Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A amnésia como herança cultural

Quando a comunicação social assimila e foca sua atuação na prestação de serviços, de informações à comunidade, ela pouco difere, em função, dos processos educacionais, especialmente daqueles que são voltados ao resgate cultural e à preservação da memória de um povo. Ela torna-se uma ferramenta poderosa em favor dessa intenção.

Mas quando constatamos que outras abordagens da comunicação se multiplicam por todos os cantos do nosso território e que, devido a esta sua habilidade de se espalhar geograficamente, tornam-se os únicos ‘documentos’ deixados para as gerações futuras, capazes de contar a história das pessoas, das comunidades, percebemos o quanto há de arriscado e elitista nesse processo legatório.

Documentar envolve recursos. Quem possui estruturas capazes de elaborar e de contar diariamente as histórias sobre o nosso tempo são os veículos de comunicação, com muito mais eficácia que os projetos educacionais voltados para a preservação da memória. E se estes veículos não se assumirem enquanto prestadores de serviços à comunidade e não se perceberem como parceiros da educação, amparados em estruturas de funcionamento que são voltadas apenas para interesses particulares e valores de mercado, o resultado tende a ser catastrófico. A comunicação tanto pode semear informação e identidade quanto apatia, imposição de costumes e indiferença. Infelizmente, na maioria dos casos e no caso da mídia grande em especial, ela parece ter se especializado nestas últimas sensações.

Tatuagens na mente

Os relatos mais antigos da história da Humanidade, capítulos ditados por vozes vencedoras, dão conta de que, desde que o mundo é mundo, povos e nações (antes mesmo de existir esse conceito) foram subjugados ante a destruição de seus símbolos, de sua cultura, de seu passado, de sua língua; aquele que perdia a guerra, perdia, junto com ela, o direito de ser pessoa e era visto como uma coisa à serviço do poder opressor. Poucos eram os exemplos de consideração ou de simples curiosidade pela cultura alheia por parte dos vencedores dos conflitos. Vigorava sua intolerância e o desprezo por qualquer ícone de valorização da identidade dos povos vencidos em combate. A própria historiografia humana é dividida em períodos bélicos.

Hoje, apesar de todo avanço nas relações sociais e diplomáticas, os extermínios culturais continuam e se diversificam em suas forma e habilidade de aniquilar histórias e identidades, embora sejam, atualmente, mais velados, mais dissimulados e, até mesmo, disfarçados, por exemplo, do que convencionamos chamar de publicidade.

No município de Pinhão, região centro-oeste do estado do Paraná, a história oficial contada nas salas de aula destoa do passado recente, vivido na carne por centenas de famílias de posseiros. Também é indiferente ao que foi presenciado pela população urbana adulta da localidade. Na versão institucional e nos anúncios em espaços nobres, veiculados dentro e fora da região, a indústria madeireira João José Zattar, responsável por um extrativismo descontrolado, passa um apagador sobre o passado local e reconta essa história a partir unicamente da face dela que mais lhe agrada e que mais lhe trará retornos financeiros. Grilagens, mortes, incêndios criminosos, perseguições, embora sejam acontecimentos tatuados na mente e nos corpos das pessoas que ficaram para contar esses episódios, são registros omitidos na nova versão publicitária dos fatos – resume-se, aqui, à ‘publicidade’ todas as formas usadas pela empresa para maquiar o passado de sua atuação no Centro-Sul paranaense e imprimir a si mesma uma nova imagem institucional… a única imagem que está sendo deixada para o futuro.

Passado afundando

O que as crianças e os adultos aprendem nas escolas de Pinhão, com raríssimas exceções, em nada explica sua condição de vida e a baixa velocidade no ritmo do desenvolvimento socioeconômico local, com seu IDH-M de 0,713, segundo dados da Pnud-2000, o que coloca o indicador municipal abaixo da média nacional (0,766) e da média paranaense (0,787). A própria quantidade de araucárias, árvore cujo fruto justificou no passado o nome dado ao município, revela a face mais cruel do nosso suicida modelo de sociedade, financiado por quem consegue maior espaço nos noticiários e nos veículos usados para a formação de opinião.

