Abordagens que até recentemente estavam restritas ao universo da ficção, ou à órbita de um jornalismo inconseqüente em função de especulações desprovidas de sustentação teórica/experimental, agora desfrutam de espaço nas primeiras páginas e tratamento tão objetivo quanto a variação da taxa de câmbio ou a oscilação do mercado acionário.
É o caso da busca de vida fora da Terra, conhecida no jargão científico como exobiologia ou astrobiologia, a que a edição de segunda-feira (20/2, pág. A.11) da Folha de S. Paulo dedica uma página inteira.
O que explica, em curto espaço de tempo, fundamentalmente ao longo das duas últimas décadas, uma mudança tão radical nesses enfoques? A resposta certamente inclui modificações profundas que ocorreram tanto na investigação científica quanto no jornalismo no passado recente.
Do lado da abordagem científica, a idéia de que a vida fora da Terra possa ser uma realidade consistente começou a tomar forma pelo que historiadores da ciência chamam de ‘serendipidade’, ou seja, a pura coincidência, ainda que esta questão seja mais ampla e complexa que uma definição rápida possa sugerir.
A tal serendipidade manifestou-se em 1983, quando o satélite europeu Iras, operando no infravermelho, foi colocado em órbita. Para a calibragem do instrumento já em órbita da Terra, os técnicos fizeram com que ele fosse apontado para a estrela Vega (alfa da constelação de Lira, a 26 anos-luz da Terra).
Estrela muito branca e a mais brilhante dessa constelação que é uma das mais belas do inverno do hemisfério sul, Vega revelou um sistema planetário embrionário em seu entorno, surpreendendo os astrônomos. Vega não havia sido a primeira estrela a mostrar um feto planetário, para usar uma expressão que de fato sugere estruturas desse tipo na formação de planetas e estrelas. Beta Pictoris, a segunda estrela mais brilhante da constelação do Pintor, também no hemisfério celeste sul, já havia revelado uma formação semelhante aos astrônomos que a investigaram com telescópios de superfície.
Marcas da falibilidade
Essas duas observações contribuíram para fazer ruir uma ponte teórica construída no século passado pelo físico-matemático e astrônomo inglês James Jeans (1877-1946), conhecido especialmente por suas contribuições em cosmogonia – a origem do sistema solar.
Em resumo, a aposta que Jeans havia feito – e que implicou a desqualificação da busca de vida fora da Terra – é de que o nosso sistema solar nasceu de um acidente fortuito que dificilmente se repetiria em torno de outras estrelas. Ou seja, Jeans sustentou que uma estrela errante, passando pelas proximidades do Sol, numa interação gravitacional, arrancou (por efeito-maré) uma porção do Sol e este material deu origem ao colar planetário. Esta idéia teve boa aceitação até meados dos anos 1950, para citar uma data de referência.
Em meados da década seguinte, os turbulentos anos 1960 que viram nascer Beatles, Pink Floyd e Rollings Stones entre as estrelas mais luminosas da ruidosa constelação do rock, um radioastrônomo solitário, o norte-americano Frank Drake, enviou e tentou receber sinais em rádio de regiões do céu que ele acreditava poder abrigar a vida. Talvez valha a pena acrescentar que Drake, ainda atuante, fez esse trabalho quase em segredo, por temer ser ridicularizado por seus próprios colegas.
Essa postura preventiva de Drake, nada original, certamente é sugestiva no sentido de revelar que também o universo da ciência está minado por preconceitos e restrições que nada têm a ver com a racionalidade, criatividade e mesmo a intuição que devem permear investigações científicas. E isto porque a ciência não é um empreendimento supra-humano, como às vezes se ouve dizer, mesmo no meio acadêmico. A ciência é fundamentalmente humana e traz as marcas da genialidade e falibilidade humanas.
Perguntas, perguntas
Se as descobertas em Beta Pictoris e Vega deram maior consistência à abordagem de Frank Drake, o que é verdade, não foram convincentes o bastante para tornar a exobiologia um assunto de respeitabilidade científica. Foi então que outros acontecimentos se deram na direção que sugerem um dia podermos receber ao menos um ‘alô, tem alguém aí?’ das profundezas do céu, mesmo que nosso misterioso interlocutor pertença a uma raça já desaparecida nos abismos do espaço-tempo.
Nessa segunda fase, radiotelescópios e telescópios ópticos, além de instrumentos no infravermelho, como o próprio Iras, trabalharam de forma combinada para detectar um número crescente de planetas extra-solares, que neste momento já superam uma centena de exemplares.
