‘Aqueles que não conseguem lembrar do passado estão condenados a repeti-lo’. Citação batida de George Santayana, mas muito atual.
Contamos com recursos de comunicação extraordinários em comparação aos da Era das Trevas, como assim era chamada a Idade Média. Nem livros eram de fácil acesso e saber ler era uma igual raridade. Daí a importância do Renascimento e do Iluminismo, a coragem de enfrentar um Estado poderoso e uma Igreja que ditava a ferro e fogo as suas verdades para trazer a razão a um mundo inculto.
Mas, avaliando a situação atual, vemos que estamos no mesmo pé de desenvolvimento intelectual e de difusão de informação daquela época. Por exemplo, a guerra colonialista e de conquista empreendida pelas forças de invasão americanas, em que os agressores são apresentados como libertários e os verdadeiros patriotas, à semelhança dos americanos que enfrentaram a Inglaterra ou da Resistência francesa ou polonesa diante dos invasores nazistas, na imprensa são chamados de insurgentes, e de terroristas os que não aceitam perder sua liberdade, sua autodeterminação e suas riquezas.
Difusão da ignorância
O jornalismo livre não foi suficiente para que as pessoas passassem a ser informadas adequadamente, a não ser manipuladas pelo governo americano. Na Alemanha nazista era a falta de liberdade de imprensa. E agora?
Na questão da divulgação científica, vemos que práticas abandonadas no passado voltam com a mesma validade, chanceladas por uma imprensa incapaz de ver o mundo real. Retorna na imprensa a tentativa de reunião da religião ao poder do Estado, a guerra santa para imposição de credos, e várias dessas teorias vêm sendo apoiadas por jornalistas. Se em política, economia e questões de Estado compreende-se que haja por trás interesses escusos, em divulgação científica isso é muito menos plausível. Assistimos à volta da alquimia, do criacionismo, da bruxaria, da astrologia (que sempre teve amparo jornalístico), de curandeiros, sacrifícios humanos, de charlatões.
Para que este resultado pudesse ser alcançado, a mente das pessoas foi preparada pela mídia do espetáculo e da baixa qualidade de avaliação. Uma imprensa despreparada não ajuda muito ao humanismo, mas ajuda na difusão da ignorância. Tentou-se regulamentar a astrologia como profissão no Brasil – iniciativa do senador e jornalista Artur da Távola – prova de que faculdade de Jornalismo não é o melhor exemplo do que se pode fazer pela cidadania. A CNN noticia que aumenta nos Estados Unidos a busca por tratamentos alternativos ao conhecimento científico. Seria uma atitude sábia se guiada pela demonstração de sua eficácia (que produz o efeito desejado; que dá bom resultado). Mas não é assim.
Caminho desconhecido
Quando vemos o país rebaixando os critérios para o ingresso na universidade, pois o ensino público não capacita os alunos, vemos que estas opções não passam pelo crivo da razão, mas da má formação, apenas. Não podemos considerar, entretanto, que burrice seja talento e que ignorância seja virtude, como fazem os jornalistas que acham que quanto mais despreparada é a pessoa mais legítimo é o seu ‘depoimento’ daquilo que não sabe. Que não saber seja uma coisa boa. É lastimável que pessoas assim detenham o monopólio da mídia para levar a escuridão e a ignorância como orgulhoso paradigma moderno.
Não é de estranhar que tanta bobagem tenha ressurgido neste período após a regulamentação da profissão de jornalista, com sua dominação total e irrevogável do mercado do encantamento. Aquele jornalismo questionador do passado está quase desaparecido pelo posicionamento empelicado do egresso da faculdade.
O iluminismo se fez sem a necessidade do monopólio do jornalismo. Talvez aí esteja um erro básico. O mais importante agora é não ofender as pessoas, por mais absurdas que sejam as coisas que apregoem ou por mais extraordinárias que sejam as coisas que afirmem (quanto mais, melhor, vende mais). O interessante é vender o produto, a informação, não por sua qualidade comprovada, por sua confirmação ou coerência, mas por seu ‘douramento’. Não se busca mais a história, a evidência, o contraditório, a visão cética – para não ofender. O mundo, para o egresso das faculdades, começou na colação de grau. Qualquer despreparado chega à mídia para vender barbaridades. É uma mídia para vender, não para informar o leitor do caminho a seguir, para discernir as opções, tampouco para ensinar a raciocinar e reconhecer as falsas promessas. Porque também o jornalista não sabe este caminho.
