Nos últimos dias, a tragédia ocorrida por conta das tempestades no litoral norte de São Paulo ocupou um papel importante na cobertura midiática brasileira. Porém, a compreensão do desastre exige reflexões que vão além do volume excepcional de chuvas registrado na região durante o Carnaval, como: a proliferação das habitações em áreas de risco e os investimentos realizados pelo poder público para prevenir desastres naturais. A ocupação de encostas de morros [1] no Brasil tem raízes em diferentes períodos de nossa história, porém o fenômeno sempre esteve relacionado à expulsão dos trabalhadores das áreas centrais e mais adequadas à habitação nas principais cidades do país. Durante o Brasil Imperial, por exemplo, pessoas escravizadas que fugiram dos horrores impostos pela escravidão se reuniram em Quilombos, muitos deles em encostas de morros. É o caso do Quilombo da Penha, que ocupou o território que hoje faz parte da Vila Cruzeiro e do Quilombo da Serra dos Pretos Forros, localizado entre Jacarepaguá e o Grande Méier, ambos no Rio de Janeiro.
Já na República Velha, durante a chamada Belle Époque (1889-1922), diversas autoridades públicas imbuídas de um discurso modernizador assumiram a tarefa de reurbanizar as principais cidades brasileiras. A grande consequência desta política foi a expulsão dos trabalhadores e da população mais pobre das regiões centrais de diversas cidades brasileiras, já que a maioria das habitações populares foram demolidas para darem lugar a praças e avenidas, o que simbolizaria, na visão destas autoridades públicas, a modernização do país. A partir dessa política iniciada pelo prefeito Pereira Passos, no Rio de Janeiro (1902), e mais tarde copiada em diversas capitais brasileiras, a especulação imobiliária também passou a aumentar o preço dos aluguéis e o custo de vida nas regiões centrais da cidade, impossibilitando a classe trabalhadora que ainda residia nestes espaços de permanecer no centro, como resultado do contexto criado pelo sistema capitalista no início do século XX (ZALUAR, 2006). Uma vez expulsa das regiões centrais que viviam, esta massa de trabalhadores teve como única alternativa a ocupação de encostas de morros e de margens de rios, regiões impróprias para a habitação humana devido aos processos naturais de cheias de rios, deslizamentos e desmoronamentos de terra, especialmente nos períodos chuvosos.
Neste momento histórico a segregação do espaço urbano tornou-se bastante evidente, pois enquanto as elites ocupavam as regiões centrais e mais adequadas para a habitação, a população mais pobre passou a ocupar os terrenos disponíveis nas encostas de morros, sendo possível observar em diversas capitais brasileiras a existência de uma “cidade legal versus uma cidade ilegal” (MARICATO, 2002). Tal fenômeno persistiu nas décadas seguintes, quando notamos um sistemático aumento na população que residia em áreas de risco. Na década de 1940, por exemplo, Adoniran Barbosa já denunciava as destruições trazidas por temporais para moradores de comunidades localizadas em encostas de morros em seu samba “Aguenta a mão, João”. A realidade retratada pelo artista passou a ser a de inúmeros trabalhadores brasileiros que haviam sido empurrados para as periferias em prol dos interesses do grande capital.
O grande crescimento de diversas cidades brasileiras ao longo do século XX não foi acompanhado de políticas de habitação efetivas, tão pouco por políticas de distribuição de renda que permitissem aos trabalhadores mais pobres ocuparem regiões adequadas à habitação humana. Merece destaque o período da Ditadura Civil Militar, na qual a desigualdade entre ricos e pobres se acentuou bastante, assim como ocorreu durante os anos de governo da extrema direita, representado por Jair Bolsonaro. Para termos uma ideia da situação brasileira, em 2022, os 20 maiores bilionários do país acumularam mais riqueza (US$ 121 bilhões) do que 128 milhões de brasileiros (60% da população) [2]. O abismo social entre ricos e pobres no Brasil, a alta cobrança de impostos e aluguéis nas regiões centrais e a falta de políticas de habitação produziram como consequência a proliferação de moradias em regiões de encostas de morros.
Vale lembrar que a grande maioria da população que foi vítima da tragédia ocorrida no litoral norte de São Paulo, durante o Carnaval de 2023, não escolheu viver em áreas de risco, mas foi empurrada para essas regiões por todas as questões históricas apontadas até aqui em nosso texto. A Vila Sahy, região mais afetada pelas chuvas em São Sebastião, por exemplo, foi constituída a partir da migração de pessoas de diversas regiões do país, que buscavam melhores condições de vida e de existência em um país marcado pela desigualdade e pela falta de oportunidades para grande parte de sua população. Porém, a proliferação de casas de veraneio das pessoas mais abastadas que construíram na região, relegou os trabalhadores comuns as áreas mais distantes da praia e mais próximas da Serra do Mar. Embora as casas de veraneio passem a maior parte do ano vazias, elas ocupam as melhores e mais seguras regiões da cidade, já que seus donos podem pagar um metro quadrado 12 vezes maior do que os moradores da Vila Sahy. Desse modo, os altos impostos cobrados pelo poder público e a especulação imobiliária praticada nas regiões mais próximas as praias expulsaram os trabalhadores comuns das regiões mais adequadas e mais seguras para a habitação humana, empurrando-os para as regiões mais íngremes e suscetíveis aos desmoronamentos e aos deslizamentos de terras.
Outro fator que deve ser considerado para entendermos os motivos que obrigaram os trabalhadores a ocuparem áreas de risco é a atuação da elite que possui imóveis de luxo, em São Sebastião, e sua influência junto ao poder público. Em entrevista ao Portal UOL (23/02/2023), o prefeito da cidade, Felipe Augusto (PSDB), revelou que
“Há dois anos, lancei um programa para a construção de 400 casas. Houve um absurdo: os moradores de média e alta renda, incluindo empresários e famosos, reuniram-se com a prefeitura simplesmente negando a construção de casas populares. Fui simplesmente bloqueado por pressão popular e cancelaram nossos programas na Caixa Econômica Federal.”
