Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A ética em comum

Já escrevi várias vezes para este Observatório, muitas delas criticando aspectos da medicina e da saúde em geral, com enfoque voltado para a mídia, pois esse é o cerne do sítio.

Contudo, a reprodução da matéria ‘Medicina faz mal à saúde’ [remissão abaixo], da Superinteressante, que já conhecia, me assustou: eu, que me julgo bem pouco corporativista, talvez até rigoroso demais com meus colegas de profissão e comigo mesmo, não consigo acreditar que, além da revista da Abril, o próprio Observatório tenha dado guarida a esse texto, embora respeitando a liberdade de expressão, por óbvio.

Mr Coleman é famoso por suas polêmicas posições contra a medicina, sendo médico: assim ele vende seus livros. Tais coisas são de vendagem boa, seja na forma de livros ou demais mídias, correto? Ele faz afirmações baseadas em trabalhos não-disponíveis para pesquisa (que tive a paciência de procurar), mostrando que em Israel e outros lugares, quando os médicos entram em greve, a taxa de mortalidade cai.

Ora, por Deus! Caso isso fosse verdade absoluta já se teria notado tudo há um bom tempo. E mais: caso existam tais trabalhos, a metodologia estatística, por mim desconhecida por não ter acesso a eles, deve ter erros escabrosos, caminhando pelo viés desejado pelo autor.

Cobertura em Paris

Não desdenho o fato de existirem maus médicos; ocorrem erros médicos, com toda a certeza. A indústria farmacêutica tenta ao máximo influir na concepção dos profissionais da medicina, mas a grande maioria prefere saber qual a verdade nos trabalhos da medicina baseada em evidências, que usa técnicas estatísticas sofisticadas para derrubar mitos, mostrar novidades e assim por diante. O propagandista de laboratório entrega a papelada que lhe mandam e decora um texto para o médico: é o seu emprego. Quando eles chegam a meu consultório trato como um trabalhador qualquer, com cortesia, e depois jogo o material fora. Isso é ser ético e procurar as fontes corretas de informação, hoje tão à mão com o advento da internet, por exemplo.

Mas parece que existe um certo prazer em falar mal dos médicos, sonhar com uma ‘máfia de branco’ e outros pejorativos. Gostaria de ver Mr Coleman tendo um infarto do miocárdio ou acidente vascular cerebral isquêmico recusando-se a tomar uma prosaica aspirina, que poderia lhe salvar a vida…

Talvez seja por isso que ele tenha uma cobertura em Paris, e eu não. Medicina não dá mais tanto dinheiro como há uns 60 anos – o que deve haver é o profissional médico sério, atualizado, íntegro e ético. Ético como os profissionais da imprensa devem ser.

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo