No próximo dia 30 de março, uma quinta-feira, quando uma nave russa Soyuz TMA-8 estiver subindo para atracar-se com a Estação Espacial Internacional (ISS), toda a mídia brasileira estará acompanhando o lançamento. Nos telejornais serão feitas as chamadas insossas de sempre e nas primeiras páginas haverá destaque para a viagem de Marcos César Pontes, o primeiro astronauta brasileiro.
Por algum tempo – ao menos enquanto durar a viagem – o assunto será obrigatório na mídia. No retorno, certamente, o astronauta irá a inúmeros programas de TV contar a experiência de observar a Terra do espaço, explicar como se faz xixi, entre outras necessidades fisiológicas. Além de embasbacar a maioria dos apresentadores(as) desses talk-shows em que a mesmice e a desinformação prevalecem acima de qualquer coisa.
Ao final de certo tempo a viagem cairá no esquecimento. Claro que formalmente teremos enviado um brasileiro ao espaço levando, entre outros objetos, réplica de um chapéu de Santos Dumont, fazendo observações sobre bioluminescência e repetindo a experiência que todos fizemos na escola envolvendo o crescimento de feijões.
O Brasil precisa mesmo de um astronauta para dinamizar seu programa espacial? A resposta, evidentemente, depende de quem seja o observador.
Alguém que conheça minimamente a intimidade de um programa espacial dirá que não. Mas a imensa maioria das pessoas pode concordar por qualquer uma das infinitas razões que sejam capazes de imaginar.
Quem são os financiadores
Na mídia – com exceções aqui e ali – parece haver consenso de que o vôo será capaz de nos colocar em quase condições de igualdade com outros países do ainda restrito clube espacial.
Emocionalismo à parte, o vôo não traz nenhuma contribuição digna de nota tanto ao programa espacial quanto a qualquer outra área de investigação científica no Brasil. Não traz contribuições, mas custou pelo menos 10 milhões de dólares.
A idéia de que o Brasil deveria ter um astronauta começou no governo FHC, refletindo o ego astronômico do presidente-sociólogo. Ao menos no início deveria contribuir para a formação da idéia de que o Brasil, finalmente, havia chegado à modernidade pelas mãos e idéias desse discípulo de Comte.
Como aconteceu até agora com o programa espacial como um todo, o vôo do major Pontes ficou em suspenso por conta de um conjunto de fatores desfavoráveis, entre eles o último acidente de um ônibus espacial, o Columbia, no início de 2003.
O programa espacial brasileiro, para que se tenha uma idéia, vem enfrentando dificuldades desde que foi pensado, em 1961, por iniciativa de Jânio da Silva Quadros, o presidente-uísque. Ele foi inspirado no vôo orbital de Iuri Gagárin, naquele mesmo 1961.
Ausência de continuidade por carência de recursos, inflação elevada, falta de perspectiva científica, carência de organização mínima e uma infinidade de outras razões fizeram com que, até agora, os resultados do programa espacial permaneçam aquém do satisfatório. Isso não significa que o Brasil deva abrir mão de seu programa espacial, mas exatamente o contrário.
Um país com o perfil do Brasil – entre outros pela enorme extensão territorial – não pode abrir mão de um programa espacial que maximize suas potencialidades. Mas nada disso inclui um astronauta e menos ainda para experimentos com feijões.
Ainda assim, para ser coerente, é preciso dizer que Pontes deve voar. Ao menos depois que os pelo menos 10 milhões de dólares foram investidos em seu treinamento. Abortar o vôo, neste momento, seria apenas uma forma de aumentar as perdas.
Mas o vôo em si não deve trazer retornos significativos e isso, certamente, é importante que cada um dos contribuintes brasileiros, os verdadeiros financiadores dessa pequena odisséia, saiba claramente.
A necessidade do programa
Os dirigentes da Agência Espacial Brasileira (AEB), uma espécie de Nasa nacional, entendem que o vôo de Pontes fará uma divulgação inédita do programa espacial. Não deixam de ter alguma razão, o que não significa que estejam inteiramente com a razão.
