 nomes de pessoas e empresas que, juntas, teriam dívidas de R$ 593 milhões. Em poucas horas, a informação se espalhou como um vírus, e ao menos dois portais locais de informação – Desacato e DeOlhonaIlha – reproduziram a lista na íntegra, atribuindo a informação ao vereador, mas não ouvindo nenhuma das partes envolvidas: prefeitura, contribuintes e empresas apontadas como devedoras. Pelo que se percebe, não houve checagem prévia dos nomes nem a tentativa de ouvir os implicados no caso.
Os dois principais jornais da cidade guardaram silêncio sobre o ocorrido e só publicaram matérias no dia seguinte, 23 de outubro. Notícias do Dia foi genérico e chegou a mencionar a empresa nominada com maior dívida, um banco, sem listar os demais. Também ouviu o procurador-geral do município, que criticou a publicação indiscriminada da lista. O Diário Catarinense também manteve o tom cauteloso, não reproduziu a lista, mas – diferente do concorrente – não mencionou qualquer pessoa ou empresa, ouvindo a prefeitura e o próprio vereador denunciante.
Antes que os principais jornais dessem o caso, diversos internautas se queixavam nas redes sociais do silêncio da mídia convencional, que supostamente mantinham protegidos os devedores ou tinham interesses em não tornar públicas tais informações. A presença de um devedor com o mesmo nome de um colunista de um dos jornais alimentou ainda mais essa hipótese. Haveria razões internas para não mexer tanto no assunto. O gabinete do vereador apressou a informar num dos comentários no Facebook de que se tratava de um homônimo. Mas perdurou a sensação de que a mídia convencional não queria tornar pública a lista. A questão, como veremos, é mais complexa do que teorias conspiratórias desse quilate.
Pingos nos is
O episódio nos permite refazer algumas questões. As informações que constam da lista da Procuradoria são de interesse público? Sim, afinal, a prefeitura vem se queixando de dificuldades financeiras e cobrar dívidas é uma forma de aliviar a pressão sobre os cofres. O cidadão comum tem direito de acessar a lista? Sim, pois é a ele que os órgãos públicos devem render contas. O vereador poderia ter publicizado a tal lista? Sim, está entre as suas atribuições tornar públicas informações que sejam de interesse de seus eleitores e dos cidadãos em geral. Claro que se pode questionar se jogar numa rede social a lista dos maiores devedores é a estratégia mais acertada, dado que o documento é bastante sucinto – contendo apenas nome e valor devido – e foi elaborado para atender a um propósito: responder à consulta de uma comissão da Câmara de Vereadores. O vazamento da lista pelo vereador pode ter interesses políticos que afetem adversários e não-aliados? Sim, é possível, já que se trata de uma ação que contraria uma série de interesses pessoais e empresariais, pois o desconhecimento, o acobertamento e o silêncio beneficiam os devedores. É disso que estamos tratando neste artigo? Não, porque estaríamos gravitando apenas no terreno das suposições…
Do ponto de vista jornalístico, as questões me parecem ser mais relevantes. A mídia local deveria dar o assunto? Sim, há interesse público neste tipo de divulgação. Os meios de comunicação poderiam reproduzir a lista? Tecnicamente, sim. Afinal, a lista foi publicada no Facebook e pode ser consultada por qualquer pessoa interessada. Os meios de comunicação poderiam confiar na lista? Sim e não, e aqui, as coisas começam a ficar mais complexas. Embora venha de um representante público (um vereador), tenha credenciais oficiais (a lista foi formulada, tem o timbre, e é assinada pela Procuradoria-Geral do Município) e o assunto seja de interesse da coletividade, é temerário demais apenas reproduzir a lista de nomes e valores. A ausência de muitas informações fragilizam o documento. A lista é atualizada? Os montantes se referem a dívidas de que impostos e taxas? A lista está completa ou ela abrange um intervalo de valores devidos? A lista aponta para dívidas consolidadas ou em discussão pelas partes? Existem outras informações relevantes que não constam do documento e poderiam determinar sua relevância no contexto político e financeiro da cidade?
Para além do documento em si, os jornalistas devem se perguntar quais são os interesses que levaram a fonte a vazar a informação para além das paredes da Câmara. E certificar-se da validade, autenticidade, integridade, atualidade e precisão daqueles dados. Até porque, tecnicamente, a lista traz DA-DOS e não informações. Essas são alguns passos além de nomes e números brutos. Informações são dados estratificados, hierarquizados, checados, colocados em perspectiva, atrelados a contextos. Jornalistas se ocupam de conferir versões e documentos justamente para não reproduzirem cegamente pontos de vista interessados e dossiês apócrifos. A lista pode ser verdadeira, o vereador-denunciante pode ter as mais republicanas intenções, mas o jornalista tem o dever ético de acreditar que haja algo além do que seus sentidos captam. Desconfiar é um mecanismo de controle de qualidade jornalística. Sempre.
Mas e as redes?
Chegam às redações documentos e denúncias de todos os tipos, todos os dias. Fazer a triagem das que realmente interessam ao público, separar as que têm consistência informativa e as que podem render boas investigações é uma tarefa dos jornalistas. Não se publica tudo o que acontece. Existem critérios para isso, de modo a não gerar denuncismo, fofocas, e uso da mídia para o atendimento de interesses isolados, distorcendo o noticiário.
Verificar as informações é essencial para distinguir veículos de comunicação comprometidos com a fidelidade e a veracidade dos dados e meros espalhadores de histórias. Checar e conferir dá trabalho e consome tempo, energia e outros recursos. Não basta copiar e colar e já ir publicando. Claro que esta diferença essencial – a verificação das informações – “atrasa” o jornalismo diante da torrente e da sanha das redes sociais. Profissionais que insistem em checar as histórias antes de publicá-las chegarão inevitavelmente depois, mas poderão vir acompanhados de credenciais mais confiáveis. Sim, credibilidade também dá trabalho e consome tempo, energia e outros recursos.
Deixar-se vencer pela pressa excessiva das redes pode fazer com que jornalistas abandonem o rigor necessário para a confirmação dos dados. Esse relaxamento não afeta apenas as etapas de produção no processo jornalístico, mas também a ética e a credibilidade de meios e profissionais. Espalhadores de boatos, republicadores e outros agentes da web não têm os mesmos compromissos éticos que jornalistas, pois pouco têm a perder. Interessa a eles que viralizem vídeos e textos, mesmo que sejam falsos ou enganosos. É fácil e rápido fazer desse modo, descuidado, sem preocupações com eventuais consequências, ignorando que se possa afetar reputações, honras e outros patrimônios sociais.
O tempo da redes sociais é distinto do tempo das redações, e essas precisarão acelerar seus procedimentos para não ficarem tão defasadas em meio à polifonia das narrativas online. O desafio é enorme porque obriga os jornalistas a não afrouxarem seus padrões éticos, exigindo deles mais agilidade e transparência. Os amadores ou franco atiradores têm as mesmas exigências? Não.
Por outro lado, os usuários das redes sociais têm suas razões para desconfiarem de eventuais silêncios e reticências da mídia tradicional em certas coberturas. Jornalistas e meios precisam resgatar essa confiança aliando preocupações atuais e compromissos históricos. Isto é, o jornalismo não pode demorar demais para informar, tem que buscar o diálogo horizontal com seus públicos, apurando com rigor e publicando com responsabilidade.
Um dos efeitos colaterais dessa busca é o excesso de zelo, com o consequente retardamento das publicações. Aprimorar as técnicas de checagem e confirmação de dados é cada vez mais urgente. Para isso, as empresas jornalísticas e seus profissionais deverão desenvolver sistemas mais ágeis de verificação, talvez até automatizando certos procedimentos. Também deverão estar mais atentos a outras formas de conexão com fontes que possam auxiliar mais nesses processos de checagem. Quanto mais demorarem, mais pressão haverá sobre os meios e os jornalistas.
A velocidade da notícia não deve ser um fetiche, publicar não é um fim em si mesmo. Oferecer a notícia mais correta, mais precisa, mais checada, mais confiável é um compromisso do qual jornalistas profissionais não podem abrir mão. A expectativa do público se apoia nisso também. Se dobrarmos os joelhos, estaremos colocando a cabeça a prêmio. As multidões que espalham as histórias de forma indiscriminada, não comprometida e muitas vezes irresponsável sempre serão mais numerosas e capilarizadas que as redações convencionais. Não dá pra ganhar delas. A questão é: chegar antes é tudo o que os jornalistas profissionais querem?
Pessoalmente, torço para que a resposta seja não. As redações precisam retomar suas autoridades na condução do noticiário que planejam produzir e oferecer. É antipático o que vou defender, mas é honesto. Às vezes, é necessário dizer não. Não à pressa, não à afobação ou à euforia. Não ao copia-e-cola. Não ao espírito de manada, que padroniza as ações e condutas. Não à mera reprodução do que chega às nossas mesas e caixas de e-mail. Não à cultura irresponsável de publicar a denúncia e depois ouvir os denunciados. Nem sempre se deve dizer sim. Mesmo que os públicos exijam rapidez e imediatismo. Demorar para dar uma notícia mais bem apurada sempre é melhor, sempre é mais prudente e seguro.
No caso do documento com os maiores devedores da cidade, espero sinceramente que os jornais investiguem a lista, vasculhando os nomes, conferindo os dados e colocando-os em contexto. Que a lista seja um ponto de partida para grandes reportagens e coberturas equilibradas, justas e corretas. Se fizerem isso, os jornais estarão prestando um serviço para os públicos. Mais do que isso: estarão reocupando um lugar de valor no processo de comunicação que ajuda o sujeito comum a compreender melhor a sua realidade, convertendo-se em cidadão.