Quando o assunto é sexualidade humana, incluindo aí reprodução e
infertilidade, 84% das fontes consultadas pelos jornais Folha de S.
Paulo, Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil
são das ciências biológicas, contra 6% das ciências humanas. O estudo, feito
entre julho de 1996 e dezembro de 2000, é da Comissão de Cidadania e Reprodução e traz
outras informações igualmente relevantes que nos levam a avaliar a influência
dos compromissos mercadológicos da mídia na formação de um pensamento social
cada vez mais afastado das ciências humanas, reduzido a tecnicismos. A partir da
premissa de que a verdade só pode ser comprovada pelas ciências biológicas, a
imprensa já nem questiona eventuais falhas e as notícias nos chegam como valores
absolutos.
Na última semana, nos links de saúde e ciência do Estado e da
Folha houve destaque para o uso de esteróides em mulheres que têm
tendência a abortar. Segundo estudo realizado na Universidade de Liverpool, a
ingestão de pílulas de esteróides pode ajudar mulheres que tendem a abortar, de
acordo com a coordenadora da pesquisa, a médica Siobhan Quenby. Algumas mulheres
já tiveram filhos desde o tratamento e agora a Dra. Quenby está recrutando mais
700 voluntárias para nova pesquisa.
Raciocínios simplistas
Retrancas como sucesso, para explicar o tratamento, estão presentes nas
notícias, mas nenhuma delas fez alusão ao tratamento atual para o mesmo
problema. Faltou portanto a perguntinha: que tipo de tratamento é utilizado
hoje?
A resposta seria: uso de estrogênio injetável nas mulheres já grávidas que
tiveram um ou mais abortos espontâneos anteriormente. Tal tratamento,
considerado muito eficiente e por isso largamente utilizado, foi a grande
descoberta científica dos anos 1960 e hoje, apesar de ainda ser indicado por
muitos obstetras, já se sabe que em embriões femininos pode causar anomalias no
aparelho reprodutivo e nos masculinos há indícios de uma maior probabilidade de
câncer de próstata na idade adulta. Essas informações podem ser encontradas com
detalhes no livro O futuro roubado, da PhD Theo Colborn (Editora
LP&M).
Nada se lê nas duas notícias sobre possíveis efeitos colaterais dos
esteróides, não se vincula um simples ‘por que’ ou um ‘como’ eles agem no
organismo. Nenhuma pergunta, nenhuma resposta, só o tom de comemoração, que
certamente ajudará a médica a encontrar rapidamente as 700 candidatas, mulheres
que sofrem pressão cultural para serem mães e vivem a melancolia de não ter
direito natural à maternidade. A infertilidade mais uma vez aparece na mídia
como um problema social urgente a ser sanado pelas ciências biológicas.
A explosão demográfica já beira a catástrofe, nem mesmo os budistas se
esquivam de trazê-la a público. Há milhões de crianças famintas e maltratadas
nos lares, outros milhões de crianças órfãs, 10 milhões de crianças aidéticas e
ainda temos de dar conta de alguns milhares de embriões congelados, o lixo
genético que assombra os pais biológicos e coloca o mercado cientificista de
joelhos a clamar pela posse. Os meios de comunicação levam às pessoas a
raciocínios simplistas que ligam ciência a uma inteligência indiscutível e moral
à religião.
Questão existencial
Matérias sobre o mal-estar moral da questão são raras, mas a doutrinação que
parte da mídia para que encaremos como direito inalienável a busca – a qualquer
preço e somente para os que podem pagar uma alta quantia – do filho biológico
perfeito já não é discutível, como se não fôssemos todos pais em potencial de
todas as crianças que estão sobrando no mundo, incluindo é claro as
pseudocrianças, os embriões congelados, órfãos de laboratório. Não há espaço na
televisão, nos jornais e nas revistas para reflexões sociológicas que vinculem
um drama: o dos pais estéreis, ao outro, o das crianças excedentes. O espaço é
aberto para um só lado, o do aumento do buraco sem fim do mito parental
biológico.
