Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Achismo ou coisa de crença

No artigo ‘Mentira ou ignorância’, publicado na edição 1.935 da revista Veja, André Petry acusou a deputada federal Angela Guadagnin de não haver estudado a pílula do dia seguinte, e o deputado estadual paulista Valdomiro Lopes de defender uma opinião sem embasamento científico. Poderiam ser as duas acusações consideradas honestas caso o colunista não coubesse na mesma carapuça que tentou tecer para seus objetores. Petry não estudou o assunto e nem fundamentou seus argumentos em estudos científicos. Apenas limitou-se a colher as palavras de alguns especialistas em reprodução humana e a consultar documentos da Organização Mundial da Saúde, elevando em seguida sua frágil conclusão à categoria de verdade absoluta. Mas isso não é ciência, é achismo, coisa de crença, de sentimento, de desejo, como o próprio colunista reconhece. Só não reconhece o achismo na sua verdade absoluta.

Se André Petry estendesse a si próprio a mesma exigência que fez aos que objetaram sua posição, ele certamente teria abandonado um pouco seu círculo de defensores do aborto para perlustrar algumas páginas de livros de farmacologia, ginecologia, embriologia, endocrinologia, medicina legal e até a bula da droga em questão. Já que tal coerência não costuma ser atributo de quem não é provido de discernimento moral, o colunista da Veja perdeu uma grande oportunidade de aprender um pouco acerca de farmacodinâmica e de como proceder diante da falta de consenso científico.

Forma disfarçada

O mecanismo de ação da pílula do dia seguinte varia, nas publicações científicas, conforme a opinião de autores respeitados e o momento em que é administrada. Deixando de lado, por enquanto, a primeira variável, a segunda permite inferir que a pílula pode ou não ser abortiva, dependendo se sua absorção ocorreu antes ou depois da fecundação: se antes, seus constituintes hormonais em doses elevadas suprimem ou atrasam a ovulação; se depois, tornam a mucosa uterina inóspita à implantação do embrião e promovem a lise do corpo lúteo que manteria a gestação até que a placenta esteja formada.

Contudo, há pesquisadores que discordam dessa tese farmacodinâmica. Conquanto seja justamente a falta de consenso um dos pilares essenciais para o progresso da ciência, ela não significa autorização para abandonar a prudência. Deixar de refrear-se na tomada de decisões radicais, sobretudo nas que podem ceifar uma vida humana, não é atitude que encontra abrigo nos preceitos da ciência e da sensatez, além de ser um comportamento mesquinho e cruel.

Diante de persistente discordância científica e da quase impossibilidade de se determinar o momento da absorção da pílula do dia seguinte em relação à fecundação, resta saber se a defesa enérgica do uso dessa droga não seria uma forma disfarçada de promover o aborto, prática deplorável que André Petry insidiosamente enaltece, valendo-se inclusive da mentira e da ignorância.

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Médico, Boa Vista, RR