Nos anos de chumbo no Brasil, contam alguns jornalistas, além da censura prévia não havia assunto pautado que não tivesse como fonte obrigatória um representante das Forças Armadas. A leitura da Ordem do Dia era um momento quase sagrado: repórteres perfilados, quietos, aguardando a leitura do texto que daria, no mínimo, o tom do humor do generalato.
Mesmo depois do fim do regime militar, este cacoete perdurou por alguns anos, até que editores, pauteiros e repórteres se deram conta de que o ‘meia-volta, volver’ à caserna era real.
Este fato é relevante quando identificamos outros cacoetes no dia-a-dia do noticiário nacional. Não há fato de interesse maior que não seja repercutido entre representantes da Igreja Católica Apostólica Romana, que mantém uma vantagem insuperável em relação aos homens da caserna, já que falam em nome de Deus, e ‘Dele’ se dizem intermediários na Terra.
O crivo de Severino
Em 16 de agosto de 2005, foi trombeteante na mídia a divulgação da declaração ‘Exigências éticas em defesa da vida‘, aprovada na 43ª Assembléia-Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Poucas foram as vozes, quase inaudíveis, de pessoas que levantaram a questão: estamos ou não estamos num Estado laico? A Constituição brasileira nos garante que sim. Mas, depois dos homens da caserna, a mídia e a sociedade brasileira vivem sob o jugo dos homens de batina. No fazer diário da imprensa deixa-se de lado, quando se trata da igreja, a principal pergunta: por que a cúpula católica tem de ser ouvida, e consegue interferir, em temáticas que estão na esfera do direito, do governo e da laicidade do Estado? E prevalece o silêncio nada inocente mas conivente da mídia.
Na declaração, bispos, arcebispos e cardeais destacaram a carta que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou à CNBB, na abertura da Assembléia, reafirmando sua ‘posição em defesa da vida em todos os seus aspectos e em todo o seu alcance’ e assumindo o compromisso de que seu governo ‘não tomará nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos’. Uai, o presidente Lula crê que estamos numa teocracia?
Como era de se esperar, a CNBB não se fez de rogada e usou e abusou do conteúdo da carta do presidente na contextualização de sua declaração. Fato que não mereceu nenhum editorial em defesa do Estado Laico. É senso comum e sábio o dito popular ‘quem cala consente’. Arriscamo-nos a parafrasear: ‘quem cala condena’.
Apesar de seu habitual silêncio sobre temas considerados polêmicos, como a legalização do aborto, o Jornal do Brasil, no dia 28, foi o único jornal de circulação nacional a noticiar que no dia 1º de setembro seria apresentado à Câmara dos Deputados o projeto de lei elaborado pela Comissão Tripartite para a Revisão da Legislação Punitiva sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, a ser incorporado ao Projeto de Lei nº 1.135 de 1991, do qual a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) é relatora. Incorporado a matéria já em tramitação, o projeto não precisaria entrar no fim da fila de propostas que aguardam apreciação do mérito na Comissão de Seguridade Social e Família e nem o crivo do presidente da Câmara, o deputado fundamentalista Severino Cavalcanti, agora ameaçado de perder o cargo por novas denúncias de corrupção – porque, pelas velhas, recebeu recentemente a cobiçada comenda do governo, a Ordem de Rio Branco.
‘Supostas pressões’
Entretanto, para a surpresa do movimento feminista, a entrega do ‘produto’ da Comissão Tripartite ao Congresso Nacional, com hora e local aprazados, foi adiada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres na antevéspera do evento. Uma nova data para a entrega do documento foi marcada para o dia 20 de setembro.
Por ocasião da divulgação da carta do presidente da República à CNBB, apenas o articulista André Petry, na revista Veja de 13 de agosto, manifestou repúdio ao seu teor. Em coluna intitulada ‘O mensalão do aborto’, reproduziu trechos da carta e, implacavelmente, lamentou que ‘milhares de brasileiras – pobres, na maioria – seguirão morrendo todos os anos porque o presidente resolveu adular os bispos’.
