Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa dá as costas para o mar

‘O Brasil não é um país sério.’ A frase equivocadamente creditada ao generalíssimo Charles De Gaulle continua sendo repetida de tempos em tempos. Mas o contexto em que teria sido pronunciada foi esquecido. O conflito político se dava em torno da pretensão brasileira de estender seu território marítimo em confronto com o sofisticado prazer francês de ter à mesa nossas deliciosas lagostas. As manchetes mais criativas anunciavam até uma pretensiosa ‘Guerra da Lagosta’, como se o brasileiro estivesse finalmente disposto a lutar por alguma das suas reservas naturais. Mas a guerra que nunca ocorreu foi perdida, detalhe que a imprensa esqueceu de noticiar. Pela simples razão de que sempre esteve e sempre estará de costas para o mar.

A produção da lagosta no país caiu de 7.800 toneladas para menos de 2.800 toneladas nos últimos 10 anos. Se não dá nem para comparar com os grandes produtores que hoje fazem a satisfação dos maîtres franceses, como o Canadá, com suas 40 mil toneladas e os Estados Unidos, com 39 mil toneladas, o Brasil perde feio até para Cuba, país de dimensões geográficas infinitamente menores, mas que consegue produzir 11 mil toneladas anualmente. Uma derrota monumental solenemente ignorada pelos reporteiros verde-amarelos empenhados em decantar os troféus levantados em outros setores.

Bastaram alguns dias de férias ralando o traseiro nos skibundas oferecidos pelos cearenses para os turistas descerem seus combros de areias brancas e finas, depois de sacolejá-lo em buggies que despencam pelos mesmos morros para provarmos que não nos falta coragem, para ter a atenção jornalística voltada para o problema da pesca artesanal no Ceará. Porque os improvisados motoristas que oferecem as opções ‘emoção forte’, ‘normal’ ou a nova variação importada, ‘emoção light’, não passam de jovens jangadeiros faturando um extra nesse período de defeso da lagosta. Com a pesca mais rentável proibida, resta conduzir os visitantes pelas dunas. E como não há bumbum que agüente tanta emoção, fazem pausas estratégicas para fotografias quando, eventualmente, se o cliente é curioso, o papo rola solto.

Então se descobre que a guerra que nunca houve ainda não acabou. Persiste, só que travada entre brasileiros. Mais precisamente, entre os grandes e os pequenos, como costumam ser os eternos conflitos sociais. Tem até seus heróis. Como Francisco Soares de Souza, o ‘Wilson’, como é conhecido o presidente da União dos Pescadores de Caponga, a Unipesca. Pois não é que esse cabra da peste cansou de ouvir que as autoridades não tinham condições de fiscalizar a pesca ilegal e teve a idéia de fazer uma coleta entre os pescadores para comprar um barco grande a motor e o colocar à disposição do Ibama? Pois foi.

Barco depenado

Durante quatro meses os jangadeiros de Caponga doaram os rabos das lagostas pescadas ao movimento e conseguiram assim amealhar o suficiente para dar a entrada na compra da embarcação. Mas o Ibama, vixi, o que não faltou foi desculpa para não assumir a tarefa. Não tinham recursos para o combustível, para as diárias, para as refeições, enfim, faltava a danada da força de vontade para esses funcionários públicos mexerem seus traseiros das confortáveis repartições que ocupam por esse Brasil afora.

Então os pescadores artesanais se puseram com seu barco, o Unipesca I, ao mar e foram detendo as embarcações piratas que infestam suas costas, acabando com as reservas de lagostas com a utilização de equipamentos ilegais, compressores entre eles. Apenas para constatarem que eram imediatamente liberadas após o pagamento de uma fiança simbólica. Boletins de ocorrência foram registrados, reuniões, abaixo-assinados, inutilmente buscavam chamar a atenção da opinião pública para sua causa. Conseguiram até alguma repercussão local, principalmente depois que colocaram fogo num dos barcos detidos. Foi aí que viraram bandidos.

O Unipesca I foi encarcerado e não houve fiança que o liberasse. Ficou sob a guarda da Marinha, na Capitania dos Portos, onde seu GPS foi roubado, assim como desapareceram o sonar e o rádio. Enfim, depois de muito reivindicarem, o barco foi finalmente liberado. Wilson me levou até ele na semana passada, onde está sendo recuperado com recursos recolhidos entre os pescadores. Apesar das ameaças de morte que recebe constantemente, está decidido a voltar ao mar para combater a pesca predatória e ilegal.

A perda é do Brasil

Matilene, companheira de Wilson e coordenadora do Fórum dos Pescadores e Pescadoras do Litoral Cearense, teme pela vida do presidente da Unipesca. As ameaças são constantes, mas não são levadas a sério pelas autoridades policiais que preferem taxá-lo de bandido e quadrilheiro. A imprensa nacional talvez, e bota talvez nisso, só acorde para sua existência quando ele for finalmente eliminado, como mais um Chico Mendes da nossa triste história pela preservação dos pequenos na exploração de nossas riquezas naturais.

Atualmente, apenas 25% da nossa produção de lagosta são gerados pela pesca artesanal, a da frota à vela que envolve cerca de 10 mil pescadores, a metade deles no Ceará. Mais de 75% dos cerca de R$ 80 milhões arrecadados com a comercialização da lagosta ficam com os grandes empreendedores, que dotam seus barcos com equipamentos ilegais, como compressores, devastando as reservas e afastando os pequenos do mercado.

A cobertura dessa verdadeira guerra interna é pífia. Seus eventos são ignorados, seus números escondidos, a realidade político-social envolvida completamente esquecida por uma imprensa que nenhuma atenção dá às possibilidades de nosso litoral atlântico. As práticas predatórias, acobertadas pelos que pensam apenas no interesse comercial imediato, acabarão comprometendo totalmente não só as reservas naturais, como o elemento humano vocacionado para a produção sustentável. A pesca artesanal, o barco ou jangada a vela, consegue retirar do mar no máximo 30 quilos numa pescaria de vários dias. A produção de um grande barco pesqueiro a motor é de mais de 1.000 quilos por dia. Façam as contas e constatem que, ao fim e ao cabo, a perda é de todos nós, do Brasil.

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Jornalista