A indústria científica está à frente de nosso tempo, pouco se importa em
considerar os problemas sociais e demográficos atuais e tem a seus pés, muito
solícitos, os meios de comunicação, a publicidade e a propaganda. A arrogância
científica não tem freios nem limites, é uma indústria poderosa a mexer com
nossos medos, anseios, angústias e desejo pueril de eternidade. Situações que
exigem outras abordagens e reflexões são simplesmente atravancadas pelo
pensamento único do cientificismo.
O espaço dado ao drama vivido pelos casais estéreis é tão grande que a
Folha de S. Paulo mantém uma coluna especial sobre reprodução assistida,
onde Cláudia Collucci divulga as mais novas informações na área. Nenhum
antropólogo, filósofo, psicólogo tem lugar semelhante na mídia para abordar o
lado humanístico, as teias aquecedoras de outros afetos possíveis. Ser estéril é
e sempre será uma questão existencial, que tende a se agravar quando um casal
deixa filhos virtuais no congelador depois de obter o(s) filho(s) escolhido(s).
Não seria o caso de trilhar outros rumos, já que estamos falando de um
jornalismo que em sua síntese defende a idéia de acesso a todas as formas de
pensamento?
Vivos nos tubos de ensaio
As pesquisas com células-tronco de adulto e com cordão umbilical estão mais
adiantadas – ainda que não estejam dando ótimos resultados – do que as com
células embrionárias, mas o lixo genético precisa de um destino, os bancos de
embriões congelados estão lotados por filhos excedentes que, ironicamente, não
cabem no seio de suas famílias biológicas. A experiência psíquica posterior dos
casais que deixam embriões no congelador deve ser horripilante, não pode ser
medida ou sanada pelas ciências biológicas; caberia à mídia esclarecer, debater
o caminho percorrido por um casal que passa anos tentando um filho ou um par de
filhos biológicos e depois o resto da vida sabendo que os congelados excluídos,
quando e se descongelados, poderiam sobreviver no meio adequado, o útero.
Ao contrário de ampliar o debate, a mídia aposta no jogo em frente, na
urgência das pesquisas com embriões congelados; eles decerto, apesar de não
haver evidências, vão ser a salvação dos paraplégicos. E quando os meios de
comunicação assim nos colocam, ao olharmos os paraplégicos no meio da rua ou
nossos amigos e parentes paraplégicos, fica incômodo discordar; mais fácil
acreditar que embrião não é gente em fase embrionária de desenvolvimento, só
lixo genético predestinado a defender causas nobres ou morrer no congelador.
Detalhe: foram as experiências científicas que comprovaram ser o início da vida
o momento da concepção. Já temos certeza, não é mais uma questão religiosa
polêmica.
Quando o Jornal Nacional divulgou pela primeira vez que os embriões
congelados continuavam vivos nos tubos de ensaio correram lágrimas, foi uma
matéria emocionante, para não dizer sentimentalóide, a divulgação de que havia
vida dentro dos tubos de ensaio. Alguns anos depois fomos novamente confrontados
com as tais vidas que nos emocionaram. Agora são vidas que nasceram
predestinadas à morte e precisamos aproveitá-las em tempo recorde. Após três
anos de congelamento elas já não servem para virar bebês e seu uso para defender
doenças pode ou não dar certo. Isso tudo ocorre no mesmo planeta em que o aborto
não é legalizado em diversos países e onde a mortalidade materna por abortos
clandestinos é tema pouco abordado pelos meios de comunicação no Brasil [veja pesquisa aqui].
Filhotes da raça humana
O dilema dos casais, em número cada vez maior, que não conseguem procriar é
considerado um grande problema científico, pouco vinculado ao uso de pesticidas,
ao abuso do uso da pílula e a outros fatores ambientais, psíquicos e
alimentícios comprovadamente causadores de esterilidade. É um drama grave, cujas
causas não precisam ser difundidas pela mídia, mas as conseqüências, estas sim,
são imediatamente beatificadas por providências urgentes em matérias
pasteurizadas. O direito inalienável de procriar já foi desrespeitado pela
medicina diversas vezes com esterilizações em massa, inclusive no Brasil, de
mulheres pobres e ignorantes. A fabricação de embriões excedentes, entretanto, é
implantada como coisa absolutamente natural para aqueles que têm direito a
tentar tudo por um filho biológico. Os limites da ciência são inquestionáveis
segundo a comunicação de massa.