É por isso que, em pouco tempo, todos os questionamentos a essa conduta excludente, frutos da resistência das pessoas que viveram um período ainda mal contado da história, estarão repousando sob o esquecimento e o peso de uma nova versão dos fatos, redigida, na forma de propaganda e de notícias, pelo punho de quem vem se beneficiando dela até hoje.

Na região serrana de Santa Catarina, na fronteira com o Rio Grande do Sul, mais especificamente no município de Anita Garibaldi, a situação não é diferente do que acontece no Paraná. Há semelhanças, também, entre o padrão socioeconômico das duas regiões. Anita tem o 40º pior IDH-M (0,750) entre os 293 municípios de Santa Catarina, ficando abaixo das médias nacional (0,766) e catarinense (0,822). Lá, vive-se a iminência de se afundar um passado e silenciar séculos de história.

Gerações cúmplices

Um grande lago artificial formado por uma barragem sobre o Rio Pelotas, um dos afluentes da Bacia do Uruguai, ameaça inundar áreas de preservação da fauna e da flora, além de sítios arqueológicos, importantes para a compreensão dos povos que habitaram a Região Sul do Brasil no período pré-colonial.

Em Anita Garibaldi, a truculência empresarial impede a comunidade de saber ao menos o paradeiro das peças arqueológicas encontradas na área do canteiro de obras da usina hidrelétrica e que teriam sido salvas da inundação pelas exigências do próprio plano de instalação da barragem. Com muito custo, pessoas da comunidade vêm desenvolvendo uma investigação para saber o paradeiro destes achados arqueológicos e estabelecer uma relação com os cientistas que pesquisam as peças encontradas. O objetivo dessa busca é o da simples compreensão do passado de sua terra e, a partir dele, nas escolas locais, entender e valorizar as identidades culturais da população serrana de Santa Catarina. A última pista encontrada aponta para a Universidade de Caxias do Sul, pista essa que representantes da comunidade interessada estão, nesse momento, buscando seguir para fazer contatos com docentes locais e chegar às peças arqueológicas e às pesquisas em torno delas.

No ano passado, a escola da comunidade rural da Vila Petry, dirigida pela professora do ensino fundamental Romilda Macedo, organizou uma programação intensa para comemorar o seu aniversário. As crianças pesquisaram entre os idosos da família e da vizinhança um pouco da história dos moradores mais antigos da comunidade. Na semana da comemoração, elas puderam ouvir, dos primeiros alunos da instituição (sentadinhos em carteiras escolares, dentro de suas antigas salas de aula), as mais diversas narrativas sobre as dificuldades que eles tiveram de vencer diariamente para ir à escola, as mais remotas lembranças, as já quase esquecidas canções e brincadeiras e, até mesmo, as ‘artes’ e punições aplicadas, entre outras curiosidades. Saber que os ‘nonos e nonas’ freqüentaram sua escola imprimiu nas crianças uma certa cumplicidade e estabeleceu alguns elos que faltavam nessa relação entre as gerações.

O vazio é cheio

O sonho da professora Romilda vai além desse exercício. Ela quer incentivar, cada vez mais, a pesquisa cultural entre as crianças, para que, um dia, possa vir a ministrar uma aula, dizendo aos estudantes, pra início de conversa e com toda a propriedade, que a sua história de povo é anterior à chegada das companhias colonizadoras na região, à vinda dos primeiros imigrantes e das empresas madeireiras que ‘pelaram’ os morros do relevo local para o estabelecimento da cidade e para fincar as bases dos processos de acumulação de renda locais.

Óbvio que as crianças da Vila Petry de Anita Garibaldi aprenderam com seus professores que antes das primeiras ‘colônias’ (parcelas de 20 a 25 hectares) se estabelecerem na região, havia diferentes povos indígenas habitando o espaço brasileiro. Mas não encontravam os fundamentos de que isso tivesse acontecido ali, na sua comunidade, nem na memória dos mais antigos e muito menos na literatura. O pouco relato que se tem criou a falsa impressão de que aquela região servisse apenas de ‘acampamento’ aos povos nômades que transitavam por ela à procura de alimentos.

No município vizinho, Campos Novos, onde está instalada outra represa, pelo consórcio de empresas Enercan, também foram encontrados e investigados diversos sítios arqueológicos, durante as escavações no canteiro de obras da usina. Estes achados estão registrados no cadastro oficial de sítios arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e dão conta de utensílios e registros de habitações de caráter permanente, que derrubam a tese do vazio local.

O valor da informação

O andamento das obras da UHE Barra Grande pela Baesa, em Anita Garibaldi, já passa de 70% e a recepcionista da Casa Caminhos da Serra, uma espécie de museu da barragem na cidade, informou que os tais achados, ainda perdidos para a comunidade, foram recolhidos na região que logo será inundada pelo lago da usina. A população, que não foi consultada em nenhuma etapa dos processos, da instalação da obra à destinação dos objetos encontrados naquela região, amarga a frustração de apenas esperar e esperar por alguma informação que ponha fim ao esquecimento e à escuridão em que estão mergulhadas as vidas, feitos e hábitos dos seus antepassados. Dar vida a essas lembranças tem a ver com valorizar e resgatar a identidade dos povos.

Nas comunidades do Brasil Rural, o significado maior dessa valorização está em respeitar a história local e, conseqüentemente, promover a auto-estima dessa população, que passa a se entender, se enxergar em todas as matizes da sua composição. No Brasil, o preconceito com os povos indígenas tem raízes profundas na negação de nosso passado e na falta de compreensão do significado e da amplitude dos conhecimentos legados desses povos, especialmente no Sul, onde foi mais intensa e diversificada a colonização européia. Ainda hoje, o país inteiro é um mapa de conflitos étnicos, motivados pela posse da terra.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), há tempos, percebeu o valor da informação e da comunicação social por excelência na apropriação de conhecimentos, no registro do presente momento de nossa história e na autodeterminação de um povo. Porque o MST foi durante muito tempo vítima de um processo de ‘satanização’ pela mídia.

Onde você estava?

Nas escolas dos assentamentos e acampamentos ou nas atividades formativas, o MST incentiva a análise crítica das notícias e dos textos veiculados na imprensa, além de adotar publicações didáticas mais voltadas para a realidade vivida pelos trabalhadores rurais com ou sem terra. Porque as crianças dos assentamentos de reforma agrária e dos acampamentos do MST, bem como as de quaisquer famílias de agricultores, têm dificuldade de se enxergar nos livros didáticos adotados pelas escolas tradicionais. Na maior parte das vezes, eles são enfocados no reducionismo da vida urbana. A cidadania e a garantia de direitos estão ligadas a essa visibilidade. Não se ver e não se entender nos espelhos de uma sociedade é um convite para o ‘não ser’. Na era da imposição da mídia, o pensamento cartesiano foi ainda mais afunilado e sobrou a filosofia do ‘apenas se posso documentar, existo’.

Agricultores familiares ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), na Região Sul, também perseguem sua identidade na inter-relação entre as políticas de educação e comunicação social. Por meio da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul/CUT), eles mantiveram por vários anos um projeto de escolarização de jovens e adultos, chamado de Terra Solidária. O Terra Solidária, até hoje, está presente em vários municípios, antigos parceiros do projeto, como proposta tanto de metodologia quanto de política pública de educação voltada para a realidade rural.

Uma das primeiras dinâmicas adotadas pelos educadores do Terra foi a da ‘Linha do Tempo’, pela qual todos se localizavam num determinado momento, tendo por base os acontecimentos narrados pela literatura histórica oficial. O exercício consistia em saber o que as pessoas, as famílias e as comunidades viviam, pelas informações que se tem a respeito, ao mesmo tempo em que se desdobravam alguns dos principais fatos históricos documentados. Por exemplo: onde você estava, o que fazia e quais deveriam ser suas preocupações e objetivos enquanto ruíam as Torres Gêmeas do World Trade Center? Essa foi fácil. E o que você imagina que acontecia com membros de sua família ou na sua comunidade durante o regime militar? A Segunda Guerra Mundial? A Guerra das Malvinas? O Plano Collor? O movimento pelas Diretas Já? A Guerra do Golfo, famosa pelas imagens da CNN em modo ‘noturno’ de bombas e disparos da artilharia anti-aérea sobre Bagdá, que pareciam telas de um videogame? A posse do Lula? A chegada do homem à Lua? A viagem do Sputnik? A chegada de Colombo à América? No tempo dos samurais? Dos faraós? Na era dos dinossauros?

