É triste, prepotente e vergonhosa a abordagem da Veja na matéria de capa ‘Em busca de um final sereno’ (edição 1930, de 9/11/2005). Na ânsia de corroborar a tese best-seller da ‘boa morte’, a Veja mete os pés pelas mãos, confunde conforto com resignação e tenta fazer da morte uma prioridade de vida.
É magistral a ponderação da revista quando critica a falta de habilidade do ser humano em morrer: ‘Tomar diante da morte uma atitude prática e racional é coisa rara. As pessoas planejam as férias e a aposentadoria, mas quase nunca como pretendem dar seus últimos suspiros’, escreve. ‘A busca de uma morte serena exige planejamento’, insistem os redatores. Estes senhores chegam até a ensaiar conselhos práticos para quem quer ‘morrer melhor’, como fazer o testamento e deixar expresso o desejo de ir ou não para uma UTI. Só não conseguem enxergar o que está explícito nas falas de suas próprias fontes, pacientes de câncer, que em momento nenhum pregam a morte, seja ela boa ou má. Eles pregam, com muito mais sabedoria, a vida. E a melhor possível.
A casuística
Ninguém morre melhor ou pior porque tomou ou deixou de tomar providências a respeito de sua última semana, dia ou hora de vida. Bem mais eficiente é viver, com serenidade e intensidade, enquanto a vida realmente existir. Esta é a proposta dos cuidados paliativos.
Afinal, deixar preparado o ritual da morte é uma recomendação válida para qualquer pessoa, já que esta possibilidade não é exclusiva do paciente de câncer. Principalmente depois da liberação do comércio de armas no país, tão veementemente recomendada por esta revista.
Senhora absoluta da verdade, a Veja se esquece da efervescência das investigações e descobertas médicas que a todo momento são manchete – não da Veja, que parece mais preocupada em defender suas próprias doutrinas, mas da imprensa mundial. Alheio à ciência, o texto de capa fuzila: ‘A atitude mais comum [do paciente terminal] é acreditar em um milagre da medicina tradicional ou em algum recurso alternativo sobre cuja eficácia é sacrilégio conjeturar’.
Não satisfeita, a revista – sem dizer onde buscou dados tão contundentes – delibera: ‘No caso do câncer, a taxa de acerto [sobre a proximidade da morte] é muito maior. A casuística e a profusão de dados internacionalmente aceitos permitem traçar com mais certeza a evolução do quadro clínico dos pacientes. A enfermidade tem evolução previsível: as condições físicas do paciente se deterioram muito lentamente no decorrer de vários meses, ou até anos’.
‘Terminal’ desde 2003
Homessa! Se a Veja tivesse ao menos pesquisado um pouco, teria sabido que nada é tão previsível assim na casuística do câncer. Principalmente em relação ao câncer, as probabilidades estão mudando a galope neste último quarto de século – e para melhor. Índices de cura que há 20 anos não passavam de 30% hoje chegam a 90% nas estatísticas nacionais. Muita gente que recebeu sua sentença de morte anos atrás está viva, e não há milagre nenhum nisso. Há ciência.
Mais uma vez Veja se confunde nos argumentos, e confunde seus leitores: ‘Pacientes terminais, segundo a definição de duas dezenas de médicos ouvidos por Veja para esta reportagem, são os que têm doenças incuráveis e fatais, com expectativa de vida de três a seis meses’, tenta esclarecer a revista.
Ouvir duas dezenas de médicos (duas dezenas!), entretanto, não foi suficiente para evitar a contradição. Um dos pacientes apresentados pela matéria, apesar da casuística que deveria conferir tanta certeza às previsões, já é ‘terminal’ desde 2003. Se dependesse da Veja, ele estaria há dois anos escrevendo testamentos e se esvaindo em dolorosas fórmulas sobre como encontrar seu ‘final sereno’. Ainda bem que a revista não é tão poderosa assim.
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Jornalista