A divulgação do programa espacial, neste caso, apesar de massiva, será de consistência precária. E o resultado disso, para a imensa maioria da população, será identificar o astronauta brasileiro com experiências de cultivar feijão (o que, com razão, muita gente irá considerar que seria mais barato fazer em qualquer sala de aula em terra).
A divulgação de que o programa espacial brasileiro necessita é muito mais consistente e isso não tem como ser resolvido pelo vôo de um astronauta, por mais simpático e determinado que ele seja, como é o caso do major Marcos César Pontes.
Programas espaciais em todo o mundo, desde o início, tiveram íntima relação com o sistema produtivo como um todo. A exploração espacial contribuiu para mudar o cotidiano das pessoas de forma quase inimaginável. Os computadores, por exemplo, beneficiaram-se de uma miniaturização de seus componentes devido à exploração espacial. Tornaram-se cada vez menores e mais baratos, a ponto de, hoje, incluir-se na categoria de eletrodomésticos.
Os sistemas de comunicação baseados em satélites, característica fundamental do que se chama de ‘globalização’, alteraram radicalmente o estilo de vida, mesmo nas áreas rurais, ou localidades distantes dos grandes aglomerados humanos.
Previsão do tempo e sensoriamento remoto, entre outros recursos possibilitados pelas atividades espaciais, são indispensáveis ao conjunto de uma sociedade com aspiração de integrar uma cultura planetária contemporânea. Grandes obras de engenharia e toda a indústria crescente do turismo, entre outras, têm na previsão do tempo uma demanda de alta exigência, absolutamente indispensável aos seus desempenhos. Sensoriamento remoto, além de mineração, acompanhamento de condições ambientais (desmatamento, poluição em grande escala) tem emprego na previsão de safras agrícolas.
Essa pequena amostra de potencialidades certamente é o bastante para demonstrar a necessidade de um programa espacial consistente com as demandas de um país como o Brasil. E nenhuma delas demanda o vôo de um astronauta.
Vôo rápido
Na verdade, a colocação de um homem no espaço reflete, ou deveria refletir, o estágio de um programa de desenvolvimento espacial. E não é este o caso do Brasil. Aqui, as pretensões do mais rasteiro maquiavelismo político superaram a visão de estratégia e ciência. Decidiu-se pela definição de um astronauta com a mesma seriedade com que se define o tema de uma escola de samba no carnaval.
Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabará se beneficiando do vôo que, a muitos, pode parecer um avanço científico significativo. Lula certamente improvisará meia dúzia de palavras vazias para tirar partido da situação, como fazem todos os que conquistam o poder.
O programa espacial brasileiro, apesar de longe das perspectivas repetidamente reformuladas e reconsideradas, evidentemente não é um desastre. E isso também deve ser claramente reconhecido.
O desenvolvimento de satélites em parceria com a China, entre outros avanços, deve ser levado em conta na reformulação dos rumos de um programa de importância estratégica para o Brasil.
O centro de lançamento de Alcântara, no Maranhão (próximo ao Equador e por isso mesmo sujeito à maior força centrífuga, capaz de permitir o lançamento de foguetes menores e mais baratos, por menor consumo de combustível) está ao menos parcialmente operacional.
A base no Maranhão foi prejudicada pelo fim da Guerra Fria, que alterou o contexto dos vôos espaciais. Sem falar que foi construída muito lentamente, refletindo as dificuldades estruturais do programa espacial.
O foguete lançador brasileiro continua em terra e, sem ele, é praticamente impossível se pensar no desenvolvimento significativo de um programa espacial. O governo militar deu sua contribuição negativa ao projeto espacial quando pretendeu fazer do veículo lançador, o foguete, um míssil capaz de transportar uma ogiva nuclear. Atirar uma pá de cal no poço que deveria testar a bomba atômica brasileira, na Serra do Cachimbo, certamente foi uma das poucas medidas acertadas do desastrado governo Collor.
Assim, neste momento, o que se tem de mais consistente para se mostrar ao público é o vôo de um astronauta numa velha nave russa para uma viagem de curta duração a bordo da estação espacial que permanece em construção. Para algumas experiências com pezinhos de feijão. A um custo de 10 milhões de dólares.