Os planetas extra-solares têm sido, caracteristicamente, mundos muito maiores que a Terra e por isso mesmo eventuais fontes de vida muito distintas das que conhecemos aqui, se, de fato, abrigarem vida. A corpo da Terra, por exemplo, condiciona nossos próprios corpos. É por um diálogo gravitacional com o corpo da Terra que temos a estrutura óssea que temos. Se a Terra tivesse uma gravidade muito mais intensa, nossos ossos seriam muito mais sólidos (e certamente mais espessos) e portanto seríamos um pouco diferentes do que somos.
O encontro de planetas gigantes várias vezes maiores que Júpiter, o gigante do Sistema Solar, não é coincidência e portanto não significa que a maioria dos mundos em torno de outras estrelas seja enorme. Mundos gigantes são mais fáceis de serem localizados pelo efeito bambolê que exercem sobre suas estrelas-mães. O desafio, neste momento, é encontrar mundos do porte da Terra e para isso toda uma geração de novos telescópios está sendo desenvolvida.
Por trás dessa busca determinada entre as estrelas há uma firme determinação humana de tentar responder algumas questões fundamentais: estamos sozinhos no Universo? Outras eventuais civilizações também acreditam num ser criador como ocorre com as diversas religiões das diferentes culturas humanas? O que eventuais outras inteligências podem contar a seu respeito e sobre nós próprios que desconhecemos inteiramente? Quem somos nós e para onde vamos? Há um futuro e um passado, ou tudo não passa de um esforço que fazemos para nos localizarmos de forma inteligível num quebra-cabeça de dimensões cósmicas?
Frases de efeito
Para que descobertas e questionamentos dessa natureza pudessem chegar com a qualidade que chegam atualmente a um número crescente de interessados, além do desenvolvimento científico tecnológico foi necessário a consolidação de um outro padrão de jornalismo científico, de que o texto de Reinaldo Lopes na Folha de S.Paulo (20/2) é uma evidência.
No espaço entre esses dois blocos de produção/divulgação de conhecimento, o desenvolvimento técnico-científico e o aprimoramento do jornalismo, ao menos no Brasil, foi de fundamental importância o trabalho realizado por um jovem pesquisador na área da história da ciência, Eduardo Dorneles Barcelos (1962-2003).
Até a defesa de seu mestrado, no início da década passada, exobiologia no Brasil costumava arrepiar os cabelos da nuca de boa parte dos astrônomos. Quando Dorneles escreveu e defendeu seu doutorado, no final da década de 1990, a situação já havia se transformado e ele dera uma contribuição fundamental para essa guinada.
Sua monografia de mestrado (História da Pesquisa de Vida e Inteligência Extraterrestre), de 1991, ampliada e aprofundada na tese de doutorado, deu origem ao livro Telegramas para Marte – busca científica de vida e inteligência extraterrestres (Jorge Zahar Editor, 2001), que, no Brasil, mudou a concepção de busca de vida alienígena. De banalidade com aparência inconseqüente, transformou-se em tema de indiscutível consistência, beleza e ruptura com uma mediocridade conservada em silêncio quase imposto. O próprio Barcelos escreveu artigos, comentários e resenhas em jornais e revistas ajudando, como jornalista eventual, a consolidar uma nova ordem em relação ao tema que explorava.
Na década passada, o jornalismo científico no Brasil já havia adquirido a qualidade que lamentavelmente ainda não chegou a outros países latino-americanos, em função de circunstâncias que devem ser abordadas numa outra oportunidade mas, que, de imediato se pode dizer, não teve a mínima contribuição das empresas jornalísticas, com ligeira exceção para a Folha de S.Paulo.
Dessa interação de circunstâncias emergiu uma outra realidade que neste momento atrai um número crescente de interessados: o jornalismo científico, ou jornalismo de ciência. Como era de se esperar, o jornalismo científico atraiu, especialmente nas escolas de jornalismo, mas não apenas lá, levas de oportunistas pouco equipados em termos intelectuais para dar conta das exigências. O Centro J. Reis de jornalismo científico, na ECA-USP, é apenas um exemplo dessas ilhas de mediocridade num oceano de necessidades.
Ainda assim, no conjunto, o saldo é positivo. Leitores de todas as formações e de diferentes idades encontram na leitura dos jornais artigos e reportagens de excelente qualidade sobre um tema que há apenas duas décadas era tabu. Gente inteligente chegou a dizer, em mais de uma oportunidade, que vida fora da Terra era assunto de interesse menor.
Como se fosse possível avaliar, por números, gráficos ou frases de efeito, a verdadeira dimensão de um fenômeno perturbador, de definição controvertida, a que chamamos vida.