A divulgação científica pela imprensa adquire a relevância da verdade e da precisão quando as informações se referem à saúde, que influenciam de maneira direta e decisiva a vida do leitor, ouvinte ou telespectador.
Em 14 de maio de 2004 recebemos e-mail do Grupo Otimismo, ONG de apoio a portadores de hepatite C, alertando sobre a chamada ‘Hepatite C não tem cura’ do programa Domingo Espetacular, da TV Record, que seria apresentado no dia 16 de maio, das 18h às 20h, e informando que entrou ‘em contato com a produção do programa’ para alertar sobre ‘o erro da chamada e provavelmente da abordagem programa’.
No dia 17 de maio recebemos outro e-mail do Grupo Otimismo com o assunto ‘Hepatite C – Reportagem do Domingo Espetacular‘, informando:
‘Após o envio de e-mails e fax e de um telefonema de mais de meia hora com o produtor-executivo do programa Domingo Espetacular, da Rede Record, conseguimos que a emissora atendesse nosso apelo e alterasse o texto do programa ontem exibido’.
Foi também divulgado que a colunista Leila Cordeiro comentava o assunto nesse dia em matéria com título ‘Ética e sensacionalismo’, na qual dizia:
‘Recebi denúncia do Grupo Otimismo, de apoio aos portadores de hepatite C. Revoltado com a irresponsabilidade da Record, que botou no ar uma chamada do programa Domingo Espetacular informando que a Hepatite C não tem cura, o presidente da entidade lavrou seu protesto: ‘Lamentamos profundamente que uma emissora de TV use de métodos mentirosos, alarmando desnecessariamente a população, simplesmente para obter alguns pontos de audiência. A hepatite C tem cura, sendo que atualmente 56% dos tratados conseguem a cura, inclusive o tratamento é fornecido gratuitamente pelo governo na rede do SUS’.’
No dia 18, o Grupo Otimismo divulgou na internet ‘longa explicação científica de um médico não-identificado, o qual, a pedido do produtor do programa da TV Record, participara de sua elaboração técnica, motivo pelo qual o programa considerou oportuno divulgar que a hepatite C não tem cura’ [ver o texto no link www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=5351&id_noticia=116]. O médico afirma: ‘Na hepatite C mesmo a ‘cura’ na fase aguda é uma suposição ainda. Forte suposição, aliás. Na fase crônica, a ‘cura’ infelizmente ainda não pode ser demonstrada’. E mais adiante: ‘Assim o diagnóstico de cura é sempre discutível, geralmente ‘somente provável’. Cura microbiológica deve significar erradicação do microorganismo. Na hepatite C é apenas uma probabilidade.’
É relevante e merece referência que o presidente do Grupo Otimismo é autor de livro intitulado A cura da Hepatite C – Manual do paciente em tratamento.
O direito à verdade
Observa-se que o assunto é científico pela sua natureza.
Enviamos e-mail à Dra. Loreta Burlamaqui da Cunha, coordenadora de assistência da Assessoria de DST/Aids da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, membro da Câmara Técnica de Aids do Conselho Regional de Medicina-RJ e diretora médica da Sociedade Viva Cazuza, e perguntamos se a hepatite C tem cura. Ela respondeu:
‘A hepatite C tem controle e tratamento’.
Enviamos a mesma pergunta ao Dr. Evaldo Stanislau Affonso de Araújo, médico infectologista da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, coordenador da Área Temática de Hepatites e médico-assistente do Ambulatório de Hepatites do Hospital das Clínicas, da faculdade de Medicina da USP, que respondeu:
‘Há ‘Resposta Virológica Sustentada’. Além disso, sempre enfatizo em um dos meus slides usados em aulas que, antes de iniciar a terapia, precisamos explicar ao paciente que a ciência médica é dinâmica, fato que não nos permite ser sempre afirmativos ou categóricos, afinal a evolução do conhecimento pode nos surpreender, algumas vezes negativamente.
Na discussão específica, corroborando a argumentação, lembro ainda que recentemente temos discutido a infecção oculta pelo Vírus da Hepatite B (VHB) em pacientes com perfil de anticorpos compatível com ausência de replicação. O significado exato disso é alvo de discussão crescente. Uma publicação recente demonstra a replicação do VHC em células sanguíneas, algo até então de difícil demonstração, e associa essa replicação com menor taxa de resposta e com recidiva após a terapia. Além desse, pâncreas, adrenal, medula óssea, baço e até SNC são potenciais sítios de replicação extra-hepática do VHC.
Portanto, o termo ‘cura’ é inadequado. O melhor é ‘Resposta Virológica Sustentada’, que é a indetectabilidade do vírus VHC no sangue 24 semanas após o término da terapia. Sendo que nenhum teste consegue detectar a partir de zero partícula viral, e não há uma pesquisa em locais fora do fígado em situações de rotina.
Esses fatos por si já mostram que não podemos assumir a total erradicação viral, considerando, finalmente, a possibilidade de interferências relacionadas aos métodos diagnósticos biomoleculares empregados. Avançamos muito, sem dúvida, mas o passo desejado – remédios 100% eficazes, pouco tóxicos e com custo acessível – ainda é uma esperança’.
O médico se comprometeu a levar ao grupo de consenso da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI) essa discussão e aceitou a sugestão para a emissão de um parecer em agosto, durante o 4º Congresso e o 2º Consenso em Hepatite C.
Parece-nos apropriado que a imprensa reflita sobre seu papel no episódio. Houve quebra da ética jornalística? Houve tentativa de influenciar, censurar, alterar matéria jornalística?
Que verdade e ética devem prevalecer para os pacientes de hepatite C, que têm o direito de ser devidamente esclarecidos sobre sua moléstia e as alternativas de tratamento que cabem, para tomar decisões sobre sua vida?
E a hepatite C, tem cura?
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Industriário, coordenador do HepC, Grupo de Informação e Apoio em Hepatite C, e webmaster do informativo eletrônico JornalExpress O Fígado (http://www.ofigado.jex.com.br)