Para o conjunto da mídia, ao que parece, não houve qualquer surpresa. Ninguém perguntou o porquê do cancelamento ou adiamento. Nenhuma linha publicada, embora o assunto estivesse em pauta até a antevéspera da entrega do documento. O efeito-rebote veio no dia 6 de setembro, em matéria publicada pela Folha de S.Paulo, informando que o governo federal havia decidido adiar a entrega do anteprojeto elaborado pela Comissão Tripartite, por ‘supostas pressões’ da CNBB.
Poder divino
Sem muito esforço, é possível estabelecer uma relação entre o espernear da igreja, pelas declarações de seus próceres, a carta presidencial de obediência à verdade cristã ditada pelo Vaticano e endossada pelo seleto quórum da CNBB, a entronização da declaração e a posição moderada da igreja frente à crise política. O recado estava dado e o adiamento não era pauta. A CNBB já disse que legalização do aborto não! O presidente, ao que parece, entendeu o recado. Nesta hora, a imprensa teria que fazer muitos ‘porquês’. Seu papel precípuo de indagar e informar a população, que tem direito a estas informações, não foi cumprido. Sua matéria-prima – a notícia, o fato relevante – foi abandonada.
Não há quem não saiba, entre editore(a)s, produtore(a)s, pauteiro(a)s e repórteres, que a entrega do anteprojeto que descriminaliza e legaliza o aborto no Brasil ao Congresso Nacional era, e continua sendo, um passo decisivo para a revisão do Código Penal e um momento riquíssimo para a reflexão, no Parlamento, sobre a necessidade suprema de respeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O silêncio, a ignorância de um fato, naquele momento, transformou-se em mais uma condenação a que, em nome de Deus, as brasileiras continuem tuteladas e criminalizadas por suas decisões, principalmente a de interromper uma gravidez indesejada ou inesperada.
Ao que parece, não foi uma simples ‘barrigada’ ou ‘comida de mosca’, mas a obediência ao que os detentores do poder divino decidiram. Em 5 de setembro, Xico Vargas, em artigo intitulado ‘Aborto, a penitência de Lula‘, no site NoMínimo, fez extensa avaliação da situação política que resultou no adiamento da entrega o Congresso Nacional do anteprojeto da Comissão Tripartite para a Revisão da Legislação sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, produzido em cinco meses de discussões.
Intervenção da igreja
O artigo ressalta o teor dos dois documentos produzidos pela reunião da CNBB. O primeiro, escrito no dia 12 de agosto, conclama ‘o povo brasileiro a recuperar a esperança, concretizando-a em compromissos de participação política’. A análise da crise é ‘serena e apaziguadora a respeito dos males da corrupção. Não há neles, nem indiretamente, a menor censura ao governo, no mundo real atingido naqueles dias por nove a cada dez denúncias’.
O segundo, produzido no dia 16 de agosto, ‘transborda fúria da Igreja contra ‘uma série de iniciativas’ do Executivo, do Judiciário e do Legislativo em relação a aborto, contracepção e Lei de Biossegurança’. Comparando os dois textos, a conclusão é lamentável: ‘A Igreja passou a mão na cabeça do PT e descascou o país inteiro.’
Xico Vargas não teve dúvidas e, brilhantemente, constatou que a Declaração da CNBB é a ‘mais explícita e vigorosa intervenção da Igreja no Brasil, um Estado laico, e diretamente sobre os três poderes da República’. Além disso, faz duo com André Petry, vozes destoantes no silêncio geral, ao afirmar que como ‘o governo neste momento não precisa é levar uma chicotada da Igreja do maior país católico do mundo, fica muito evidente que preferiu entregar as mulheres à fogueira’. Pura volta à Idade Média, período denominado de ‘trevas’.
Premissas simplistas
Embora ainda de penetração restrita na população, mas de grande impacto em formadores(as) de opinião, a internet tem sido o espaço de posições e avaliações quase despidas de contaminações morais e de princípios religiosos. Seria resultado de um conservadorismo na linha editorial da chamada grande imprensa? Pelo sim ou pelo não, a internet como instrumento midiático e de comunicação mais livre mostra sua eficiência.