Passado transparente

Mesmo que não tenhamos estas respostas na ponta da língua, a idéia proposta pelo exercício era a de tentar fazer com que as pessoas se enxergassem como parte dessa história oficial, que lhes parece tão alheia nos livros didáticos. Também, deixando de lado os momentos mais distantes da linha do tempo, o de valorizar e trazer à tona as histórias de cada um… a sua própria história de vida enquanto um conjunto de acontecimentos importantes para a Humanidade.

Vem do Rio Grande do Sul a preocupação com a devida apropriação pelas comunidades do conhecimento gerado pelos estudos de história e da arqueologia, a partir do uso adequado das ferramentas da comunicação social e das ciências da informação em geral.

A pesquisadora Lizete Dias de Oliveira, doutora em Arqueologia pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), é autora de um projeto de pesquisa que prevê a criação, até o fim de 2006, do Centro de Informação e de Memória da Arqueologia do Rio Grande do Sul. Com ele, qualquer pessoa poderá acessar pela internet e pesquisar em biblioteca virtual, por exemplo, o levantamento de todos os projetos arqueológicos realizados em território gaúcho, consultar o cadastro atualizado de todas as peças e sítios, com descrições detalhadas, poderá ler entrevistas (história oral) a respeito e conhecer as instituições participantes, bem como o pessoal envolvido com estas pesquisas. O Centro não realizará as pesquisas arqueológicas em si, mas tornará transparente para a comunidade as informações a respeito do patrimônio histórico e cultural do Rio Grande do Sul. E será alimentado com dados do andamento das pesquisas atuais.

Luzes, caras e vozes

Atenta ao problema da falta de respeito com o patrimônio das comunidades, a pesquisadora Lizete acredita que a criação de um Centro de Informação e de Memória da Arqueologia do Rio Grande do Sul vá oferecer outras possibilidades de explicação sobre a história gaúcha , a partir de outros pontos de vista em relação ao que se tem hoje. Ela lembra que a bibliografia tradicional considera o início da história do estado somente a partir da fundação do forte Jesus-Maria-José (atual cidade de Rio Grande) pela Coroa Portuguesa, esquecendo os 300 anos da dominação pela Coroa Espanhola e silenciando outros cerca de 12 mil anos – data do mais antigo vestígio da presença humana no território sul-riograndense -, dentre os quais há os 1.500 anos da dominação guarani e a instituição das fronteiras indígenas por guaranis, charruas, minuanos e tupis, entre outras nações.

A preocupação da arqueóloga gaúcha não está só em contar uma história esquecida, mas em divulgar amplamente, de forma gratuita e acessível a todos, as informações geradas pelas pesquisas arqueológicas no estado. Isto, sim, irá se refletir no resgate da identidade cultural desse povo.

O Centro de Informação e Memória da Arqueologia do Rio Grande do Sul, na contramão da maioria dos processos educacionais vigentes e da bibliografia tradicional, bem como do papel atualmente desempenhado pela mídia grande, contribuirá para romper o silêncio imposto por milhares de anos aos povos vencidos e às culturas marginalizadas. Dar luzes, caras e vozes novas ao nosso passado é devolver à diversidade de matizes e tonalidades culturais da formação do nosso povo a tão merecida e constantemente roubada dignidade. É colocar um espelho diante da sociedade brasileira, que, contrariando à lógica da ciência óptica, não mostre nenhuma imagem invertida ou até distorcida da nossa gente. Apenas o que é real e a beleza existente em cada um desses traços e em cada uma dessas diferenças.

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Jornalista de Curitiba