Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A era do jornalismo criacionista

A cobertura da morte do papa João Paulo 2º e do conclave me trouxe alguns questionamentos que vão um pouco além da qualidade da abordagem jornalística do caso. A questão agora é entender como o profissional de imprensa vê e compreende o mundo e sua imensa trama social, particularmente quando o assunto toca em valores pessoais e íntimos.

No exercício do jornalismo voltado à ciência, seja como repórter ou professor universitário, tenho me deparado com alguns fatos preocupantes – seja pelo fundamentalismo religioso que cerca grande parte dos estudantes, seja pela perpetuação de uma ignorância científica cômoda que molda o tal ‘senso comum’.

O meio estudantil universitário deixou há muito de ser sublimado pela intelectualidade. O que se tem, na maioria das vezes, é uma avassaladora mediocridade e a resistência em se manter alienado de qualquer processo que afronte suas verdades existenciais. E é deste caldo de cultura, desta sopa primordial, que brotará o novo jornalista.

Fiz parte da equipe de professores montada pela colega Fabíola Oliveira, na Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em 2002. A intenção era constituirmos o primeiro curso de jornalismo, em nível mundial, com orientação pedagógica voltada ao jornalismo científico. A experiência foi única em todos os sentidos. Principalmente quando um bando de jornalistas já bem ‘escolados’ na profissão se deparou com situações nunca antes imaginadas.

Meu primeiro contato com os ‘jornalistas criacionistas’ foi algo que beirou o traumático. A disciplina era Ética Jornalística, para a turma do quarto ano. Preparei duas aulas depois de vasculhar as mais avançadas pesquisas sobre a criação da vida e a saturação do planeta. Tudo alinhavado com a Teoria do Caos e os mais recentes estudos evolucionistas.

Minha preocupação era mostrar aos estudantes que as convicções pessoais e os preconceitos devem ser postos de lado na produção de uma reportagem de cunho científico. Naquele momento, com todo ‘professor-foca’, acreditava que minhas fontes altamente qualificadas, como universidades norte-americanas e européias, além das pesquisas da Nasa e da Esa, me garantiriam.

Como sabia que a provocação traria efeitos, tive o cuidado de citar os órgãos envolvidos no assunto e que nada dali fora tirado dos episódios de Jornada nas Estrelas. Já na introdução, vi alguns futuros jornalistas torcerem o nariz. Conforme eu progredia no tema, outros deixavam a classe. Um deles não se conteve e, antes de fechar a porta, me chamou de ‘ateu’ e ‘herege’. A audiência final foi feita por uns 30% da classe.

Convicções inabaláveis

Na segunda aula, na outra semana, quando falei das mudanças planetárias por ação antrópica e da exploração do universo, como o Projeto Marte, o desastre foi total. Fiquei com alguns ‘gatos pingados’ na sala e reconhecidamente como ateu e outros rótulos pouco enaltecedores do meu esforço professoral.

Como sou uma mistura de italiano com espanhol, com a teimosia encalacrada em minha genética, resolvi continuar com essas aulas em pauta e colocá-las na programação de outras turmas nas quais eu ensinava. Insisti na proposta inicial e voltei à carga com minhas histórias de eventos aleatórios, viagens interplanetárias etc.

Novamente a debandada foi geral e os xingamentos ficaram mais acentuados. Uma das estudantes mais aplicadas do 3º ano, que vinha à aula sempre com uma camiseta com a estampa de Nossa Senhora de Fátima, me surpreendeu com a agressividade. Antes de sair, virou-se para mim e mandou um ‘anticristo’. Logo eu, que tenho ligações familiares íntimas com o Vaticano.

Na hora, me senti como um herege no tribunal da Inquisição. A mocinha, furiosa, vomitou toda sua indignação: ‘Você quer destruir a nossa fé, mas não vai conseguir. Você pode descender do macaco, eu não’. Neste instante fiz um aparte e expliquei com uma certa ironia: ‘Não é do macaco, mas de um ancestral comum’.

Com ares de quem acabou por vencer o demônio encarnado, ela saiu batendo o pé e acompanhada por quase todos os colegas, numa marcha pela manutenção da ignorância, do cinismo e misticismo. Numa demonstração que o obscurantismo faz parte da realidade de muitos jovens universitários. Depois fiquei sabendo que a maioria dos contrariados com os rumos da ciência moderna era de movimentos pentecostais, tanto evangélicos e com católicos.

As minhas aulas incomodavam não pela ausência da informação científica, mas por confrontar diretamente a idéia de um Deus criador de tudo, motivado apenas por sua divina vontade. Para os fundamentalistas adeptos do criacionismo, essa é uma verdade inquestionável. A evolução é um embuste do diabo, algo criado para perverter a santidade do homem.

Agora me assusta saber que boa parte desse pessoal está no mercado de trabalho, provavelmente cumprindo suas pautas diariamente e refutando qualquer novo questionamento sobre suas convicções. Evidente que haverá reflexos disso na produção do material jornalístico. Temo que estejamos vendo o nascer da era do jornalismo criacionista, e que uma nova e disfarçada Inquisição esteja em curso.

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Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico, descendente direto do papa Alexandre VIII (Pietro Ubaldi Ottoboni) e do cardeal Pietro Ottoboni Sobrinho