Será que nada resta, além das magias científicas ilimitadas, para os casais
inférteis? Leituras antropológicas, algum tempo de psicoterapia, alguma
melancolia, capacidade para lidar com a frustração? Seria possível medir a
gravidade da melancolia de um casal estéril? Seria ela equiparável a de um casal
que assistiu à morte de um filho ou à de uma criança que nunca conseguiu sair de
um orfanato? São questões inabordáveis pela mídia e desmerecidas pela medicina
tecnicista, trator da monocultura científica.
O desejo de ser pai biológico-cultural, de ser mãe biológico-cultural está
anos luz à frente do desejo real de criar crianças, conviver com crianças,
educar crianças. A própria linguagem que usamos está impregnada de preconceito
quando diferenciamos filho de criança, quando vemos as crianças como filhos dos
outros, e não como filhotes da raça humana, pequenos seres de bochechas
arredondadas, braços curtos, mamíferos que demoram a andar, quase dois anos para
falar; extremamente dependentes e carentes de afeto, atenção e companhia por
vários anos. O que é racismo, afinal? É só um problema entre negros e brancos,
amarelos e vermelhos? Não seria racista a sociedade que considera a adoção um
jeito menos louvável de exercer a paternidade e a maternidade?
Atenuantes para a culpa
O desejo biológico inatacável e cultural criticável de procriar, hoje,
pertence às ciências biológicas e a uma desconfortável ideologia do egoísmo e do
egotismo, muito bem representado pelos meios de comunicação, incluindo as
revistas de mamãe-bebê, as maiores propagadoras do mito parental biológico.
Reflexões nem tão profundas, mas urgentes, levariam muitos casais férteis a não
cair na tentação de ter filhos, tanto quanto apaziguaria os espíritos dos casais
inférteis, levando-os a selecionar meios mais éticos de reprodução assistida,
adotar ou simplesmente abster-se da função, rumo a uma vida digna, despidos dos
preconceitos a que estão submetidos, abertos à reflexão sobre os dramas
existenciais que todos vivemos, de uma maneira ou de outra, com os sem a
convivência com crianças. A questão que se impõe não polemiza os avanços da
ciência médica, mas o comprometimento econômico aviltante que a mantém com o
sistema capitalista, o desprezo feroz pela realidade social mundial, o atraso em
relação às ciências filosóficas e humanas.
Infelizmente nossos impressos, sites, programas de televisão e propagandas
estão fortemente imbuídos de sentimentalismos e passam uma verdade única:
felicidade sem procriação não é completa. O filho-troféu que eu coloco no mundo
é o meu filho, sangue do meu sangue, carne da minha carne. Nenhum raciocínio
afetuoso mata essa vaidade orgulhosa. Os casais estéreis sofrem duplamente,
primeiro pela questão existencial, segundo pelo preconceito. A ciência resolve o
problema egóico, a mídia apóia, faz-se a distorção. O existencial é
paliativamente abrandado, mas o mal-estar moral só tende a aumentar nossa
miséria social. A indústria científica está chegando a um ponto que só
poderíamos denominar como contra-evolução.
A realidade gritante é outra e uma vez pais, na atual urgência dos
modernismos, cuidamos mal das crianças, terceirizamos não a educação, mas os
cuidados mais singelos desde tenra idade. Mesmo as crianças mais ricas, senão
principalmente elas, padecem de atenção e do inestimável tempo que seus pais dão
à profissão, mas a maternidade e a paternidade biológicas continuam a ser
colocadas como mito, de tal maneira que o desconforto de ter dois filhos e
deixar três no congelador não gera qualquer reflexão, a não ser a de que seria
extremamente voluntarioso fabricar embriões para curar doenças, como o melhor
dos atenuantes para a culpa. É para esse lado que vai a discussão; a polêmica,
claro, só se dá entre ciência e religião, como se não tivéssemos mais qualquer
razão emergente a questionar, qualquer solução mais humanista a colocar.
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Jornalista