No dia 23 de agosto, em sua seção de Notas, o Estadão afirmou que, com a conclusão dos trabalhos da Comissão Tripartite, a sociedade brasileira travará um embate sobre uma questão moral, tratada como dogma pela igreja católica: ‘Até que ponto a interrupção da gravidez indesejada pode ser uma decisão de caráter absolutamente individual, ou seja, dependente apenas do juízo pessoal de uma gestante?’
De maneira equivocada, o jornal ressaltou que o projeto conta com o apoio de organismos multilaterais ‘que vêem no aborto legal e seguro uma forma de controle da natalidade e, por tabela, de redução da pobreza’. A pesquisadora Sônia Correa lembrou, em carta ao jornal, que estas premissas simplistas foram superadas pelos debates da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), no Cairo, em 1994, e que é ‘inadequado avaliar as atuais políticas globais para população e desenvolvimento a partir de parâmetros de análises referenciados à realidade dos anos 1960, 1970 e 1980’ (www.redesaude.org.br/html/boletim-16a31ag-2005.html). O destino da carta não se sabe. Para a seção de leitoras(es) do Estadão ela não foi. Mas, fica como mais um ato de resistência.
Novo fôlego
Por fim, o jornal afirmou, no caso do aborto, que ‘em muitos países é o juízo pessoal de cada mulher que prevalece. Em princípio, parece ser a política mais adequada. Mas seria necessário que todas as brasileiras tivessem plenas condições culturais de tomar essa decisão, o que, infelizmente, não é o caso’. O jornal explicita o seu descrédito na capacidade das mulheres de decidirem seu destino e reafirma o ideário do senso comum que acredita que as mulheres, principalmente as pobres, devem ser tuteladas.
O fato é que um editorial que se anunciava tão positivo no início do texto mostrou-se estarrecedor no seu desenrolar e absurdamente preconceituoso na sua conclusão. Em nós, a certeza de que é muito mais fácil se contrapor a um discurso francamente contrário ao aborto do que ao falsamente favorável.
Quando a imprensa tomará o Estado Laico um valor e um bem?
O adiamento da entrega do anteprojeto da Comissão Tripartite ao Congresso Nacional deu novo fôlego à igreja, que no dia 3 de setembro estava na seção de Opinião da Folha de S. Paulo, no artigo intitulado ‘Pelo direito à vida’, assinado por Dom Luciano Mendes de Almeida. No texto, Dom Luciano volta a afirmar que iniciativas dos poderes públicos na garantia dos direitos reprodutivos das mulheres ‘causam inquietude e repúdio porque atentam contra a dignidade da vida humana’, e cita entre as ações: a distribuição maciça de preservativos, além de produtos abortivos como o DIU e as assim chamadas pílulas do dia seguinte; e as tentativas de revisão da legislação punitiva sobre o aborto, propondo a descriminalização e ampliando os prazos e as condições para a sua prática.
Em nome de quem?
Sua afirmativa de que ‘A luta em defesa da vida baseia-se na ética e no direito e se ilumina e se confirma pelos ensinamentos do Evangelho de Jesus Cristo’ não foi capaz de causar estranheza e, novamente, presenciamos a mídia silenciar frente à necessidade de defesa veemente do Estado Laico.
O fato é que a mídia precisa se laicizar para cumprir seu papel social primordial, que é informar com exatidão, com clareza e com a maior isenção possível todos os fatos que derivam de anseios, de reclames, de necessidades, de desejos e de direitos humanos de mulheres e de homens, sem cacoetes. Isso tem nome, chama-se função social da mídia – um dever e um valor às vezes esquecido e que, em geral, não aparece quando o foco está sobre as mulheres.
Na postura que relega a função social dos meios de comunicação, jornalistas e empresas de comunicação perdem o fio da história, viram porta-vozes do fundamentalismo, julgam e condenam. Em nome de quem?
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Coordenadora da área de comunicação da Rede Feminista de Saúde; jornalista, assessora de imprensa da Rede Feminista de Saúde