A fala do prefeito revela dois aspectos revoltantes do ponto de vista humanitário: o primeiro é o sentimento compartilhado por membros da elite de que eles constituem uma casta superior por conta do poder econômico que possuem; o segundo é a forma como o poder público se curva aos interesses desta elite. Em relação ao primeiro ponto abordado acima, a fala do prefeito evidencia que os empresários e famosos citados acreditam ser melhores do que os trabalhadores comuns e que, portanto, não devem compartilhar os mesmos lugares com estas pessoas. A única exceção para tal regra, parece ocorrer quando estes trabalhadores ocupam o mesmo espaço da elite para servirem estes empresários e famosos, já que grande parte dos moradores da Vila Sahy trabalham em casas de veraneio ou em serviços que atendem os proprietários destas casas. Já em relação ao segundo aspecto abordado acima, chama a atenção a naturalidade com que o prefeito admite que o projeto de moradias populares em áreas seguras foi simplesmente abandonado por conta das reclamações da “classe média e alta”, que defendem espaços que sejam de sua exclusividade. Também podemos perceber pela entrevista dada pelo prefeito, que tais moradores também eram bastante influentes na Caixa Econômica Federal, chegando a conseguir o cancelamento do programa habitacional junto ao órgão público. Tal fato também demonstra a inversão de papel na atuação do referido banco federal durante o governo da extrema direita, já que ao invés de financiar políticas de habitações populares, o órgão passou a representar os desejos de uma elite que não desejava compartilhar espaço com trabalhadores comuns.
Para termos uma ideia da realidade brasileira, de acordo com informações divulgadas pelo Ministério de Desenvolvimento, no Brasil, existe um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias. Além disso, segundo o Serviço Geológico do Brasil, vinculado ao Ministério de Minas e Energia, cerca de 4 milhões de pessoas moram em 13,5 mil áreas de risco espalhadas pelo país. Tais dados revelam que a tragédia ocorrida no litoral norte de São Paulo não ocorreu apenas pelo volume anormal de chuvas, mas sim por razões históricas que levaram milhões de brasileiro a ocuparem regiões impróprias para a habitação humana, suscetíveis a desmoronamentos e deslizamentos de terras. Além disso, o Relatório de Transição revelou que os orçamentos da Defesa Civil e de Combate e Prevenção de Desastres Naturais sofreu um corte de 99% no governo Bolsonaro. Segundo divulgado pelo Ministério de Planejamento e Orçamento, o projeto orçamentário enviado em 2022 pelo governo Bolsonaro previa apenas R$ 671,54 milhões para ações de prevenção e gestão de desastres para o ano de 2023. Este valor foi aumentado para R$ 1,17 bilhão após a aprovação da PEC da Transição, articulada pelo governo Lula. Mesmo assim, este orçamento é o menor dos últimos 14 anos, segundo apontou levantamento realizado pela Associação Contas Abertas.
São Sebastião, por exemplo, passou os últimos três anos sem receber nenhuma verba dos programas federais de prevenção e recuperação de desastres. Dos seis municípios que decretaram estado de emergência no litoral norte (Bertioga, Caraguatatuba, Ilhabela, Guarujá, São Sebastião e Ubatuba), apenas dois receberam recursos federais de prevenção e recuperação de desastres em 2022, à saber: Guarujá e Ubatuba. A falta desta verba afetou diretamente a capacidade dos municípios de realizarem ações de prevenção e de oferecer amparo as famílias afetadas por catástrofes como as ocorrida durante as chuvas dos últimos dias, já que é esse dinheiro que deveria ser destinado a obras de infraestrutura e estudos de áreas de risco para prevenir desastres naturais, como ocorreram no litoral norte de São Paulo.
Desse modo, podemos perceber que as condições históricas que levaram milhões de brasileiros a ocuparem áreas impróprias para a habitação humana foram ainda mais agravadas pela negligência do governo da extrema direita que retirou recursos de áreas importantes para a prevenção de catástrofes naturais que colocam em risco a vida da população que habita áreas de risco por todo o Brasil. Cabe a sociedade brasileira e ao poder público, em meio a comoção gerada pela tragédia ocorrida no litoral norte de São Paulo, formularem propostas efetivas para o enfrentamento desta triste realidade. Milhões de brasileiros, espalhados por todo o país, ainda se encontram vulneráveis a desastres naturais neste momento, já que foram empurrados para áreas de risco pela especulação imobiliária e pela atuação do poder público que, historicamente, expulsou esta população das regiões centrais e das áreas mais seguras para a habitação humana, em diversas cidades brasileiras. Para superarmos tal realidade precisamos repensar o espaço e a ocupação das cidades brasileiras, que segregam ricos e pobres, relegando a estes últimos as áreas mais inseguras de seus territórios. Além disso, é preciso enfrentar de maneira efetiva o déficit habitacional brasileiro, por meio de políticas públicas de habitação e de distribuição de renda para evitarmos que a cada período chuvoso vidas de brasileiros e brasileiras sejam ceifadas por tragédias naturais, como as ocorridas no litoral norte de São Paulo.
NOTAS
[1] “Não reclama, contra o temporal
Que derrubou seu barracão
Não reclama, Aguenta a Mão, João
Com o Cibide aconteceu coisa pior […]”
[2] Reportagem
[3] Reportagem
[4] Reportagem
REFERÊNCIAS
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2002. Disponível em aqui. Acesso em: 01 fev. 16.
ZALUAR, Alba. Um século de Favela. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.
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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo