Texto publicado originalmente pela Agência Pública.
“Mais de 90% das empresas denunciadas [por trabalho escravo] são inocentadas na Justiça criminal.” – Leandro Narloch, autor de livros da série Guia Politicamente Incorreto e colunista da Folha de S.Paulo, em artigo publicado em 18 de outubro.
O governo federal publicou, em 16 de outubro, uma norma que alterava a definição de trabalho escravo no país. Suspensa em 24 de outubro por uma liminar concedida pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber, a Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129/2017 fica inválida até que o caso seja julgado no plenário da corte. O texto alterava ainda os critérios de autuação e a forma de divulgação da chamada “lista suja”, que relaciona o nome das empresas envolvidas nesse tipo de crime.
Alguns dias antes da revogação, o colunista e jornalista Leandro Narloch publicou, no jornal Folha de S.Paulo, um artigo sobre a medida do governo Temer. Na coluna, Narloch afirma que a maioria das denúncias de trabalho escravo que aparecem nos jornais se referem a casos em que há, “no máximo, irregularidades trabalhistas”. Ele apresenta ainda um dado para demonstrar que as regras atuais de autuação de trabalho escravo dariam espaço para “interpretações fantasiosas” dos fiscais. Segundo seu texto, 90% dos casos de trabalho escravo são inocentados na esfera criminal. O dado mostraria que as ações de fiscalização são ineficazes, já que não resultam em grande número de condenações criminais. Não demorou muito para que esse número passasse a ser reproduzido por outras páginas na rede, especialmente naquelas voltadas ao agronegócio.
O Truco, projeto de checagem de fatos da Agência Pública, verificou o número apresentado por Narloch com pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), que criaram uma base de dados dos julgamentos de trabalho escravo nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todo o Brasil. A reportagem consultou ainda órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério Público Federal (MPF), além de promotores envolvidos em grupos para o combate do trabalho escravo. A conclusão foi de que a frase é exagerada – aponta para uma tendência correta, mas utiliza dados errados.
O que diz o autor da frase
Procurado pelo Truco, Narloch deu mais detalhes sobre a fonte de sua afirmação. “O fato de pouquíssimas pessoas (e não empresas, como digo no texto, já que se trata de esfera criminal) serem condenadas criminalmente é bem conhecido e divulgado pelas próprias ONGs e juristas. Como a condenação criminal exige pessoalidade (saber quem infringiu o artigo 149 do Código Penal), as condenações são raras. Nesta matéria d’O Globo, a procuradora Raquel Dodge reclama que muitos casos prescrevem”, escreveu Narloch, por e-mail, à reportagem.
O colunista citou ainda outras duas notícias em sua justificativa: uma, da Gazeta do Povo, conclui que “são poucas as decisões judiciais definitivas”, mas não traz números de sentenças condenatórias; e outra, da Repórter Brasil, em que o chefe da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil lamenta que os processos criminais muitas vezes nem chegam a ser abertos.
O jornalista diz ainda que sua fonte principal é Luiz Fabre, ex-procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo. “Eu o entrevistei em 2015, quando apurava essa história para o Guia Politicamente Incorreto da Economia Brasileira”, afirmou. Segundo Narloch, Fabre afirmou, na época, ter visto apenas “uma ou duas condenações criminais no Brasil”.
Questionado sobre o cálculo em que se baseou, Narloch disse se tratar de um levantamento próprio. “Segundo o CNJ, ocorreram 1.785 denúncias de trabalho escravo entre 1995 e 2015. É difícil achar sequer 17 condenações criminais. Ou seja, talvez eu pudesse dizer até que 99% das denúncias não resultam em condenação criminal”, justifica. Ele apurou o número de condenações por conta própria. “O dado das 17 condenações é meu. O que eu quis dizer é que, como é difícil achar até mesmo 17 ações (1% de 1.785), eu poderia ter dito que 99% das ações, e não 90%, não resultam em condenação criminal.” O colunista não esclareceu onde obteve o número de 17 condenações nem a quais instâncias o dado se refere.
O número de fiscalizações de trabalho escravo apresentado na justificativa de Narloch está no site do CNJ, em um texto publicado em março de 2017. “Entre 1995 e 2015, foram resgatados cerca de 50 mil trabalhadores em 1.785 ações de fiscalização desses grupos, de acordo com o governo Federal”, atesta o CNJ. O texto, no entanto, não traz dados de condenações criminais decorrentes dessas denúncias.
Em nota enviada ao Truco, o CNJ diz não possuir dados de condenações criminais. “A consolidação final dos números ainda está em andamento”, disse o conselho, em nota. Já o MPF afirmou que acompanha os processos nos tribunais, mas que também não tem números de condenações na esfera criminal em todas as instâncias. “Para ter dados concretos de quantas ações resultaram em condenação, seria preciso retroagir a casos já julgados. Não temos esse dado compilado. Nossos números são apenas relativos a processos em andamento.”
Comparação inadequada
Um levantamento realizado pela Câmara Criminal do MPF mostra que, em janeiro de 2017, havia 459 inquéritos criminais em andamento para apurar o crime de redução a condição análoga à escravidão. O número de inquéritos abertos é muito inferior ao número total de fiscalizações, apontado por Narloch e apurado pelo CNJ. Para os especialistas ouvidos pelo Truco, a comparação feita pelo colunista é deturpada, já que nem toda fiscalização resulta em processo penal e, por isso, o número de operações é bem maior que o número de inquéritos criminais.
