O ciclone que entre a noite de sábado e a madrugada do domingo (27-28/3) afetou o norte do Rio Grande do Sul e o sul de Santa Catarina provocando mortes e destruição deve exigir dos meios de comunicação social um olhar mais cuidadoso para a meteorologia/climatologia e, por extensão, para a ciência como um todo.
A justificativa para este cuidado está relacionada ao processo de aquecimento global e as conseqüências apontadas pelas modelagens, a grande maioria prevendo a maior freqüência e intensidade de tempestades e vendavais destruidores em diferentes regiões da Terra, com impacto maior nos países subdesenvolvidos, justamente por carência de prevenção e de acionamento rápido de ajuda.
É verdade que já na edição de domingo os dois maiores jornais de São Paulo, a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, traziam chamadas na primeira página alertando para a manifestação da formação com origem a 1.000 quilômetros da costa do Sul do país. Enquanto isso, pesquisadores científicos de diferentes entidades estavam divididos quanto à intensidade da formação.
Nas edições de domingo, o meteorologista Marcelo Martins, do Centro Integrado de Meteorologia e Recursos Hídricos de Santa Catarina (Climerth), previa que não estava descartada a possibilidade de ventos poderosos, de até 100 km/hora, especialmente no sul de Santa Catarina e o norte do Rio Grande do Sul, exatamente o centro da região afetada.
Quase em sentido contrário, o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), argumentava que não havia motivos para maiores preocupações. O fenômeno, na previsão de pesquisadores do Ceptec, teria ventos entre 60 e 70 km/hora e poderia ser classificado de rotineiro.
Um ciclone extratropical como essa formação ‘forma-se em situação de baixa pressão atmosférica e não necessita de águas com temperaturas elevadas para ganhar forma como os furacões’, detalhou o meteorologista Marcelo Seluchi, do Ceptec.
Destruição da mata
Na edição de segunda-feira (29/3), as primeiras páginas dos jornais mostraram que os pesquisadores do Ceptec substimaram a formação que, na realidade, teve ventos de até 150 km/hora em alto-mar, segundo os primeiros dados. O ciclone provocou danos em aproximadamente 28 mil casas, especialmente com destelhamentos, deixou 600 desabrigados e dois mortos, além da tripulação de pelo menos dois barcos de pesca naufragados. No final da tarde de domingo, segundo O Globo, Luciano da Silva, tripulante do Vale-2, uma das embarcações naufragadas, foi recolhido na costa. Não havia notícias de seus companheiros e dos tripulantes do Antonio Venâncio, a segunda embarcação.
Evidentemente que é prematuro (sem falar na extrema complexidade do problema) atribuir essa formação, incomum pela intensidade, à mudança climática produzida pelo efeito-estufa.
O efeito-estufa – por analogia com as câmaras transparentes para proteção de cultivos – é um processo de aquecimento da atmosfera por dióxido de carbono (CO2), produzido por atividades industriais e outros gases liberados por fenômenos que vão da flatulência de rebanhos à exploração agrícola de área pantanosas.
Isso se o efeito-estufa tiver como causa razões antrópicas, ou seja, atividades atribuídas ao homem.
Desde que se falou pela primeira vez em efeito-estufa, em meados do século 19, a comunidade científica esteve dividida entre a possibilidade de um aquecimento global ser produzido por atividades humanas ou naturais – neste último, por um conjunto de efeitos, entre eles a variação da radiação solar (a quantidade energia liberada pelo Sol).
Longe de ser uma estrela inteiramente estável (ainda que não apresente alterações como as estrelas variáveis, com períodos de horas, semanas e meses), o Sol de certa forma lembra uma vela que bruxuleia ao longo do tempo e com isso afeta o clima na Terra. Foi o que aconteceu durante a chamada Mínima de Maunder, período de 70 anos entre 1645 e 1715, quando a atividade solar foi reduzida e, na Terra, as chuvas se escassearam, com queda global de temperaturas.
Em termos de previsão para catástrofes junto à população, evidentemente não faz a mínima diferença, ao menos de imediato, debater se esses acidentes da Natureza são de origem antrópica ou não.
