Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Acusações infundadas contra cientistas

Vamos a mais um exemplo da influência do delirium tremens na ‘qualidade’ do jornalismo praticado no Acre, tomando como referência as duas notas publicadas na abertura da coluna ‘Poronga’, do jornal Página 20:

Arqueopirataria – Denúncia grave. Estão pirateando os sítios arqueológicos de Rio Branco e levando para o exterior. A arqueopirataria conta com a participação de um paleontólogo acreano que está enveredando indevidamente pela arqueologia. O cantor Álamo Kário já alertou: ‘Cuidado com os gringos’.

Via Belém – Segundo informações apuradas pela coluna, o paleontólogo estaria se associando com uma arqueóloga de Belém do Pará para explorar os sítios arqueológicos do Acre. A confusão será grande e o Estado poderá sair perdendo caso não seja feito nada para conter as ações ilícitas.

Pois bem, o que o jornal faz não é denúncia – a atribuição para denunciar é do Ministério Público. Trata-se na verdade de uma acusação grave para tentar atingir a reputação de um paleontólogo e de uma arqueóloga reconhecidos internacionalmente pela comunidade científica.

O ‘paleontólogo acreano que está enveredando indevidamente pela arqueologia’, ao qual o jornal se refere, é Alceu Ranzi, doutor em Wildlife Ecology pela Universidade da Flórida, professor associado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina e no Programa de Mestrado em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais da Universidade Federal do Acre. É autor dos livros Paleoecologia da Amazônia e Geoglifos da Amazônia, este sobre um tema acreano, possivelmente similar aos mundialmente famosos geoglifos de Nasça, no Peru.

Na semana passada, de modo entusiasmado, o prefeito de Rio Branco, Raimundo Angelim (PT), revelou aqui que Ranzi aceitara o desafio de coordenar os esforços de sua equipe para elaborar o projeto de construção de um memorial ou museu de paleontologia do Acre. A reação do ‘fogo amigo’ foi imediata e rasteira.

A ‘arqueóloga de Belém do Pará’, cujo nome o jornal omite, é a gaúcha Denise Schaan, do Museu Paraense Emílio Goeldi, e também professora do curso de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. Ela é doutora em Antropologia Social na Universidade de Pittsburgh (EUA), onde defendeu a tese ‘O Cacicado dos Camutins: emergência e desenvolvimento de complexidade social na Ilha de Marajó’. Integra a Sociedade de Arqueologia Brasileira e a Sociedade de Arqueologia Americana.

Novas descobertas

O jornal erra feio quando afirma que Alceu Ranzi e Denise Schaan ‘estariam’ se associando para explorar os sítios arqueológicos do Acre. Eles estão associados desde fevereiro do ano passado, mediante um processo público e transparente, quando Alceu Ranzi deu um alerta e a Eletronorte solicitou ao Museu Paraense Emílio Goeldi a elaboração de um diagnóstico sobre a situação do patrimônio arqueológico na área de implantação de duas linhas de transmissão elétrica no Acre.

Uma das linhas, de Rio Branco a Epitaciolândia, com 210 km de extensão, tem seu traçado planejado ao longo da BR-317, numa das áreas de maior incidência dos sítios arqueológicos que vêm sendo chamados de geoglifos. Entre março e maio de 2005, uma equipe coordenada por Denise Schaan, com a participação de Alceu Ranzi, realizou levantamento bibliográfico e visitas de inspeção aos locais afetados, produzindo um relatório que avalia o impacto do empreendimento sobre os sítios arqueológicos e propõe medidas que devem ser tomadas visando à proteção de um importante legado das sociedades pré-colombianas.

O relatório foi entregue ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e à Eletronorte, além de compor o Relatório de Controle Ambiental solicitado pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac).

Os geoglifos são definidos por Alceu Ranzi como um vestígio arqueológico representado por desenhos geométricos ou naturalistas, de grandes dimensões, elaborados sobre o solo. Um geoglifo só pode ser totalmente observado se visto do alto, em especial, através de sobrevôo.

Já se conhece a existência de pelo menos 70 geoglifos. Os primeiros foram descobertos, entre 1977 e 1990, graças ao trabalho do professor Ondemar Ferreira Dias Jr. e seus colegas do Instituto de Arqueologia Brasileira. Foram descobertos, mas ficaram sem merecer a devida atenção. Foi somente a percepção aérea de suas dimensões e a descoberta de que havia dezenas deles espalhados na parte oriental do Acre que lhes deu o destaque merecido, graças ao empenho do paleontólogo Alceu Ranzi.

Uma equipe de topografia da Eletronorte chegou a descobrir mais dois geoglifos até então inéditos, desviando o traçado da linha de energia para não prejudicar os sítios. Eles localizam-se próximo à rodovia, tendo um deles o formato circular, com 260 metros de diâmetro. Foram identificados seis geoglifos em áreas muito próximas à linha de transmissão Rio Branco/Epiaciolândia, dois deles já parcialmente destruídos.

Atração mundial

Alguns têm uma estrutura geométrica. São sítios compostos de estruturas de terra (valetas e trincheiras) de formatos diversos (círculo, elipse, quadrado, polígono). A maioria das valetas possui um vão de cerca de 11 metros, com profundidades que variam de 1 a 2 metros. Os diâmetros dessas estruturas variam entre 90 e 330 metros.

‘Os sítios arqueológicos identificados na área são extremamente importantes para a compreensão da ocupação pretérita da Amazônia, tendo em vista o fato de localizarem-se em área de interflúvio e terra firme, áreas que os pesquisadores consideravam inadequadas para o estabelecimento de sociedades densas, sedentárias e organizadas em nível regional, como parece ser o caso da ocupação humana em questão’, afirma Denise Schaan.

Alceu Ranzi e Denise Schaan compartilham da idéia de que uma adequada caracterização daquelas sociedades pode vir a contribuir enormemente para a nossa compreensão do processo de colonização antiga da Amazônia, entender melhor as relações entre sociedades humanas e meio ambiente e nos ajudar a melhor avaliar os impactos que a crescente exploração dos recursos biológicos da Amazônia pode ocasionar a médio e longo prazos.

As pesquisas que estão sendo conduzidas por Alceu Ranzi e Denise Schaan possibilitarão conhecer a origem e função dos geoglifos para as sociedades do passado. Ambos acreditam que os geoglifos atrairão brevemente visitantes de todo o mundo, colocando definitivamente o estado do Acre dentro de rotas turísticas internacionais.

De sua parte, o jornal Página 20 precisa avançar, sustentar a apuração feita para acusar Alceu Ranzi e Denise Shcaan do crime de ‘arqueopirataria’, e exigir a entrada do Ministério Público Federal no caso.

É leviandade referir-se ao Alceu como ‘paleontólogo acreano que está enveredando indevidamente pela arqueologia’ ou advertir os leitores com o xenofóbico ‘cuidado com os gringos’, por causa dos sobrenomes Ranzi e Schaan.

Para tentar acompanhar o delirium tremens do redator da coluna ‘Poronga’, fico a imaginar o musculoso Alceu Ranzi e a franzina Denise Schaan surrupiando os geoglifos do Acre em sacos, canoas ou aviões.

Um pedido público de desculpas aos dois cientistas e aos leitores é o mínimo que se espera de quem opta por fazer jornalismo furreca.

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Jornalista, editor do Blog do Altino