Dados recém-divulgados pelo Ministério do Trabalho mostram que 75% das fiscalizações executadas este ano não resultaram em resgate de vítimas. “O resgate é uma das condições para que seja instaurado um inquérito criminal”, explica Tiago Muniz Cavalcanti, que chefia a área de trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Ana Carolina Roman, procuradora da República e representante do MPF na Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), também considera a comparação inadequada. “A frase utiliza um dado geral de fiscalização, mas nem toda fiscalização gera resgate. Não há parâmetro científico para comparar esses dois dados”, avalia. “O fato de o responsável não ser condenado criminalmente não quer dizer que a empresa não tem responsabilidade sobre o fato.”
Roman ressalta ainda que é problemático utilizar como base o número de fiscalizações ocorridas entre 1995 e 2015 porque a definição legal de trabalho escravo foi alterada em 2003. “A redação atual do artigo 149 do Código Penal, que classifica o crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, é de 2003”, explica. “De 1995 até 2003 a gente tinha uma definição diferente. O fato criminoso mudou, então o que é necessário para que haja condenação por trabalho escravo também mudou.”
Apesar de não reconhecerem os dados apresentados na afirmação de Narloch, os dois especialistas concordam que o número de sentenças condenatórias nos processos penais de trabalho escravo é relativamente baixo. Ambos creditam o fato à ineficácia da Justiça criminal brasileira. “Não é porque não temos muitos condenados pelo crime de corrupção no Brasil que não vemos corrupção aqui”, exemplifica Cavalcanti. “O sistema é falho, não apenas para o crime de trabalho escravo, mas para todos que têm autores com capacidade econômica relevante.”
Roman cita as características do processo penal para explicar o baixo número de condenações. “Embora não existam dados conclusivos, de fato os índices de condenação criminal devem ser baixos. No entanto, isso não é um problema da fiscalização, é um problema da Justiça criminal. São muitos recursos possíveis, as penas prescrevem, é difícil encontrar provas de autoria, poucos casos acabam de fato em algum tipo de sentença, então usar esse argumento como uma defesa de que a fiscalização anda mal é falacioso”, avalia a procuradora.
O único estudo recente localizado pela reportagem com dados de processos criminais relativos ao trabalho escravo foi feito pela Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA) da UFPA. A pesquisaé resultado de um convênio de cooperação assinado em 2015 entre o MPF no Pará e a universidade. O levantamento refere-se apenas às ações penais acompanhadas pelo MPF em andamento no período de janeiro de 2010 a dezembro de 2015. Foram contabilizados 560 processos penais, distribuídos nos TRFs das cinco regiões. O número de sentenças condenatórias apurado pelos pesquisadores da UFPA resulta em uma porcentagem diferente daquela apresentada por Narloch em sua coluna.
O estudo mostra que, dos 560 processos penais abertos entre 2010 e 2015, apenas 152 já haviam sido julgados em primeira instância. “Isso ocorre porque, infelizmente, a média de tempo para que a sentença seja proferida é superior a cinco anos”, atesta o relatório. Dentre as sentenças emitidas, apenas 83, ou 54,6% do total, garantia a absolvição dos réus – número bem diferente dos 90% afirmados pelo colunista. Outras 33 sentenças eram condenatórias, o que corresponde a 21% do total. Há ainda 8 sentenças mistas, que resultaram em condenação para algum réu e em absolvição para outro, e 28 sentenças sem resolução do mérito (12 por morte do réu, 5 por prescrição, 7 por litispendência, quando há duas ações que possuem as mesmas partes, a mesma causa e o mesmo pedido, e 4 por denúncia improcedente).
O Truco informou ao colunista a conclusão da checagem. Narloch enviou, por e-mail, um comentário sobre o resultado da apuração: “Ótimo trabalho da agência. A informação de que 90% dos acusados não são condenados veio de entrevistas com advogados e auditores fiscais do trabalho que fiz em 2015, apurando o tema para o livro Guia Politicamente Incorreto da Economia Brasileira. Segundo essas fontes, se pode contar nos dedos os processos em que houve condenação na esfera criminal por trabalho análogo à escravidão. A pesquisa da UFPA, principal fonte do Truco, chegou a um número diferente, mas próximo daquele que eu forneci. Segundo a pesquisa, se levarmos em conta os casos de condenação mista, apenas 22% das denúncias de trabalho escravo resultaram em condenação de todos os acusados. Continua válida, portanto, a afirmação de que há um sensacionalismo em relação ao trabalho análogo à escravidão. Muita gente está sendo acusada injustamente desse crime. São pessoas que veem a reputação de sua empresa manchada, gastam um bom dinheiro com advogados, perdem acesso ao crédito rural e no fim das contas são absolvidas na Justiça. Esses casos confirmam a necessidade de critérios mais precisos para a definição de trabalho escravo no Brasil. Fiscais e ativistas precisam deixar de confundir irregularidade trabalhista com o crime terrível de escravidão.”
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Patrícia Figueiredo é jornalista e colaboradora da Agência Pública.