Esclarecer, informar e ampliar os conhecimentos na área da saúde, especialmente medicina, são dois pilares fundamentais para uma sociedade civilizada, capaz de compreender o que acontece consigo mesma e com cada indivíduo, além de estarem entre os mais importantes papéis da imprensa e da medicina por si sós. Na realidade, nem sempre as coisas acontecem dessa maneira: exemplos marcantes são as perseguições muitas vezes infundadas a instituições de saúde ou profissionais da área, e o lado oposto sendo resistente a dar informações aos órgãos leigos ou mesmo procurando dificultar ao máximo esse mister, como na recente tentativa de ‘lei da mordaça’ para médicos engendrada no Conselho Federal de Medicina, que felizmente foi abortada.
As ‘máfias’ de branco e dos jornalistas às vezes parecem estar em contínua e lenta guerra pessoal, mas tanto um lado quanto o outro necessita de seu oposto, além de ser direito da sociedade o acesso aos conhecimentos e avanços médicos, dever desses dois pólos em divulgar. Essa discussão ocorre há tempos, e certamente não será encerrada tão cedo. Mas vez por outra acontecem exageros que levantam suspeitas ou mesmo levam pacientes a esperanças infundadas. Nas edições desta semana de Veja e Época houve algo perturbador. Época fez matéria de capa e Veja deu matéria interna com bom destaque a assunto que sem dúvida é de grande importância: a depressão, suas conseqüências e o avanço nos medicamentos da área.
E é aí que mora o perigo. Não se discute a importância do tema, tampouco o espaço editorial dedicado a ele nas duas revistas semanais. As duas beberam da mesma fonte: um congresso nos Estados Unidos, quando foi apresentada uma nova geração de antidepressivos. E procuraram marcar com mais fidelidade as respectivas matérias entrevistando pessoas de expressão, como Veja fez ao reproduzir declarações de um professor de Psiquiatria de Harvard. A grande questão não é exatamente o que é ou não novo: as revistas não mentiram ou trapacearam, tampouco copiaram releases da indústria farmacêutica.
A questão é que, ao se tratar de tratamento médico, especialmente medicamentos e mais ainda em áreas em que a validação científica dos dados é complexa (como na psiquiatria), pode-se literalmente dourar demais a pílula. Resumindo: os antidepressivos apareceram há algo mais que 30 anos, denominados tricíclicos, sendo verdadeiramente úteis no tratamento farmacológico dos quadros depressivos, além das medidas não-medicamentosas, como terapia, por exemplo. Essa categoria inicial evoluiu para várias drogas diferentes, algumas com pouca diferença entre si, outras com menor incidência de efeitos colaterais.
‘Fase IV’
O grande problema desses primeiros medicamentos (que ainda são usados, são bem mais baratos que os mais modernos e fáceis de serem encontrados) é que causam efeitos colaterais no mínimo desagradáveis: de sonolência à secura na boca e turvação visual até sua contra-indicação formal em determinadas cardiopatias e doenças prostáticas. Mas também se mostraram, com o passar do tempo, excelentes analgésicos para várias formas de dor crônica, para correção de distúrbios do sono, da enurese infantil, e verificou-se que seus efeitos são potencializados com dosagens mais elevadas, evidentemente às custas de também mais altos índices dos efeitos colaterais.
Mas, há pouco mais de uma década houve um boom na área: o aparecimento de uma nova categoria de antidepressivos, mais seletiva farmacologicamente, com melhores índices terapêuticos e menor incidência de efeitos colaterais. O nome farmacêutico do primeiro desses novos antidepressivos foi a fluoxetina, que passou a ser muito mais conhecida por seu nome de marca, amplamente usado até em variadas obras de ficção, e que foi a capa de Época: o Prozac. E agora a indústria farmacêutica apresenta à classe médica a terceira geração de antidepressivos, mais eficiente e com menor incidência de efeitos colaterais, segundo ela mesma, como na chamada de capa da Época: ‘Os herdeiros do Prozac’.
A complicação está no fato de estarmos na primeira apresentação pública de uma nova droga, já exibida nas revistas com seu nome comercial, e que certamente em breve estará à venda na maior parte do mundo, protegida pelas leis de patente e sem genéricos, com preços provavelmente muito elevados. Não estou aqui questionando a eficácia da nova droga: esse é o nó da avaliação de medicamentos. Não posso questionar a eficácia pelo simples fato de ela ter entrado em uso clínico apenas nas fases finais dos testes tradicionais pré-venda ao mercado exigidos pela FDA, a chamada ‘fase IV’, que cumprida mostra a potencial ação prometida pelo medicamento e a segurança de seu uso em seres humanos. Para saber na verdade se o novo medicamento será melhor que os antigos, um verdadeiro ‘herdeiro’, são necessários alguns anos de uso clínico no dia-a-dia convencional do tratamento de depressão, em número muito elevado de pacientes, que também paralelamente podem certificar a baixa ocorrência dos efeitos colaterais.
Induzida ou paga
Evidentemente não posso contestar a eficácia e a segurança do novo medicamento pelos mesmos motivos. Por mais equipamentos e precisão científica de que disponhamos, o fator tempo ainda não conseguiu ser substituído na profissão médica. Como a depressão deixou de ser um tabu ou doença psiquiátrica grave que, à semelhança da lepra e da tuberculose (e da ‘loucura’ genericamente como esses quadros eram denominados nos séculos passados), faziam os portadores e seus parentes esconderem o problema, ou até mesmo não procurarem auxílio profissional, passou a ser muito mais conhecida e seus portadores encorajados a buscar tratamento. Isso é correto.
Mas, quando revistas fora do âmbito científico fazem loas excitadas a um novo avanço, um sinal vermelho aparece: ainda é cedo para soltar rojões, e uma divulgação desse porte cria uma expectativa que no futuro pode tanto ser verdadeira – o que seria ótimo – ou uma grande frustração, que é um desastre para um paciente deprimido.
Compreende-se que se queira divulgar quase em tempo real as novidades da medicina, e continuo a achar esse um papel fundamental da imprensa; mas quando o destaque é feito dessa maneira, ainda longe do momento em que se poderá empregar a maquinaria estatística que convalida qualquer procedimento médico nos dias de hoje, a chamada Medicina Baseada em Evidências, e com a novidade correndo celeremente dos EUA para cá, conhecendo um pouco os meandros da complexa indústria farmacêutica, não dá para dizer que não houve publicidade induzida ou até mesmo paga, sem que essa informação seja dada a conhecer ao público.
Nome em destaque
E isso envenena a todos envolvidos. Termino com duas breves histórias pessoais: a primeira foi uma entrevista de uma das grandes revistas semanais feita há tempos comigo e outros colegas sobre enxaqueca; surpreendentemente, um box no meio da matéria anunciava um novo medicamento, com nome comercial e tudo. Nós, os entrevistados, de nada soubemos, e para quem lia a matéria, também de capa, dava a impressão que todos dávamos o aval ao medicamento.
A segunda foi o ocorrido com paciente minha, bem controlada de seus problemas neurológicos com os medicamentos convencionais, mas que numa dessas publicações leu sobre uma nova ‘maravilha’ na área de sua doença: conseguiu um frasco do medicamento enviado da Holanda por uma amiga e prudentemente trouxe a mim o dito remédio, cuja bula em holandês evidentemente era indecifrável, mas que já conhecia da literatura médica por encontrar-se na mesma situação do ‘herdeiro’: aparentemente tudo indicava que seria extremamente útil. Cheia de esperanças, a minha paciente o utilizou. E em menos de uma semana me telefonou, chorando: o esquema tradicional ainda era o melhor, e o novo remédio de nada serviu para ela. Peça do destino: o tal medicamento em pouco tempo já era comercializado por aqui e funcionou (e ainda funciona) muito bem – ela que foi a premiada por estar no lado errado da curva de Gauss…
Em resumo: paciência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Espero sinceramente que tenhamos uma nova geração de medicamentos antidepressivos mais seguros e eficazes, mas esse ainda não é o momento de se dar tamanho destaque a uma droga, ainda mais com seu nome comercial. Isso não é só prudência: é ética.
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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do CRM-SP