A média prazo, a situação muda. Destruição florestal (as florestas, como os fitoplânctons, as micro-algas marinhas, seqüestram dióxido de carbono atmosférico) pode levar a mudanças de comportamento e a pressões por adoção de medidas ambientalistas.
Resultados insuficientes
A atuação da mídia, de imediato, tem o sentido de contribuir para minimizar o sofrimento social e, neste caso, dois cuidados opostos entre si devem ser considerados.
O primeiro é alertar e chamar a atenção dos responsáveis pela administração do patrimônio público, especialmente prefeitos e funcionários municipais. O segundo é não fazer alarmes falsos que resultem em preocupações que possam não ter fundamento por razões técnico-científicas capazes de serem avaliadas previamente.
A sociedade, como um todo, já está sobrecarregada por problemas envolvendo outros temas como desemprego, violência e saúde.
Para se envolver nesse processo, os jornalistas dos mais diversos veículos, da TV ao jornal diário, passando pelas estações de rádio, sites e outras publicações semanais ou mensais, devem ter formação minimamente consistente em divulgação científica, o que é um enorme e fascinante desafio para um país com o perfil do Brasil.
Aqui, em função de uma tradição algo obscurantista, mas ainda não eliminada, mesmo os responsáveis por instituições públicas de pesquisa não têm o hábito de procurar os meios de comunicação social para a divulgação de informações de relevância social. Antes disso, costumam prevalecer as preocupações corporativas nas quais, com freqüência, os choques de interesse formam blocos opostos de poder.
As empresas jornalísticas, presas a um imediatismo aparentemente imutável, tampouco se preocupam com a formação de seus repórteres e editores. O resultado disso é que, se o jornalismo científico no Brasil atingiu a melhor qualidade de toda a América Latina, o mérito é inteiramente dos próprios jornalistas que se envolveram com esta área e buscaram formação necessária.
Pode-se argumentar que algumas instituições oficiais chegaram a deflagrar projetos de formação em jornalismo científico. O fato, no entanto, é que os resultados dessas iniciativas ficaram muito abaixo das necessidades reais.
Arautos do caos
Modelagens feitas por climatologistas, envolvendo o efeito-estufa mostram cenários próximos da ficção científica, com acidentes naturais incomuns para os tempos modernos.
O aquecimento não irá ocorrer no planeta como um todo. Desvios de correntes marinhas e alteração de ventos atmosféricos, entre outros efeitos, podem até diminuir a temperatura de algumas regiões.
Essas alterações, no entanto, ainda que possam trazer benefícios regionais de imediato, no conjunto implicam perdas e riscos enormes para a história da civilização.
Um cenário freqüente nas modelagens climáticas considera a destruição de florestas nas bordas do Círculo Polar Ártico, sem tempo para se transferirem mais ao norte como ocorreria no caso de um aquecimento natural (por variação na radiação solar ou outros fenômenos como a variação da órbita da Terra em torno do Sol, travessia de nuvens de poeira no braço da Galáxia que aloja o sistema solar etc.).
Essas reservas podem ser vítimas do fogo, levando consigo ecossistemas complexos que seriam perdidos para sempre.
Se as perdas de biodiversidade, envolvendo flora e fauna (animais incapazes de se adaptar rapidamente a outras condições), não chegam a sensibilizar mais profundamente a sociedade humana, certamente as catástrofes naturais passíveis de ser deflagradas por esse processo podem alterar profundamente essas preocupações.
Sensibilizar a sociedade – especialmente em países com o perfil do Brasil – para os riscos apontados pela mudança climática é uma função irrecusável da mídia como um todo num processo de educação científica.
Os meios de comunicação social não são os responsáveis por uma educação científica, mas devem participar ativamente deste esforço.
Se a mídia se recusar a participar desse processo, uma das conseqüência poderia ser a proliferação de um movimento de base religiosa que enxergaria em manifestações da Natureza uma espécie de castigo dos deuses por mal comportamento humano.
E claro que, além de tempestades destruidoras, fenômenos como vulcanismo (que em última instância são fundamentais para a continuidade da vida na Terra) também tenderiam a ser interpretados sob uma óptica obscurantista.
Até porque, não faltam anunciadores do caos. E, como diziam nossas avós, prevenir é sempre melhor que remediar.