O CDF e o burrão
Os propagandeadores de absurdos se sentem confiantes com a cumplicidade da mídia, para afirmar o que quiserem: têm a garantia da imprensa de que nunca serão questionados; nunca serão antipáticos a ponto de pedirem demonstração do que afirmam. Astrólogos renasceram, curandeiros ressuscitaram, praticantes do exercício ilegal da medicina andam à solta, curandeiros com poderes nas mãos exercem reiki após cursinhos banais, charlatões têm suas desinformações difundidas, terapeutas de vidas passadas dispõem de tempo garantido na mídia eletrônica, esotéricos esquecidos fazem sucesso das revistas femininas, prometendo energizar tudo, cristais inertes, afirmam, têm poderes curativos, práticas medievais de bruxaria florescem no mercado do encantamento, supostos alternativos ao conhecimento científico apregoam, sem cobrança, suas terapias mágicas e fenomenais, surrupiando os recursos dos incautos, com estímulo da mídia promotora do deslumbre.
Exigir que comprovem o que prometem ao consumidor, seduzido pela mídia, jamais. É o caos, o mesmo em que viviam as populações medievais, pela via da desinformação. A divulgação científica, ao contrário do que acontece em religião, é justamente esta divisão de águas, seu objetivo maior: separar a simples apregoação, a profecia, a falsa evidência, a mentira completa, o dogma do saber sólido. E é este o papel da ciência, fornecer as respostas. Por este caminho é que se vão construindo as descobertas. Mesmo que amanhã se descubra que ainda havia um erro, é o método do progredir, acima da cegueira total da desinformação, nunca apegado a desejos e gostos pessoais dos que anseiam moldar um mundo imaginário, que resiste a críticas e à demonstração de evidências.
Este é o objetivo da moderna medicina científica. A escolha da melhor conduta baseada na evidência (o efeito ‘eficaz’ no paciente) dos métodos propostos, descartando o que não apresente resultados e usando os que dão maior segurança. E esta é uma linha contínua, sem fim, pois o novo método pode ser melhor – ou não. Só a análise conscienciosa e permanente pode responder. Abandonar isto por práticas com base na fé é cair no método do acaso, da sorte, do destino. E quem tem medo disso não faz parte do conhecimento científico, pois este é, em essência, seu terreno. Claro que quem quer se passar por erudito se ‘sente oprimido’ pelos que representem um saber real. Não é assim já na escola, na qual o estudioso é discriminado pela pecha de CDF e o popular é o burrão piadista?
Do sábio ao público
O jornalista, apesar da formação superior, não tem sólida formação científica, mais aprofundada em matemática, física, química, biologia. Muitas vezes sua escolha foi orientada justamente por detestar estas matérias, que em jornalismo não são necessárias.
Considerar que a realidade científica é intangível ou que se posa escolher as leis que se quer obedecer é estar fora do mundo real. A gravidade medida aqui é a mesma na China, a malária de um indiano é a igual à do africano – e se trata do mesmo modo. A atração das massas se faz na Terra ou para o robô no solo de Marte. A fisiologia humana que se usa na UTI é a mesma aplicada numa missão na Lua ou num submarino sob a calota polar.
Se para entendermos que a Terra era redonda levamos 400 anos, para entender o que é ciência alguns levarão outro tanto. Todos os jornalistas são assim? É claro que não, como alguns médicos que, mesmo fazendo seis anos de faculdade, abandonam o que foi ensinado para praticar absurdos. Mas democratizar a informação não é levar a opinião do néscio ao leitor, e sim a informação do sábio ao público, para que este também tenha acesso ao que lhe dá poder. Não é difundir a ignorância para nivelar por baixo, mas levar a sabedoria para produzir a libertação.
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Médico, Porto Alegre